Bem no fundo do mar, a água é azul como as pétalas das mais bonitas centáureas e pura como o cristal mais transparente. Mas é profundo, mais profundo do que qualquer âncora pode alcançar. Seria preciso empilhar uma quantidade de torres de igreja, umas sobre as outras, a fim de verificar a distância que vai do fundo à superfície. Lá é a morada do povo do mar.
Agora, não pense nem por um instante que não há nada lá além de areia nua e branca. Ó, não! As mais maravilhosas árvores e plantas crescem no fundo do mar. Seus talos e folhas são tão leves que o menor movimento da água faz com eles se agitem, como se estivessem vivos. Todos os peixes, grandes e pequenos, deslizam por entre seus galhos, assim como os pássaros o fazem no ar. No lugar mais profundo está o castelo do rei do mar, cujos muros são feitos de coral, e as janelas compridas e pontudas são feitas do mais claro âmbar. O teto é formado de conchas que se abrem e fecham com a corrente. É uma visão linda. Cada concha encerra uma pérola deslumbrante, e a menor delas honraria a mais bela coroa de qualquer rainha.
Há muitos anos que o rei do mar estava viúvo e sua velha mãe mantinha a casa. Era uma mulher inteligente, mas orgulhosa de sua linhagem. Era por isso que usava doze ostras em sua cauda, enquanto todos os outros de alta posição tinham de se contentar com seis. Sobre outros aspectos, ela merecia elogios pelos cuidados que tinha para com as suas netas bem-amadas: as princesinhas do mar. Eram seis lindas crianças e a mais moça era a mais encantadora. Sua pele era clara e delicada como uma pétala de rosa. Seus olhos eram azuis como um lago profundo. Todavia, como todas as outras, não tinha pés e seu corpo terminava numa longa cauda de peixe.
Durante o dia inteiro, as princesas do mar brincavam nos grandes salões do castelo, onde flores viçosas cresciam direto das paredes. As grandes janelas de âmbar ficavam abertas e os peixes entravam por elas nadando, assim como as andorinhas entram voando em nossas casas quando abrimos as janelas. Os peixes deslizavam até as princesinhas, comiam em suas mãos e aguardavam um afago. Fora do castelo, havia um belo jardim com árvores de um azul penetrante e de um vermelho flamejante. Seus frutos cintilavam como ouro e suas flores, agitando sem cessar seus talos e suas folhas, assemelhavam-se a labaredas. O próprio solo era da mais fina areia, porém azul como uma chama de enxofre. Um singular fulgor azulado envolvia tudo que estava à vista. Se você estivesse lá embaixo, não saberia que estava no fundo do mar, sem nada além do céu acima e abaixo de você. Quando havia calmaria, era possível vislumbrar o sol, que parecia uma flor púrpura de cujo cálice jorrava luz. Cada uma das princesinhas tinha seu próprio terreno no jardim, no qual podia cavar e plantar a seu bel-prazer. Uma arrumou seu canteiro de flores na forma de uma baleia; outra achou mais interessante moldar o seu como uma sereiazinha; mas a caçula fez o seu bem redondo como o sol e só quis flores rubras como o brilho dele.
Era uma criança curiosa, sossegada e pensativa. Enquanto as irmãs adornavam seus jardins com as coisas maravilhosas que obtinham de navios naufragados, ela não admitia nada além de flores rosa-avermelhadas, que eram como o sol lá no alto, e uma estátua de mármore. A estátua era de um encantador rapaz, esculpida em pura pedra branca, que havia descido ao fundo do mar depois de um naufrágio. Perto dela, a princesinha havia plantado um salgueiro cor-de-rosa, que cresceu esplendidamente e deixava sua fresca folhagem cobrir a estátua até o solo azul, arenoso, do oceano. Sua sombra ganhava um matiz violeta e, como os ramos, nunca ficava parada. As raízes e a copa da árvore pareciam estar sempre brincando, tentando beijar uma à outra.
Não havia nada de que as princesas gostassem mais do que ouvir sobre o mundo dos seres humanos, acima do mar. Sua vovozinha lhes contava tudo o que sabia sobre os navios e as cidades, as pessoas e os animais. Uma coisa em especial as impressionava com sua beleza: saber que as flores exalavam uma fragrância – não havia nenhuma no fundo do mar – e também que as árvores na floresta eram verdes e que os peixes que voavam nas árvores sabiam cantar tão docemente que era um prazer ouvi-los. A avó chamava os passarinhos de peixes. De outro modo, as princesinhas do mar, que nunca tinham visto um pássaro, não a teriam compreendido.
