A Reinação Atômica – Monteiro Lobato

Narizinho e Dona Benta, na cozinha, ajudavam tia Nastácia a “pelar vagens.” Em certo momento a menina disse:

— Por que estas burrinhas hão de ter estes fios, vovó? Só para dar trabalho às cozinheiras.

Dona Benta respondeu:

— Quando a Natureza fez as vagens, não pensou nas cozinheiras; nem havia cozinheiras naquele tempo, nem gente no mundo, nem fogo, nem animal nenhum — só vegetais.

— E para que fez a Natureza as vagens?

— Tão fácil perceber, minha filha! Para abrigar as sementes. Note que cada planta inventou um jeito de cuidar de suas sementes e defendê-las. Repare que berço macio é uma vagem para as sementinhas tenras que dormem lá dentro.

A menina havia aberto uma e examinava os sete grãozinhos de feijão muito tenros e dum lindo verde envernizado que havia dentro. Tirou um e mordeu-o. “Adocicado, vovó, mas dum gosto meio enjoadinho.”

Depois, mudando de assunto:

— Quem anda enjoada mesmo é a Emília, vovó, e até penso que está com qualquer coisa, alguma doença.

— Doença? Por quê?

— Não sei. Até o cabelo anda perdendo. Volta e meia cai um fio, e não me admirarei se tivermos uma carequinha aqui no sítio… E, por falar: por que é que só há homens carecas, mulher nenhuma? Será que as mulheres não ficam calvas ou…

— Ou, minha filha! Deve haver tantas carecas entre as mulheres como entre os homens, mas os homens têm a coragem das suas carecas e as mulheres não. Escondem-nas por meio de cabeleiras postiças, o que é muito fácil. Creio que jamais houve no mundo uma mulher calva que tivesse a coragem de exibir em público a sua careca, como faz o Doutor Osmundo, que até parece ter gosto em mostrar o seu formidável queijo do reino.

— É mesmo, vovó. Ele tira do bolso o lenço e passa-o naquela calva lustrosa e cor-de-rosa, como tia Nastácia passa um pano na vidraça. Mas se Emília ficar totalmente careca, que gracinha, hein, vovó?

— Eu terei de lhe arranjar uma cabeleira, ou chinó, como se dizia no meu tempo. Mas donde virá essa queda de cabelo da Emília? Não é coisa natural. Com certeza alguma reinação lá no laboratório do Visconde, com aquelas drogas.

Nesse momento tia Nastácia apareceu para levar as vagens já peladas e ninguém mais falou dos cabelos da Emília. Mas Dona Benta ficou parafusando no caso, e logo depois foi ter ao laboratório do Visconde, que estava entretido na fabricação do pó de pirlimpimpim.

— Escute, Visconde. Emília, segundo diz Narizinho, anda a perder os cabelos, o que não é natural. Desconfio que é arte de alguma droga aqui deste seu laboratório. Que acha?

O sabuguinho científico segurou o queixo, franziu a testa e pensou. Depois disse:

— Não sei de droga nenhuma aqui com o poder de afetar os cabelos humanos, mas ando desconfiado de uma coisa…

— Que coisa?

— Não posso dizer ainda. Tenho de concluir uma investigação que estou fazendo. Há dias dei balanço em meu estoque de Pim e Superpim (era como o Visconde chamava o pó de pirlimpimpim e o Superpó que ele havia inventado) e notei a falta de duas pitadas. Quer dizer que alguém entrou aqui e as furtou. Para quê? Para usá-las, evidentemente. Donde concluo que alguém desta casa utilizou o Pim para alguma aventura, sem que os outros soubessem. Ora que alguém era capaz de fazer isso senão a Emília?

— Muito bem deduzido, Visconde — aprovou Dona Benta. Creio igualmente que só aquela diabinha poderia ter a coragem de usar o pó escondida de nós.

— Sim. Ninguém me tira que ela usou o Pim para ir a alguma parte misteriosa, onde sofreu o choque que a está fazendo perder os cabelos. Hei de descobrir tudo. Estou aplicando no caso os métodos do detetivismo psicológico e hei de caçá-la.

— Em que consistem esses métodos, Visconde?

— Em ir apertando a pessoa suspeita, apertando, até que ela não tenha mais remédio e conte tudo espontaneamente.

Dona Benta achou muita graça no sabuguinho e disse para fecho do assunto:

— Pois continue na investigação e me dê parte do que houver. Preciso saber o que se passa nesta casa.

A partir desse dia o Visconde amiudou as suas conversas com Emília, sempre com o intuito de “caçá-la.” A primeira foi assim:

— Dona Benta me contou que vamos ter cá no sítio uma pessoa calva. Será certo?

Emília encarou-o firme e desconfiada; depois disse com naturalidade: Pode ser. Meu cabelo está caindo. Se continuar…

— E a que atribui isso?

— Não sei. Talvez eu comesse alguma coisa que faz mal aos cabelos…

Conversaram longamente, essa e outras vezes, mas sem resultado para o detetive. Dias depois, entretanto, o Visconde ficou de pulga atrás da orelha em virtude do interesse da ex-boneca pela física atômica. Isso foi depois do lançamento da bomba atômica sobre a Ilha de Bikini, feito pelos americanos. Emília não largava do assunto, mas o seu interesse não era pela força destruidora das bombas, e sim pelos efeitos das emanações sobre os seres vivos. A experiência havia mostrado que depois da explosão ficava a terra carregadíssima de radiatividade, e essa radiatividade exercia misteriosos efeitos nos seres vivos. Os sábios andavam a estudar esses efeitos. A preocupação de Emília era saber que efeitos as radiações produziam, ou podiam produzir.

