Édipo, expulso de Tebas pelos próprios filhos, vagava pelos caminhos com sua filha Antígona. Ele, um velho cego perseguido pelo infortúnio; ela, uma mulher determinada a não deixar que o pai perecesse ao desamparo.
— Pai, veja, estamos chegando a Colona! — disse Antígona, quase feliz. Em seguida, no entanto, cobriu a boca com a mão.
“Maldita gafe!”, pensou ela, lembrando da cegueira do pai e revoltada consigo mesma.
“Quantas vezes vou repetir, ainda, esta bobagem?!”
Édipo, no entanto, percebeu tudo e deu uma sonora gargalhada — a primeira, na verdade, que conseguia dar desde que ambos haviam deixado o palácio de Tebas, expulsos pela ambição de Etéocles e Polinice, seus filhos e irmãos de Antígona.
— Filha querida! — disse ele, acariciando a cabeça de Antígona. — Não se agaste com essas pequenas distrações; não tenho mais olhos, mas ainda posso ver tudo, e que outra visão melhor poderia ter do mundo do que vê-lo pelo filtro dos seus olhos justos e abençoados?
Antígona sorriu e, abraçada ao pai, adentrou os limites de Colona, pequena aldeia nas proximidades de Atenas. Lentamente ambos chegaram a um bosque consagrado às Fúrias benévolas. Ali estiveram abrigados por vários dias no interior do pequeno mas severo templo, até que os moradores, irados com aquela presença profana, resolveram expulsá-los dali.
Mas Teseu, rei de Atenas, informado disso, resolveu interceder.
— Édipo está aqui próximo! — disse ele a seus conselheiros. — Tragam-no até mim, pois há um oráculo célebre, que diz que o túmulo de Édipo em nossas terras garantirá eterna vitória contra nossos inimigos.
Édipo e sua filha foram, então, bem recebidos por Teseu e gozaram da hospitalidade ateniense durante um bom tempo, até que um dia Creonte, tio de Antígona e regente do trono de Tebas, chegou a Atenas para suplicar a Édipo que retornasse à sua pátria.
— Édipo, filho de Laio, é sua ausência que provoca esta guerra odiosa em nosso reino —
disse Creonte, implorativo. — Os oráculos são unânimes em afirmar que enquanto durar sua ausência, Tebas estará entregue à disputa de seus dois filhos, Etéocles e Polinice.
Estas e muitas outras palavras disse Creonte, mas Teseu, temeroso de que Édipo fosse morrer longe de suas terras, levando assim, consigo, a proteção que os atenienses esperavam, recusou-se terminantemente a ceder o seu hóspede.
— Creonte, se veio aqui só para ver atendido este seu pedido, pode desde já retornar para sua Tebas de nome glorioso, posto que as coisas por lá, como bem sei, não andam nada tranqüilas — disse Teseu, de maneira categórica. — Vá e tente resolver os problemas que aqueles dois criaram ao expulsar o próprio pai da casa paterna. Além do mais não há garantia alguma de que ele não sofrerá algum infortúnio ainda maior por parte dos dois ambiciosos, caso volte a colocar seus pés de volta numa terra que só lhe trouxe desgraças. Aqui, ao contrário, ele será sempre bem tratado até encontrar o descanso final sob o solo ateniense.
Creonte, frustrado, deu as costas a Teseu, sem se despedir, e retornou imediatamente a Tebas, onde a guerra alcançara furor nunca visto. De um lado Etéocles, de posse interina do cetro tebano, combatia ao lado dos exércitos de sua própria pátria; de outro, seu irmão Polinice, que, exilado, unira-se aos exércitos da vizinha Argos, comandados por seu sogro Adrastos, para derrubar aquele que ele chamava de usurpador do poder régio. Entretanto, nenhum dos dois alcançou seu objetivo, pois acabaram mortos um pela espada do outro, às portas de Tebas.
Creonte, que tomara desde o começo o partido de Etéocles, ordenou então que recolhessem para dentro dos muros o corpo do rei morto, e que lhe fossem prestadas o mais breve possível todas as honras fúnebres devidas.
— Quanto a Polinice, que ousou aliar-se a um estado estrangeiro para atacar sua própria pátria, que permaneça insepulto, do lado de fora de nossas sagradas muralhas — disse Creonte, friamente. — Os cães e abutres de além muros que se encarreguem de lhe dar a sepultura conveniente.
No mesmo dia o rei de Tebas lavrou um decreto no qual proibia qualquer cidadão tebano de enterrar o corpo do infeliz Polinice, sob pena de morte.
Antígona, enquanto isto, ainda permanecia em Atenas. Tendo recém acabado de enterrar seu pai, Édipo — que falecera de maneira branda, numa tarde cinzenta e fria, encerrando assim o longo cortejo de infortúnios e tribulações que fora a sua triste vida -, sentia agora que era mais do que hora de retornar para Tebas, para ver se ainda era possível pacificar a ira dos dois irmãos em luta e instaurar em sua pátria um período de paz e tranqüilidade. Mas quando chegou teve a surpresa e a infelicidade de encontrar seus dois irmãos mortos, e um deles insepulto.
— Por que meu irmão Polinice jaz aqui, insepulto, do lado de fora dos muros da cidade?