— Quando vocês completarem quinze anos – disse a avó —, vamos deixá-las subir até a superfície e se sentar nos rochedos à luz do luar, para ver os grandes navios passarem. Verão florestas e também cidades.
No ano seguinte, uma das irmãs completaria quinze anos, mas as outras… bem, cada uma era um ano mais nova que a outra, de modo que a mais nova teria de esperar nada menos que cinco anos para subir das profundezas do mar para a superfície e ver como são as coisas por aqui, mas cada uma prometia contar às outras tudo que visse e o que lhe parecia mais interessante naquela primeira visita, pois nunca estavam satisfeitas com o que a avó contava. Havia uma infinidade de coisas sobre as quais ansiavam ouvir. Nenhuma das sereias era mais curiosa do que a caçula, e era também ela, tão quieta e pensativa, a que tinha de suportar a mais longa espera. Em muitas noites, ela se postava à janela aberta e fitava, através das águas azul-escuras, os peixes sacudirem suas nadadeiras e caudas.
Olhava bem para o alto e podia ver a lua e as estrelas, embora sua luz fosse muito pálida – através da água, pareciam muito maiores que aos nossos olhos. Se uma nuvem escura passava acima dela, sabia que era uma baleia que nadava sobre a sua cabeça ou um navio cheio de passageiros. Aquelas pessoas nem sonhavam que uma sereiazinha estendia suas mãos brancas para o casco do navio que fendia as águas. Assim que fez quinze anos, a mais velha das princesas foi autorizada a subir à superfície do oceano. Quando voltou, tinha dezenas de coisas para contar.
— O mais delicioso – ela disse — foi ficar deitada em um banco de areia perto da praia numa noite de lua, com o mar calmo. Foi possível contemplar a grande cidade, onde as luzes brilhavam como milhares de estrelas. Podia ouvir músicas harmoniosas e o ruído de carros e pessoas. Podia ver todas as torres das igrejas e ouvir os sinos tocando e, exatamente por não ter chegado perto de todas essas maravilhas, ansiava ainda mais por todas elas.
Ó, como a irmã caçula bebia aquelas palavras! E, mais tarde, à noite, ficou junto à janela aberta, fitando através das águas azul-escuras, pensando na cidade grande com seus ruídos e luzes, e até imaginou ouvir os sinos das igrejas tocando para ela. No ano seguinte, a segunda irmã teve permissão para subir mar acima e nadar aonde quisesse. Chegou à superfície bem na hora do pôr do sol.
— Foi a visão mais bela de todas – ela contou. — Todo o céu parecia ouro e as nuvens… – Bem, ela simplesmente não conseguia descrever como eram lindas ao passar, em tons de carmesim e violeta, sobre sua cabeça.
Mais veloz ainda que as nuvens, um bando de cisnes selvagens voou como um longo e branco véu sobre a água, rumo ao sol poente. Ela nadou nessa direção, mas o sol se pôs e sua luz rósea foi engolida pelo mar e pela nuvem. Depois chegou a vez da terceira irmã. Era a mais ousada de todas e nadou até um largo rio que desaguava no mar. Avistou admiráveis colinas verdes cobertas com videiras; castelos e fazendas situados no meio de florestas soberbas e imensas; ouviu o canto dos pássaros; e o sol era tão quente que teve de mergulhar muitas vezes na água para refrescar o rosto ardente. Numa pequena enseada, topou com um bando de criancinhas humanas, divertindo-se, completamente nuas, na água. Quis brincar com elas, mas ficaram aterrorizadas e fugiram.
Depois, um animalzinho preto foi até a água. Era um cachorro, mas nunca tinha visto um. O animal latiu tanto que ela ficou assustada e nadou para o mar aberto. Porém, disse que jamais esqueceria a magnífica floresta, as colinas verdes e as lindas criancinhas que sabiam nadar, embora não possuíssem caudas. A quarta irmã não foi tão ousada. Preferiu ficar no meio do mar selvagem, onde a vista se perdia ao longe, todavia foi exatamente isso, ela lhes contou, que tornou sua visita tão maravilhosa. Podia ver por milhas e milhas ao seu redor, e o céu se arredondava em volta da água como um grande sino de vidro. Vira navios, mas a uma distância tão grande que pareciam gaivotas. Os golfinhos brincavam nas ondas e as baleias esguichavam água tão poderosamente de suas narinas que pareciam estar cercadas por uma centena de chafarizes. E agora era a vez da quinta irmã. Como seu aniversário caía no inverno, ela viu coisas que as outras não tinham visto da primeira vez. O mar perdera sua cor azul e adquirira um tom esverdeado, e sobre ele flutuavam enormes icebergs.
