Alceste e Admeto

Admeto, rei da Tessália, conseguira o que parecia impossível: a mão da bela Alceste, filha de Pélias. Após se apresentar diante dela num carro puxado por leões e javalis — extravagante condição imposta por Pélias para ceder a mão da filha -, Admeto tornara-se o mais feliz dos homens. Estava, agora, casado com uma linda mulher, vivia num belo palácio e tinha adoráveis filhos.

Um dia, porém, as coisas mudaram. Admeto adoeceu repentinamente. Uma doença que médico algum soube diagnosticar o lançou ao leito, de tal modo que ninguém esperava vê-lo erguer-se outra vez. Admeto estava entre a vida e a morte quando viu entrar pela porta, num dia chuvoso, as três Parcas — as deusas da morte, que comandam o destino dos homens.

— O que querem aqui? — perguntou, pressentindo algo ruim.

— Você — respondeu uma delas.

Admeto, assustado, cobriu a cabeça com o lençol:

— Por que querem me levar tão cedo? — indagou o doente, com a voz estrangulada pelo medo. — Vejam, sou moço, meus filhos são pequenos, e tenho ainda um reino inteiro para herdar.

Súplicas e lágrimas, porém, jamais comoveram as três soturnas mensageiras da Morte.

Átropos, uma das Parcas, puxou do seio o novelo que marcava os dias de vida que ainda restavam para Admeto. Havia nele somente um restinho de fio.

— Eis o pequeno fio de vida que ainda lhe resta — disse a Parca, empunhando já a sua enorme tesoura, pronta para cortá-lo.

Admeto, aterrado, reuniu suas últimas forças e lançou-se de joelhos diante das três irmãs fatais:

— Por favor, por tudo o que é mais sagrado, deixem-me continuar a viver. Apolo, o deus predileto de Admeto, assistia à dor de seu devoto e decidiu interceder a seu favor diante das implacáveis irmãs, conseguindo que elas desistissem de seu objetivo mediante um compromisso.

— Alegre-se, Admeto, pois você não morrerá mais! — disse-lhe Apolo.

O pobre moribundo, ao receber a notícia, quase morreu outra vez, só que de alegria.

— No entanto, Admeto, há uma condição para que você retorne ao convívio dos vivos…

— disse-lhe Apolo, com ar sério.

— Sim, claro! — disse Admeto, pulando da cama e tornando a vestir suas roupas, enquanto assobiava uma alegre melodia.

— Alguém terá de morrer em seu lugar.

— Como?

— É exatamente o que você acabou de escutar. Escolha alguém para morrer em seu lugar.

“Sim, muito justo.” Alguém morreria em seu lugar, pensou Admeto. Não seria, afinal, coisa muito difícil encontrar alguém que se dispusesse a tomar o seu lugar na barca de Caronte.

Para que serviria, então, a sua imensa legião de escravos e aduladores?

— Você tem uma semana para arrumar um substituto — disse o deus e se retirou em seguida.

Admeto, decidido a resolver logo aquela importantíssima questão, envolveu-se no seu manto impermeável e ganhou a rua, disposto a arranjar logo o tal substituto para a indesejável viagem. Foi direto à casa de seu melhor amigo, a quem favorecera desde garoto. Graças a isto, ele era hoje um dos personagens mais importantes da corte.

— Meu querido! — disse o amigo, ao ver chegar Admeto, todo molhado da chuva. —

Venha, sente-se ao pé da lareira — completou, estendendo-lhe um copo de vinho.

— Preciso muito de um favor seu — foi logo dizendo Admeto.

— Um favor?

— Sim, preciso que você morra em meu lugar — disse Admeto, em sua ingênua confiança.

— Morrer? — exclamou o amigo, assombrado.

Admeto explicou-lhe, então, em breves palavras, a sua situação. Enquanto o fazia, o amigo engendrava em seu cérebro um modo de se esquivar. Quando Admeto concluiu, ele já tinha a sua desculpa pronta.

— Infelizmente, meu querido amigo, já tenho uma outra viagem programada há mais tempo.

Depois, pretextando um compromisso, pôs Admeto para fora de sua casa.

Admeto estava perplexo. Procurou, então, outro amigo e obteve a mesma resposta, sob outras palavras. Percorreu a cidade inteira, durante todo o dia, sempre debaixo de chuva, sem receber outra resposta. Até que retornou à noite pari casa com uma pneumonia que quase o desobrigou de encontrar um substituto.

A solução, pensou Admeto, só poderia estar dentro de sua própria casa. Decidiu enfileirar diante de si todos os criados:

— Preciso que um de vocês morra por mim — disse Admeto, com um ar solene. — Um só, porém, será o suficiente — completou, certo de que todos se lançariam a seus pés, felizes em poder provar a sua lealdade.

No entanto, não só nenhum deles deu um passo adiante, como recuaram todos até a parede, como se Admeto houvesse encostado em seus peitos uma espada afiada.

Faltavam apenas dois dias para que o prazo se esgotasse quando as Parcas retornaram.

— Já arrumou alguém para o seu lugar? — perguntou uma delas.

— Não, ainda não — confessou Admeto, de olhos baixos.

— Caronte atrasou a saída de sua barca apenas por sua causa e está louco para descarregar nas suas costas o seu pesado remo — disse outra Parca, raivosa.

— Não se preocupem — disse Admeto, assustado. — Arrumarei logo um substituto.

