Há ainda uma terceira teoria que é oferecida como explicação sobre os fatos da impureza – a teoria animista. Essa teoria aparece de duas formas. Ambas têm em comum a pressuposição de que, para a mente primitiva, certas coisas aparecem como portadoras de uma influência sobrenatural sinistra que deve ser afastada.
De acordo com uma das formas da teoria, esses portadores são do tipo pessoal e demoníaco. De acordo com a outra, o perigo reside na alma impessoal, que se difunde e se liga de um modo preferencial, que, na realidade, é tão perigoso quanto a influência de um demônio pessoal. A natureza da primeira forma da teoria traz que as formas de impureza são, especialmente, as práticas de lamentação, nada mais do que várias tentativas de autodistinção para escapar da atenção dos poderes demoníacos.
Dizer que ela considera impuro fazer isso ou tocar aquilo significa somente que o perigo está à espreita nas imediações nas quais se acredita que a impureza pode ser contraída. Ela é uma disciplina indireta, administrada às crianças para ensiná-las a evitar o perigo pela dissimulação em sua aparência. A outra forma da teoria, da mesma maneira, encontra nessas práticas um tipo de autodefesa, não por meio de camuflagem, mas por meio da profilaxia.
A forma pessoal da teoria se relaciona, principalmente, à impureza por morte e aos costumes de lamentação. O cadáver deve ser considerado impuro, porque a alma fica rodeando-o por algum tempo numa disposição não muito agradável. Ele tem ciúmes dos parentes, que herdaram suas posses, um sentimento que se estende até mesmo às reminiscências de seu relacionamento pessoal — sua viúva que, portanto, era advertida a não se casar por certo período.
Enquanto que essa teoria na primeira forma possa dar uma explicação suficientemente plausível de alguns dos fatos, ela, de maneira alguma, explica todos eles. Existem alguns costumes de lamentação que não podem ter surgido de um desejo de autoproteção mediante um disfarce. Dificilmente o jejum tinha esse objetivo – uma exegese muito equivocada de Mateus 6.16. As mais variadas explicações sobre jejum como uma prática religiosa têm sido dadas, nenhuma das quais até agora satisfatória por todos os aspectos. Alguns dizem que ele surge ao se considerar a comida como impura num lugar onde alguém tenha morrido. Outros dizem que a pessoa que jejua se considera impura e assim não quer corromper a comida. Ainda, de acordo com outros, ele é, originalmente, a preparação para a refeição sacrificial, sob o princípio de que nenhuma comida poderia entrar em contato com a comida sagrada. Outros, mais uma vez, veem nele um esforço para induzir estados de êxtase. Ainda outros o consideram com o uma espécie de prática ascética. Tudo isso mostra quão precário é manter que ele deve significar alguma maneira de se ocultar.
Também os sons produzidos pelos enlutados não podem ser bem esclarecidos por esse princípio. A voz de uma pessoa, quando chorando, pranteando ou gritando, pode não ser tão reconhecível como na fala ordinária, mas o silêncio faria que fosse mais irreconhecível ainda. O rasgar do vestuário não oculta muito a identidade. Nem o andar descalço. Nem o fazer incisões no corpo. Nem o bater no rosto, peito e quadris. Nem o colocar de pó e cinzas sobre a cabeça. Talvez o tratamento dado ao cabelo e à barba combina mais facilmente com essa explicação de disfarce. Contudo, nesse caso, as mulheres de luto devem ter tratado o cabelo de modo diferente dos homens, como na verdade era o costume em outro lugar.
À parte desses pontos individuais de criticismo, a teoria trabalha sob uma dificuldade geral: como é que o espírito do morto podia ser supostamente ignorante do simples fato de que as pessoas nas imediações eram parentes? Se ele quisesse ferir os parentes, as observâncias do luto teriam sido a maneira mais simples e segura para informá-lo sobre onde atacar. A identificação pessoal era desnecessária. As pessoas dificilmente poderiam falhar em atribuir ao morto tanto conhecimento, ou mesmo menos do que isso, já que os mortos eram sabidos ter estado eles mesmos enlutados quando em vida em ocasiões frequentes. E, por que os mortos deveriam estar enciumados por causa dos vivos entrarem de posse daquilo que eles deixaram para trás? Em geral, entre povos primitivos, não existe tal individualismo extremo em termos de relações de propriedade. O homem comum, primitivo ou civilizado não tem ciúmes de seus herdeiros, mas se alegra por tê-los. Além disso, a teoria implica que os costumes de lamentação são mais recentes em sua origem do que a existência da propriedade privada. Isso seria difícil de provar. As mesmas práticas são encontradas tanto entre as tribos mais nomádicas com o entre as tribos agriculturais sedentárias.