— Cada um parecia uma pérola – ela disse —, mas eram mais altos que as torres de igrejas construídas pelos seres humanos.
Apareciam nas formas mais fantásticas e brilhavam como diamantes. Ela se sentara num dos maiores icebergs e todos os navios pareciam ter medo dele, pois passavam navegando rapidamente e muito distante do lugar onde ela estava sentada, com o vento gracejando seus longos cabelos. Mais tarde naquela noite, uma tempestade cobriu o céu de nuvens. Trovões estrondeavam, relâmpagos chispavam e as ondas escuras elevavam os enormes blocos de gelo tão alto que os tiravam da água, fazendo-os reluzir na intensa luz vermelha. Todos os navios recolheram as velas e, em meio ao horror e ao alarme geral, a sereia permaneceu sentada tranquilamente no iceberg flutuante, vendo os relâmpagos azuis ziguezaguearem no mar resplandecente.
Na primeira vez que as irmãs subiram à superfície, ficaram encantadas de ver tantas coisas novas e bonitas. Porém, quando ficaram mais velhas e podiam emergir sempre que queriam, mostravam-se menos entusiasmadas. Sentiam saudade do fundo do mar. E depois de um mês diziam que, afinal de contas, era muito mais agradável lá embaixo – era tão reconfortante estar em casa! No entanto, muitas vezes, ao entardecer, as cinco irmãs davam-se os braços e flutuavam juntas. Suas vozes eram encantadoras, como nenhuma criatura humana poderia possuir. Antes da aproximação de uma tempestade, quando esperavam o naufrágio de um navio, as irmãs costumavam nadar diante do barco e cantar docemente as delícias das profundezas do mar.
Diziam aos marinheiros para não terem medo de mergulhar até o fundo, mas eles nunca entendiam suas canções. Pensavam estar ouvindo os uivos da tempestade e nunca viam as maravilhas que as sereias prometiam. E assim que o navio afundava, os homens se afogavam e somente seus cadáveres chegavam até o palácio do rei do mar. Quando as irmãs subiam pela água de braços dados, a caçula sempre ficava para trás, sozinha, acompanhando-as com os olhos. Teria chorado, mas as sereias não têm lágrimas e sofrem muito mais que nós.
— Ó! Se pelo menos eu tivesse quinze anos – ela dizia. — Sei que vou gostar muito do mundo lá de cima e de todas as pessoas que vivem nele.
Então, finalmente, ela fez quinze anos.
— Bem, agora você logo escapará das nossas mãos – disse a velha rainha, sua avó. — Venha, deixe-me vesti-la como suas outras irmãs.
E pôs no seu cabelo uma coroa de lírios brancos em que cada pétala de flor era metade de uma pérola. Depois, a velha senhora mandou trazer oito grandes ostras para prender firmemente na cauda da princesa e mostrar sua alta posição.
— Ai! Isso dói – disse a Pequena Sereia.
— Sim, a beleza tem seu preço – respondeu a avó.
Como a Pequena Sereia teria gostado de se livrar de todos aqueles adornos e pôr de lado aquela pesada coroa! As flores vermelhas de seu jardim assentavam-lhe muito melhor, mas não ousou fazer nenhuma alteração. — Adeus! – disse ao subir pela água tão leve e límpida quanto as bolhas que se elevam à superfície. O sol acabara de se pôr quando ela ergueu a cabeça sobre as ondas, mas as nuvens ainda estavam tingidas de carmesim e ouro. No alto do céu pálido e rosado, a estrela vespertina iluminava clara e vívida.