Essa preocupação da ex-boneca forçou o Visconde a estudar muito e a pedir a Dona Benta que lhe comprasse revistas científicas americanas; chegou mesmo a escrever a vários sábios, entre eles Alberto Einstein e o Professor Milikan.

Um dia um raio de luz lhe entrou na cabecinha. Quem sabe se as emanações da Ilha de Bikini, revolvida pela bomba atômica, tinham efeito sobre os cabelos humanos, a ponto de os fazer cair? E o Visconde se pôs em correspondência com o Doutor Galipoli, que andava lá pelos cafundós estudando o mesmo assunto. Esse cientista tinha em observação cinco casos de pessoas imprudentes que haviam penetrado nas ruínas de Bikini e estavam perdendo os cabelos.

O Visconde esfregou as mãos ao ler a carta do Doutor Galipoli que dizia isso, e tratou de saber quanto tempo, depois de terem estado nas ruínas aquelas pessoas começaram a perder os cabelos. A resposta foi: “Três meses.”

O “sabinho” pensou, pensou — deduziu, deduziu… Depois foi ter com a ex-boneca.

— Emília, há quanto tempo seu cabelo começou a cair?

— Três meses.

Recorrendo à memória, o Visconde lembrou-se de que fora exatamente três meses atrás que havia pilhado Emília saindo de seu laboratório com qualquer coisa na mão — um embrulhinho de papel. Naquela ocasião não dera nenhuma importância ao caso, mas agora estava dando. E já com uma ideia na cabeça, preparou um golpe que a “caçasse.” Puxou o assunto das bombas atômicas e disse:

— Para mim, a explosão da bomba atômica em Bikini foi um fracasso. Fez muito menos estragos do que a lançada sobre Hiroshima.

— Com que base diz isso, Visconde? — perguntou Emília.

— No que tenho lido e visto nas fotografias.

— Pois penso o contrário. Acho que em Bikini o arrasamento foi completo; só que como não havia cidade ali, a destruição foi menos espetacular.

O Visconde piscou lá por dentro e disse:

— Eu queria muito saber como ficaram os troncos das palmeiras com o choque da explosão. As fotografias, muito reduzidas, não me permitem fazer uma ideia.

Emília distraiu-se e:

— Ficaram esfiapadas, assim como aquela ripa que naquele dia o Guiné Carapina quebrou no joelho e jogou ali fora, e Narizinho caiu em cima e arranhou-se toda no joelho.

O Visconde encarou-a com ar firme.

— Emília, Emília! Como é que sabe disso? Como é que sabe com tanta precisão como ficaram as palmeiras da Ilha de Bikini depois da explosão da bomba atômica?

Emília caiu em si e atrapalhou-se. Mesmo assim respondeu com a sua habitual esperteza:

— Sei por adivinhação, ou por dedução, como dizem vocês sábios.

Mas o sabuguinho não se deixou embrulhar.

— Adivinhação uma ova! Sabe porque esteve lá!

Pegada de surpresa, a ex-boneca vacilou. A afirmação do Visconde era das mais categóricas, e ele insistiu:

— Esteve lá, sim! E posso dizer mais: esteve lá há três meses, logo depois que entrou na ponta dos pés em meu laboratório e furtou duas pitadas de Pim, uma para ir até à Ilha de Bikini e outra para voltar. Foi ou não foi assim, Senhora Marquesa de Rabicó?

Emília cruzou os braços, empinou o queixinho e respondeu com a dignidade de uma verdadeira marquesa do tempo de Luís XIV:

— Foi — e agora? Estive lá na Ilha de Bikini — e agora? Quis ver os estragos da bomba atômica — e agora?

Meneando a cabeça, o Visconde respondeu com a superioridade de sempre:

— Agora, Senhora Marquesa de Rabicó, vai ficar careca, sabe? Vai ficar mais careca que o Doutor Osmundo, sabe? O castigo de me haver furtado as pitadas do Pim vai ser esse, sabe?

Emília arregalou os olhos e esteve uns instantes como que fulminada por um raio. O Visconde, que tinha velhas contas a ajustar, aproveitou-se da situação. Insistiu:

— Careca como o Doutor Osmundo! Mais ainda: careca como o ovo de cerzir meias de Dona Benta!

Emília perdeu a compostura, fez cara de choro — ela que nunca havia chorado! E correu à cozinha em busca de tia Nastácia, à qual contou tudo, entre soluços, querendo saber se não havia remédio.

A negra riu-se, riu-se, e gozou de ver a invencível Emília abatida, chorosa, largada em seu colo, a fungar, no horror de ficar careca. Mas teve dó dela e consolou-a.

— Não tenha medo, bobinha. Eu dou um arranjo nisso. Tio Barnabé tem um remédio para cabelo, tão bom, tão bom, que até faz nascer cabeleira em ovo de galinha. Arranjo com ele uma dose, e deixo essa cabecinha com uma cabeleira que nem a de Sansão.

Emília, fungou, fungou e afinal se consolou. Minutos depois estava no pomar ajudando Pedrinho a consertar a gaiola do curió.