A forma impessoal da teoria animista afirma que a atribuição de impureza a coisas e lugares é um meio de manter a alma, e tudo relacionado a ela, afastada. Quando separada de um corpo, essa substância procura se inserir ou se ligar a outro. Cada porta de entrada é cuidadosamente fechada. As aberturas do corpo são encobertas ou feitas inacessíveis. O jejum impede o fluido hostil de se inserir na comida. O primeiro alimento comido após o jejum não era procedente da casa do morto. Supunha-se que a alma não gostava de se ligar a qualquer coisa despedaçada ou rompida. Aquele que se encontrava próximo rasgava seu vestuário assim que a morte acontecia. Ele vestia o vestuário mais simples, curto e liso; todas as dobras e pregas eram evitadas; ele se desfazia de seus sapatos de modo a não deixar nada em que a alma pudesse se aninhar. O cabelo era rapado com o mesmo receio em mente. As unhas eram aparadas. Incisões eram feitas no corpo de modo que o sangue pudesse correr livremente. Chama-se a atenção à distinção que a Lei faz entre vasos abertos e tampados. Os vasos abertos se tomam impuros, os tampados escapam de contaminação [Nm 19.15],
Deve-se admitir que essa forma da teoria é mais bem-sucedida, no seu todo, em explicar as coisas do que a antecedente. Muitas dessas práticas primitivas parecem realmente meios de isolamento e fortificação contra um poder espiritual invasor. Esse princípio pode ser aplicado em vários pontos nos quais a teoria do disfarce falha. Mesmo assim, contudo, muitas coisas permanecem sem explicação. O rasgar do vestuário, alguém pensaria, facilitaria o ingresso ainda mais. Dizer que a alma não gosta de algo quebrado ou despedaçado pode ser verdade, mas isso requer uma explicação que não é dada. A nudez total também poderia dar a impressão de estar dando livre agência sobre o corpo. O retirar das sandálias seria perigoso pela mesma razão. O rolar no solo, bem como o colocar pó e cinzas sobre a cabeça, teria sido um ato inseguro. As automutilações, ao abrir o corpo, somente produziam novas avenidas de ingresso.
A teoria é distintamente mais fraca do que a outra forma quando é o caso de se explicar uma exposição maior dos parentes ao ataque. Se é uma questão de ciúme pessoal, há, pelo menos, alguma razão aparente para isso. Se, por outro lado, é uma questão da alma procurando hospedagem, então é difícil ver por que os parentes deveriam se sentir em maior perigo do que os outros. O espectro de impureza é mais amplo do que o círculo de lamentação. Por que os parentes em especial é que lamentam? Se a alma, sendo ignorante, não tem nenhum sentimento pessoal a esse respeito, se ela procura somente um orifício ou fresta para se inserir, então quando um tabu é erigido contra isso pela pressuposição de impureza, e isso é mais adiante reforçado pela observância do luto, torna-se difícil explicar por que só os parentes se envolvem na prática do último. Deve-se dizer que os parentes estão mais próximos do corpo, estando, portanto, sujeitos a uma exposição maior, enquanto que os outros podem simplesmente se manter afastados. Mas se esse é o caso, então a regra deveria ter sido que a proximidade de lugar era a consideração decisiva e não a proximidade de sangue (parentesco). Todos que se achegassem próximos ao corpo deveriam prantear.
Além dessas três teorias, que se empenham para explicar abrangentemente os grupos de fenômenos, existem tentativas de explicar fatos separados. Totalmente à parte do totemismo, certos animais impuros podem ter derivado seu tabu pelo fato de figurarem com o animais sagrados em alguns cultos idólatras. Isso talvez se aplique a casos separados, apesar de não ser aplicável à coleção inteira de animais impuros. Muitos dos animais impuros pertencem às menores espécies, e eles certamente nunca foram objeto de culto. Com os animais maiores, como os suínos, isso é diferente. Isaías 65.4 em diante fala de um culto que incluía comer um porco. N o círculo referido ali, o porco era indubitavelmente considerado não com o impuro, mas com o santo. Alguma prática similar de data mais antiga pode ter ocasionado a regulamentação da Lei de que os suínos devem ser animais impuros para os servos de Yahweh. A proibição de animais impuros está em Levítico 20.22 em diante. Significativamente, ela é trazida em relação à diferença entre os israelitas e os cananitas. Isso indica que os últimos não consideravam com o impuros os animais declarados como sendo tabus em Israel. Ao contrário, esses mesmos animais devem ter desempenhado um papel bem preeminente na religião deles. Isso sugere também que exatamente por essa razão eles estavam impedidos de participar do ritual da religião verdadeira.