O ar estava ameno e fresco, e o mar aprazível. Um grande navio de três mastros estava à deriva na água, com apenas uma vela içada porque o vento estava brando. Os marinheiros estavam refestelados no cordame ou nas jardas. Havia música e canto a bordo e, quando escureceu, uma centena de lanternas foi acesa. Com suas muitas cores, tinha-se a impressão de que as bandeiras de todas as nações flutuavam no ar. A Pequena Sereia nadou até a escotilha da cabine e, cada vez que uma onda a levantava, podia ver através do vidro transparente uma quantidade de homens magnificamente trajados. O mais belo deles era um jovem príncipe, com grandes olhos escuros. Não tinha mais de dezesseis anos. Era seu aniversário e era por isso que havia tanto alvoroço.
Quando o jovem príncipe saiu para o convés, onde os marinheiros estavam dançando, mais de uma centena de foguetes zuniram rumo ao céu num esplendor, tornando o céu tão brilhante quanto o dia. A Pequena Sereia ficou tão assustada que mergulhou, escondendo-se sob a água, mas rapidamente pôs a cabeça para fora de novo. E veja! Parecia que as estrelas lá do céu estavam caindo sobre ela. Nunca vira fogos de artifícios. Grandes sóis rodopiavam ao seu redor; lindos peixes de fogo refulgentes lançavam-se no ar azul, e todo esse brilho se refletia nas águas claras e calmas embaixo. O próprio navio estava tão deslumbrantemente iluminado que se podiam ver não só todas as pessoas que lá estavam como também a corda mais fina.
Que elegante parecia o jovem príncipe quando apertava as mãos dos marinheiros! Ele ria e sorria enquanto a música soava pelo ar da noite agradável. Já era muito tarde, mas a Pequena Sereia não conseguia tirar os olhos do navio ou do belo príncipe. As lanternas coloridas se apagaram; os foguetes não mais subiam no ar; e o canhão cessara de dar tiros. Contudo, o mar estava inquieto e era possível ouvir um som queixoso sob as ondas. Ainda assim, a Pequena Sereia continuou na água, balançando-se para cima e para baixo para olhar a cabine. O navio ganhou velocidade e uma após outra as suas velas foram desferidas. As ondas cresciam, nuvens negras se agrupavam no céu e relâmpagos faiscavam à distância. Uma terrível tempestade estava se formando. Por isso os marinheiros recolheram as velas, enquanto o vento sacudia o grande navio e o arrastava pelo mar impetuoso. As ondas subiam mais e mais altas, até se assemelharem a enormes montanhas, ameaçando derrubar o mastro. Ainda assim, o navio mergulhava como um cisne entre elas e voltava a subir em cristas sublimes e espumosas.
A Pequena Sereia pensou que devia ser divertido para um navio navegar daquele jeito, mas a tripulação pensava diferente. O barco gemia e rangia; suas pranchas sólidas rompiam-se sob as violentas pancadas do mar; o mastro partiu-se ruidosamente em dois, como um junco. O navio inclinou quando a água se precipitou no porão. De repente, a Pequena Sereia percebeu que o navio estava em perigo. Ela mesma tinha de ter cuidado com as vigas e os destroços à deriva. Em certos momentos, ficava tão escuro que não conseguia enxergar nada, mas, então, o clarão de um relâmpago iluminou todos a bordo. Agora era cada por um si. Ela estava à procura do jovem príncipe e, no momento em que o navio se partia, viu-o desaparecer nas profundezas do mar.
Por um instante, ficou bastante entusiasmada, pois pensou que agora ele poderia viver no seu mundo. Mas logo se lembrou que os seres humanos não vivem debaixo d’água e que ele só chegaria morto ao palácio de seu pai. Não, não, ele não podia morrer. Assim, ela nadou entre os destroços que o mar arrastava, indiferente ao perigo de ser esmagada. Mergulhava profundamente e emergia das ondas, e finalmente encontrou o jovem príncipe. Ele mal conseguia nadar no mar tempestuoso. Seus membros fraquejavam, seus belos olhos estavam fechados, e certamente teria se afogado se a Pequena Sereia não tivesse ido a seu socorro. Ela segurou-lhe a cabeça acima da água e abandonou-se com ele aos caprichos das ondas.