— disse ela, horrorizada, ao soldado que mantinha o cadáver exposto ao sol e aos cães, num estado de horrível mutilação e ignomínia.
— Para longe! São ordens de Creonte, novo rei de Tebas — disse o soldado, impedindo com a lança que Antígona se aproximasse do corpo do irmão.
Inconformada, ela foi correndo procurar o auxílio de sua irmã Ismênia, que também lamentava a ordem cruel. Mas ao ver que ela não manifestava nenhuma intenção de tentar reverter aquela situação, irou-se também contra ela.
— Antígona, pense bem, minha irmã! — disse Ismênia, com o rosto molhado pelas lágrimas. — O que podemos fazer, pobres mulheres, diante de um decreto tão inexorável?
Cumpre-nos acatá-lo, se tivermos bom senso e amor à própria vida.
— Você é uma covarde, isto sim — exclamou Antígona, encolerizada.
— Creonte não voltará atrás, esteja certa! — disse Ismênia.
— Você bem sabe que uma pessoa que permanece insepulta está condenada a vagar para sempre, sem descanso nem paz, pelas margens do sombrio Aqueronte! — disse Antígona, inconformada. — É isto que deseja para nosso pobre irmão, que permaneça diante dos olhos da plebe, entregue aos dentes dos cães e ao bico imundo dos abutres? E que no outro mundo sua alma gema, vagando em eterno tormento?
Antígona procurou, ainda, convencer o novo rei de Tebas, mas este a expulsou de sua presença com palavras iradas, ameaçando prendê-la por sedição.
Mas Antígona estava determinada a não deixar que seu irmão Polinice permanecesse naquele miserável estado. Assim, durante uma forte tempestade de areia que se abateu sobre Tebas, aproveitou para deixar os portões da cidade e, ludibriando a atenção do guarda de Creonte, enterrou o corpo do irmão com as próprias mãos, realizando secretamente os rituais que a tradição prescrevia.
— Ah, meu pobre irmão, que triste fim o nosso — lamentava-se ela, coberta de pó e de lágrimas, enquanto jogava a areia sobre o corpo do irmão. — Não devíamos ter permitido, jamais, que a discórdia se instalasse em nossas almas…
Porém, mal havia terminado de encerrar os rituais de sepultamento, quando foi surpreendida e detida por um guarda, que a conduziu ao rei Creonte:
— Criatura insensata, não conhecia, então, o teor do meu decreto? — perguntou o rei de Tebas avançando para ela, tomado de cólera.
— Bem conheço o teor do seu decreto, meu tio e poderoso rei de Tebas! -disse Antígona calmamente, porém de fronte erguida. — Mas um é o decreto dos homens, e outro, o decreto dos deuses. Escolho obedecer aos deuses, em vez dos homens.
— Ousas, ainda, desafiar meu poder soberano, atrevida? — disse Creonte, dando-lhe uma bofetada no rosto.
Antígona permaneceu imperturbável e prosseguiu com suas razões:
— Sim, meu tio, escolho as leis do céu, porque elas me soam justas e perenes, enquanto que seu infame decreto padecerá sempre da perenidade das coisas mutáveis; como posso, pois, colocar à frente das coisas eternas, as coisas humanas e efêmeras? Se me dá a morte por isto, saiba que, assim como seu decreto, sua vida será efêmera. Você e eu pereceremos: um hoje, o outro amanhã; mas os deuses e seus decretos, estes permanecerão válidos e sagrados para todo o sempre.
— Conduzam esta louca para a prisão! — disse Creonte, colérico, a um dos seus guardas.
— Que sua boca não prove água ou alimento qualquer até que sua vida pereça, para que aprenda antes de morrer o quão longo pode ser o tempo, uma vez desafiado o meu “efêmero” poder temporal.
De repente Ismênia adentrou o salão real, aos gritos.
— Creonte, eu a ajudei a sepultar o nosso irmão… Mas Antígona não deixou que ela continuasse.
— Não, é mentira! — disse ela. — Minha irmã nada tem a ver com isso; tudo o que fiz, fiz sozinha…
Depois, voltando-se para a irmã, lhe disse, serena:
— É tarde, Ismênia. Você escolheu a vida; eu, a morte.
Antígona foi levada até a caverna onde ficava o túmulo de seus ancestrais; ali deveria permanecer encerrada, em completa escuridão, na companhia dos mortos, tão logo a grande pedra que vedava a entrada da tumba fosse rolada. A terrível fome, então, ficaria encarregada de corroer suas entranhas, e a sede, de ressecar sua pele viçosa, até que a Morte, penalizada diante de um tão longo martírio, a viesse libertar, enfim, de seus padecimentos.
A grande rocha moveu-se, afinal: Ismênia observava, aos prantos, a efígie de sua irmã desaparecer aos poucos — e para sempre — de seu olhar. E quando a última fresta de sol deixou de iluminar o interior da negra caverna, Antígona viu-se finalmente a sós com seu negro destino.
Algum tempo depois, quando a pedra foi removida, encontraram-na morta, com efeito, mas não como se esperava: Antígona antecipara-se à morte, pendurando-se ao teto por um laço firmemente atado ao pescoço.
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