— Depois de amanhã a Morte virá buscá-lo — disse a última, retirando-se. Admeto, em pânico, decidiu recorrer a seus pais. Qual pai não daria a vida pelo seu próprio filho? Afinal, estavam velhos e já haviam vivido o bastante, enquanto ele, jovem, tinha ainda uma vida inteira pela frente. Mandou chamá-los.

Os dois velhos surgiram no palácio, apoiados em suas bengalas. Nunca freqüentavam o palácio, porque o velho tinha pavor das correntes de ar que sopravam pelos corredores.

— Hein, meu filho? — disse o velho, completamente surdo às razões do filho. -Morrer, papai… Morrer em meu lugar, que tal? — esganiçava-se Admeto.

— Adeus, tem muito vento por aqui — disse o velho, retirando-se, aos trambolhões.

A mãe, completamente senil, não entendeu uma palavra do que ele disse.

— Meu Deus, e agora? — exclamou Admeto, no último grau de desespero. Seu pranto, no entanto, chamou a atenção de Alceste, sua dedicada esposa.

— Admeto querido, tenho notado que você anda perturbado, desde a sua doença —

disse ela. — O que houve, ela voltou?

Admeto, que havia até então ocultado da esposa o terrível dilema, revelou-lhe toda a verdade.

— Como, meu amor? — disse a infeliz esposa. — Irei perdê-lo amanhã?

— Sim, Alceste querida, o prazo fatal já se esgota! Amanhã, sem falta, o gênio da Morte virá me buscar.

Depois de ficar abatida por um longo tempo, Alceste ergueu a cabeça e declarou:

— Morrerei, então, em seu lugar.

— Não, querida Alceste, isto não posso aceitar.

— Sim, tomarei seu lugar, pois não saberia viver sem você.

Alceste decretara a sua própria morte: no mesmo instante, foi tomada por uma vertigem, caindo desacordada ao solo. Recolhida ao leito, seu estado somente piorou. No dia seguinte, a casa preparava-se já para o luto. Admeto, inconsolável, errava pelos corredores do palácio.

— Desgraçado de mim! Por causa de minha covardia perderei a coisa mais cara de minha vida.

De repente, porém, alguém bateu à porta. Era ninguém menos do que Hércules, o herói e semideus, que estava de passagem, preparando-se para realizar os seus famosos doze trabalhos.

— Desculpe incomodá-lo, meu jovem, mas preciso descansar um pouco -disse Hércules, de modo jovial.

Admeto, apesar da ocasião não ser a mais propícia a visitas, recebeu-o com toda a hospitalidade. Hércules foi, assim, admitido à mesa, embora seu anfitrião pedisse desculpas por não poder lhe fazer companhia. Admeto não quis revelar o verdadeiro motivo para não aborrecer o visitante com as suas dores. Deu ordens, também, para que não deixassem que ele percebesse o luto que reinava na casa.

Instalado à mesa, Hércules comeu à vontade, enquanto bebia de uma grande jarra depositada à sua frente; aos poucos o herói foi se alegrando e começou a entoar algumas animadas canções de taverna. Admeto, apesar da inconveniência involuntária do visitante, não interferiu em suas expansões. Mas um criado da casa decidiu alertar o hóspede, por conta própria.

— Perdão, senhor, mas há luto na casa — disse o escravo, num tom baixo e receoso.

Hércules, corando de vergonha, silenciou. Chamou, então, Admeto, para saber o que se passava. Após tomar conhecimento dos fatos, ergueu-se da mesa. com decisão, e disse:

— Pois amanhã, quando a Morte vier, a estarei esperando. Admeto, enchendo-se de esperanças, ainda tentou demover o herói:

— Não sei, Hércules… é a Morte, e dela ninguém escapa.

— De qualquer modo, tentarei — disse o herói, que não tinha medo de nada. Depois de visitar a enferma Alceste, Hércules foi postar-se à entrada do quarto. Ali passou a noite toda em vigília, envolto em uma pele e empunhando um porrete, enquanto lá dentro Alceste agonizava.

Com a primeira luz do dia surgiu finalmente a Morte, portando a sua tocha invertida, símbolo da escuridão do Tártaro. Hércules impediu-lhe, contudo, a passagem:

— Afaste-se! Alceste está sob a minha guarda.

— Vim buscá-la, mortal atrevido, conforme me ordenou Plutão, o deus dos infernos —

disse a Morte, agitando as grandes asas negras.

Mas Hércules não arredou pé do lugar. Os dois, então, atracaram-se num duelo verdadeiramente mortal, enquanto Alceste, abraçada a Admeto, ouvia o tremendo fragor da luta que do outro lado da porta decidia o seu destino.

— Nada tema, Alceste! — disse Admeto, como se ele próprio estivesse lá fora, dando combate à morte.

— Se alguém tem medo nesta casa, é você, querido Admeto — disse Alceste. censurando discretamente a covardia do esposo.

O castelo inteiro retumbava com os golpes que Hércules desferia com seu porrete sobre a sua inimiga, no corredor. Um longo tempo durou a disputa, até que a Morte, temendo pela própria vida, retirou-se, vencida.

— Para mim chega. Vou procurar outro para levar no seu lugar — disse, fugindo, com uma asa quebrada e o nariz sangrando.

E foi deste modo que Alceste, sadia, voltou para os braços do seu querido Admeto.


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