Quando amanheceu, a tempestade cessara e não havia rastro do navio. O sol despontou da água, vermelho e resplandecente, e pareceu devolver a cor às faces do príncipe; mas os olhos dele permaneciam fechados. A sereia beijou-lhe a fronte e ajeitou-lhe para trás o cabelo molhado. Aos seus olhos, ele parecia a estátua de mármore que tinha em seu jardinzinho. Beijou-o de novo e fez um pedido para que ele pudesse viver. Logo a sereia viu diante de si terra firme, com suas majestosas montanhas azuis, no alto das quais brilhava a branca neve, parecendo cisnes aninhados. Perto da costa, havia adoráveis florestas verdes e junto a uma delas erguia-se um prédio alto; se era uma igreja ou um convento ela não sabia dizer. Limoeiros e laranjeiras cresciam no jardim e ao lado da porta havia três altas palmeiras. A pequena baía se formava nesse ponto e a água era plenamente calma, embora muito profunda. A sereia nadou com o belo príncipe até a praia, coberta de fina areia branca.
Ali colocou-o sob o sol quente, fazendo um travesseiro de areia para sua cabeça. Sinos soaram do prédio branco e várias moças apareceram no jardim. A Pequena Sereia afastou-se, nadando para bem longe da praia, e escondeu-se atrás de uma pedra grande que se elevava acima da água. Cobriu o cabelo e o peito com espuma do mar para que ninguém pudesse vê-la. Depois ficou espiando para ver quem ajudaria o pobre príncipe. Não demorou muito e surgiu uma jovem. Pareceu muito assustada, mas só por um instante, e correu para buscar ajuda. A sereia viu o príncipe voltar a si, e ele sorriu para todos ao seu redor. Porém, não havia nenhum sorriso para ela, pois ele não tinha ideia de quem o salvara. Depois que foi levado para o prédio, a Pequena Sereia se sentia tão infeliz que mergulhou de volta para o palácio do pai. Ela sempre fora silenciosa e pensativa, mas agora estava mais do que nunca.
Suas irmãs lhe perguntaram o que vira durante sua primeira visita à superfície, mas ela não lhes contava nada. Em muitas manhãs e entardeceres, subia até o local onde deixara o príncipe. Viu as frutas do jardim amadurecerem e observou-as serem colhidas. Viu a neve derreter nos picos. Contudo, nunca via o príncipe e por isso sempre voltava para casa ainda mais cheia de tristeza do que antes. Seu único consolo era ficar em seu jardinzinho, com os braços em torno da estátua de mármore, tão parecida com o príncipe. Nunca mais cuidou das suas flores, que se espalhavam selvagemente ao longo dos caminhos, entrelaçando seus longos galhos nos ramos das árvores, até obscurecer tudo. Por fim, ela não conseguiu mais guardar aquilo consigo e contou tudo a uma de suas irmãs. Logo as outras ficaram sabendo, mas ninguém mais, exceto algumas outras sereias que não diriam nada a ninguém a não ser às suas melhores amigas. Uma delas foi capaz de lhe dar notícias sobre o príncipe. Ela também vira os festejos realizados a bordo e disse mais sobre o príncipe e a localização de seu reino.
— Venha, irmãzinha – disseram as outras princesas. E com os braços nos ombros uma das outras, subiram em uma longa fila até a superfície, bem diante do lugar onde se erguia o castelo do príncipe.
O castelo, construído de uma pedra amarela e luzidia, tinha longas escadarias de mármore, sendo que um dos degraus levava direto para o mar. Esplêndidas cúpulas douradas elevavam-se do teto e, entre as colunas que cercavam toda a construção, havia esculturas de mármore que pareciam vivas. Através do vidro transparente das altas janelas, era possível ver magníficos aposentos ornados com suntuosas cortinas de seda e tapeçarias. As paredes eram cobertas com enormes pinturas e era um prazer contemplá-las. No centro do maior salão, havia uma fonte que lançava seus jorros espumantes até a cúpula de vidro do teto, através do qual o sol brilhava na água e nas belas plantas que cresciam ali. Agora que sabia onde o príncipe vivia, passava muitos pores do sol e muitas noites naquele lugar. Nadava até muito mais perto da costa do que as outras ousavam.