A impureza da lepra ocupa um lugar por si. Isso não pode ser explicado por razões sanitárias. É verdade que, apesar de a medicina moderna ensinar que lepra é levemente contagiosa, o povo antigo tinha um pensamento diferente a esse respeito. Porém, uma objeção séria a isso é que doenças igualmente graves e contagiosas não qualificavam a pessoa como impura, com destaque para epidemias. Tem sido sugerido que a lepra era atribuída ao ato especial de Yahweh ou algum espírito maligno golpear, e que mesmo o nome da doença testifica a esse respeito; tsaraath e nega, os dois nomes para lepra, ambos vêm da raiz que significa “golpear”. N o entanto, de acordo com outros, esses termos não têm nenhuma importância religiosa, tendo sido tomados das manchas e inchaços característicos da doença. Se a ideia do golpe demoníaco ou divino é o fator, deveríamos esperar que o mesmo instinto tivesse se expressado para os casos de insanidade e epilepsia. Contudo, esses não qualificam a impureza. Possivelmente, a lepra esteja associada à impureza em razão do seu estado, por assim dizer, de morte viva. Nesse caso, a impureza da lepra teria de ser classificada com a da morte. As palavras usadas sobre a lepra de Miriã [Nm 12.12] sugerem alguma coisa assim.
Mas por que a morte, com tudo que a acompanha, é qualificada como impureza? Pelo princípio de que tanto o nascimento como a morte causam impureza tem-se sugerido de modo plausível que, por meio da impureza desses dois marcos da vida, a vida natural com o tal é declarada impura. Foi levantada a objeção de que nessa opinião sobre o assunto, a Lei não deveria ter declarado o dar à luz, mas nascer como trazendo impureza consigo. Ela só qualifica o primeiro. Somos informados de que a mãe, e não a criança, é que é impura. A objeção não tem muito peso. Podemos observar que a criança, na verdade, é impura. Isso, todavia, tendo recebido expressão total por meio da circuncisão. Não havia necessidade de se declarar isso separadamente, e, ao atribuir impureza à mãe, a verdade adicional foi ensinada de que a impureza não é somente da vida no todo do seu curso, mas na própria fonte.
Mesmo que os pontos de vista indicados possam conter elementos de verdade, eles não dão uma solução para o problema no seu todo. Algumas explicações mais antigas, frequentemente descartadas pelos escritores modernos com deleite e desprezo, não devem ser desprezadas sumariamente como se tem feito com elas. Certos animais, com o cobras e aves de rapina, despertam uma aversão natural na mente humana em períodos primitivos, e isso pode ter tido alguma coisa a ver com a disposição da Lei.
Muito mais importante do que esses problemas insolúveis e as tentativas de solução é a consideração da maneira pela qual a Lei faz que essas coisas estranhas a auxiliem no seu propósito de revelar a verdadeira religião do Antigo Testamento. A primeira coisa que a Lei faz é dar um aspecto religioso à distinção toda, não importando se ela existe como parte integrante nela desde o começo ou não. Quando a Lei se põe a regular uma coisa, essa adquire importância religiosa. O princípio é afirmado explicitamente. A matéria é trazida para uma relação com a santidade de Deus [Lv 11.44,45; D t 14.21], Por essa razão, também, o processo de purificação é chamado de uma “santificação”. O que é impuro é excluído do santuário e das festas. Nada pode ser tirado dos dízimos para os mortos, nem pode ser comido estando de luto [Lv 22.4; Nm 9.6; 19.12, 20; D t 26.14]. A remoção da impureza é, em parte, acompanhada pelo ritual da “cobertura” [Lv 12.7,8; 14 (passim)\ 16.29,30; 15.14,15; Nm 8.5ss.]. O papel desempenhado pelo número sete nos períodos de purificação é evidência do caráter religioso deles. O rigor das regulamentações com referência aos sacerdotes prova que um motivo religioso era o determinante [Lv 21.1ss.; 22.2,3].
A impureza, relacionada dessa maneira ao serviço a Yahweh, é associada com o pecado ético. Isso é feito de duas maneiras. Por um lado, a impureza ritual é tratada como pecado. Por outro, a anormalidade ética empresta seu vocabulário da Lei ritual. Nós nem sempre valorizamos isso. Quando o pecado de aspecto claramente ético é chamado de “impureza”, somos aptos a pensar que isso é uma metáfora autoexplicativa. Na realidade, ela é um empréstimo direto da linguagem ritual. Deus ensina o povo a sentir pelo pecado o que eles estão acostumados a sentir com respeito à exclusão ignominiosa e desconfortável do serviço ritual. Desse modo, a circuncisão é uma alavanca da moralização e espiritualização em Deuteronômio 10.16. Essa espiritualização incipiente do vocabulário ritual é desenvolvida posteriormente pelos profetas e salmistas. Isaías fala dos lábios “impuros” num sentido ético [6.5]. A terra está “contaminada” pela transgressão das leis fundamentais de Deus [Is 24.5]; o sangue (i.e. assassinato) “contamina” as mãos [Is 1.15; 59.3]; o templo está “contaminado” pela idolatria [Jr 32.34; Ez 5.11; 28.18], o povo st polui com os seus pecados [Ez 20.7,8, 43; 22.3; 39.24]. Pureza ética é simbolizada por “mãos puras” e “um coração puro” [SI 24.4]. A purificação ética é descrita em termos de purificação ritual [SI 51.7; Ez 36.25; Z c 13.1].
— Retirado de: Geerhardus Vos – Teologia Bíblica – Antigo e Novo Testamento.
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