Chegou a avançar pelo estreito canal para ir até a varanda de mármore que projetava uma longa sombra sobre a água. Ali ela se sentava e observava o jovem príncipe, que pensava estar completamente só ao clarão da lua. Muitas vezes, à noite, a Pequena Sereia o via sair ao mar em seu esplêndido barco, com bandeiras hasteadas, ao som de música harmoniosa. Espiava do meio dos juncos verdes, e quando o vento levantava o longo véu branco e prateado do seu cabelo, e pessoas a viam, imaginavam apenas que era um cisne, estendendo as asas. Em muitas noites, quando os pescadores saíam em alto mar com suas tochas, ela os ouvia elogiar o jovem príncipe, e suas palavras a deixavam ainda mais feliz por lhe ter salvado a vida. E ela recordava como aninhara a cabeça dele em seu peito e com que carinho o beijara. Mas ele não sabia nada disso e nunca sequer sonhara que ela existia. A Pequena Sereia foi se afeiçoando mais e mais aos seres humanos e ansiava profundamente pela companhia deles.
O mundo em que viviam parecia tão mais vasto que o seu próprio! Veja, eles podiam navegar o oceano em navios e escalar montanhas íngremes bem acima das nuvens. E as terras que possuíam, suas florestas e seus campos, se estendiam muito além de onde sua vista alcançava. Havia uma porção de outras coisas que ela teria gostado de saber e suas irmãs não eram capazes de responder a todas as suas curiosidades. Por isso, foi visitar sua velha avó, que sabia tudo sobre o mundo superior, como chamava tão apropriadamente os países acima do mar.
— Quando não se afogam – perguntou a Pequena Sereia —, os seres humanos podem continuar vivendo para sempre? Não morrem como nós, aqui embaixo no mar?
— Sim, sim – respondeu a velha senhora. — Eles também terão que morrer, e seu tempo de vida é mais curto que o nosso. Nós por vezes alcançamos a idade de trezentos anos, mas quando nossa vida aqui chega ao fim, simplesmente nos transformamos em espuma na água. Aqui não temos túmulos daqueles que amamos. Não temos uma alma imortal e nunca teremos outra vida. Nós somos como o junco verde. Uma vez cortado, cessa de crescer. Já os seres humanos têm almas que vivem para sempre, mesmo depois que seus corpos se transformam em pó. Elas voam através do ar puro até chegarem às estrelas brilhantes. Assim como subimos à flor da água e contemplamos as terras dos seres humanos, eles atingem belos reinos desconhecidos – regiões que nunca conheceremos.
— Por que não podemos ter uma alma imortal? – a Pequena Sereia perguntou, angustiada. — Eu daria de boa vontade todos os trezentos anos que tenho para viver se pudesse me tornar uma humana por apenas um dia e participar do mundo celestial.
— Você não deveria se preocupar com isso. Somos muito mais felizes e vivemos melhor aqui do que os seres humanos lá em cima.
— Então estou condenada a morrer e flutuar como espuma do mar, a nunca mais ouvir a música das ondas ou ver as lindas flores e o sol vermelho? Não há nada que eu possa fazer para conquistar uma alma imortal?
— Não – disse a velha senhora. — Só se um ser humano a amasse tanto que você importasse mais para ele que pai e mãe. Se ele a amasse de todo o coração e deixasse o padre pôr a mão direita sobre a sua como uma promessa de ser fiel e verdadeiro por toda a eternidade. Nesse caso, a alma dele deslizaria para dentro do seu corpo e você, também, obteria uma parcela da felicidade humana. Ele lhe daria uma alma e, no entanto, conservaria a dele próprio. Mas isso jamais acontecerá. Sua cauda de peixe, que achamos tão bonita, parece repulsiva à gente da terra. Sabem tão pouco sobre isso que acreditam realmente que as duas desajeitadas escoras que chamam de pernas são belas.
A Pequena Sereia suspirou e olhou melancolicamente para sua cauda de peixe.
— Devemos ficar satisfeitas com o que temos – disse a velha senhora. — Vamos dançar e nos alegrar durante os trezentos anos de nossa existência, isso é realmente muito tempo. Depois da morte, poderemos descansar e pôr o sono em dia. Hoje, teremos um baile na corte.
Não se pode fazer ideia na terra de tal magnificência. As paredes e o teto do grande salão do baile eram feitos de cristal espesso, mas transparente. Centenas de conchas enormes, rosa-vermelho e verde-relva, dispostas de cada lado, cada uma com uma chama azul que iluminava todo o salão e, luzindo através das paredes, iluminavam também o mar. Inúmeros peixes, grandes e pequenos, podiam ser vistos nadando em direção às paredes de cristal. As escamas de alguns fulgiam com um brilho púrpura-avermelhado e as de outros, como prata e ouro. No meio do salão, corria um grande rio nos quais moluscos e sereias dançavam ao seu próprio som melodioso. Nenhum ser humano tem voz tão encantadora. Ninguém cantava mais docemente que a Pequena Sereia e todos a aplaudiram. Por um instante, houve alegria em seu coração, pois ela sabia que tinha a voz mais bela em terra ou no mar. Mas, em seguida, seus pensamentos se voltaram para o mundo acima dela. Não conseguia esquecer o belo príncipe e a grande dor de não ter a alma imortal que ele possuía. Assim, se arrastou para fora do palácio do pai e, enquanto todos lá dentro cantavam e se divertiam, foi se sentar em seu jardinzinho, desolada. De repente, ela ouviu o som de uma buzina ecoando através da água e pensou:
Ah, lá vai ele, navegando lá em cima. Aquele a quem amo mais do que meu pai ou minha mãe, ele que está sempre em meus pensamentos e em cujas mãos eu confiaria alegremente minha felicidade. Arriscaria qualquer coisa para conquistá-lo e a uma alma imortal. Enquanto minhas irmãs dançam no castelo de meu pai, vou à procura da feiticeira do mar. Sempre tive um terrível medo dela, mas talvez possa me ajudar e me dizer o que fazer.
E assim, a Pequena Sereia deixou seu jardim e partiu para onde a feiticeira morava, no lado mais distante dos redemoinhos espumantes. Nunca estivera lá antes. Naquele lugar, não cresciam flores nem relva do mar. Não havia nada além do fundo arenoso e cinzento que se estendia até os turbilhões, onde a água rodopiava com o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezas tudo que podia. Tinha de passar pelo meio desses furiosos torvelinhos para chegar até a feiticeira do mar. Por um longo trecho, não havia outro caminho senão pela lama quente e borbulhante – que a feiticeira chamava de seu charco.
A casa da feiticeira ficava atrás do charco, no meio de uma floresta quimérica. Todas as árvores e arbustos eram verdadeiros pólipos, metade animal e metade vegetal. Pareciam serpentes de cem cabeças crescendo do solo. Tinham galhos que pareciam braços longos e viscosos, com dedos tão flexíveis que se assemelhavam a vermes. Nó por nó, da raiz até a ponta, estavam constantemente em movimento e agarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitar do mar e não soltavam mais. A Pequena Sereia ficou apavorada e se deteve à beira da mata. Seu coração palpitava de medo e ela esteve prestes a desistir. Mas então, lembrou-se do príncipe e da alma humana e retomou sua coragem. Ela prendeu em torno da cabeça seu longo e esvoaçante cabelo para que os pólipos não a pudessem agarrar. Depois, cruzou os braços sobre o peito e disparou adiante como um peixe lançado na água, no meio dos sórdidos pólipos, que estendiam em sua direção seus braços e dedos buliçosos.
Ela notou como cada um deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente, com uma centena de pequenos braços que pareciam aros de ferro. Esqueletos brancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundado nas águas profundas olhavam dos braços dos pólipos. Lemes e arcas de navios estavam fortemente agarrados em seus braços, juntamente com esqueletos de animais terrestres e – o mais terrível de tudo – uma sereiazinha, que eles haviam capturado e estrangulado. Chegou então a um grande charco lodoso, onde enormes e corpulentas cobras-d’água ondeavam-se no lamaçal, mostrando seus horrendos ventres amarelo-esbranquiçados. No meio do charco, havia uma casa construída com os ossos de humanos naufragados. Lá estava a feiticeira do mar, deixando um sapo se alimentar na sua boca, assim como as pessoas nutrem às vezes um canário com um torrão de açúcar. Ela chamava as asquerosas cobras-d’água de seus pintinhos e deixava-as rastejar sobre seu peito.
— Eu sei exatamente o que você deseja – disse a feiticeira do mar. — Como você é estúpida! Mas você deve seguir seu caminho, que vai lhe trazer infortúnio, minha linda princesa. Você quer se livrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andar como um ser humano, a fim de que o jovem príncipe se apaixone por você e lhe dê uma alma imortal.
E com isso, a feiticeira soltou uma gargalhada tão alta e maléfica que o sapo e as cobras caíram estatelados no chão.
— Você veio na hora certa – disse a feiticeira. — Amanhã, quando o sol se levantar, eu não serei mais capaz de ajudá-la. Vou preparar um elixir para você. Terá de nadar até a costa com ele antes do nascer do sol, sentar-se na praia e tomá-lo. Sua cauda, então, se dividirá em duas e encolherá para se transformar naquilo que os seres humanos chamam de “belas pernas”. Mas vai doer. Você sentirá como se uma espada afiada a cortasse. Todos que a virem dirão que você é a mais bela humana que já encontraram. Manterá seus movimentos graciosos, nenhuma dançarina jamais deslizará tão suavemente, mas cada passo que der a fará sentir como se estivesse pisando em uma faca afiada, o bastante para fazer sangrar seus pés. Se estiver disposta a suportar tudo isso, posso ajudá-la.
— Sim – disse a Pequena Sereia com voz hesitante, mas voltou seus pensamentos para o príncipe e ao prêmio de uma alma imortal.
— Pense nisso com cuidado – alertou a feiticeira. — Uma vez tomada a forma de um ser humano, nunca mais voltará a ser uma sereia. Você não será capaz de descer nadando ao encontro do palácio de seu pai e de suas irmãs. A única maneira de conseguir uma alma imortal é conquistando o amor do príncipe e fazer com que ele esqueça o pai e a mãe por amor a você. Ele deve tê-la sempre em seus pensamentos e permitir que o padre una suas mãos para que se tornem marido e mulher. Se o príncipe se casar com outra pessoa, na manhã seguinte seu coração se quebrará e você se tornará espuma na crista das ondas.
— Estou pronta – declarou a Pequena Sereia, pálida como uma morta.
— Mas terá que me recompensar – disse a feiticeira. — Você não receberá minha ajuda sem nada em troca. Você tem a mais formidável voz entre todos que aqui habitam no fundo do mar. Provavelmente, pensa que encantará o príncipe com ela, mas terá que dá-la para mim. Vou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minha poção. Você entende, tenho de misturar nela um pouco do meu próprio sangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes.
— Mas se tirar a minha voz, o que me restará? – perguntou a Pequena Sereia.
— Sua encantadora figura – disse a feiticeira —, seus movimentos graciosos e seus olhos expressivos. Com eles, pode simplesmente fascinar um coração humano… Bem, onde está sua coragem? Estire a língua e deixe-me cortá-la fora como pagamento. Depois, receberá sua poderosa poção.
— Assim seja – concordou a Pequena Sereia, e a feiticeira pôs seu caldeirão no fogo para destilar a poção mágica.
— Limpeza antes de tudo – ela disse, enquanto esfregava o recipiente com um feixe de víboras que tinha atado num grande nó.
Em seguida, deu um talho no próprio seio e deixou gotejar o negro sangue no caldeirão. O vapor que subiu criava formas estranhas, assustadoras de se ver. A feiticeira continuava a juntar coisas novas dentro do caldeirão e, quando o elixir começou a ferver, parecia um choro de crocodilo. Finalmente, a poção mágica ficou pronta e era exatamente cristalina como água.
— Aí está você! – disse a feiticeira ao cortar a língua da Pequena Sereia, que agora estava muda e não conseguia falar e cantar.
— Se os pólipos a apanharem quando você retornar pela mata – orientou a feiticeira —, basta jogar sobre eles uma única gota desta poção e os braços e dedos deles serão dilacerados em mil pedaços.
Porém, a Pequena Sereia não precisou disso. Os pólipos se encolheram aterrorizados quando avistaram a luzente poção em sua mão como uma estrela cintilante. E assim, passou rapidamente pela mata, pelo charco e pelos atroadores redemoinhos. A Pequena Sereia pôde contemplar o palácio do pai. As luzes do salão de baile estavam apagadas. Certamente, lá estavam todos dormindo a essa altura. Mas não se atreveu a ir vê-los, pois agora estava muda e prestes a deixá-los para sempre. Ela sentiu como se seu coração fosse partir de tanta dor. Entrou secretamente no jardim, pegou uma flor dos leitos de cada uma das irmãs, soprou mil beijos em direção do palácio e depois subiu à superfície através das águas azul-escuras.
O sol ainda não despontara no horizonte quando ela avistou o palácio do príncipe e subiu os degraus de mármore. A lua esplendia límpida e vívida. A Pequena Sereia bebeu a acre poção e parecia que uma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado. Ela desmaiou e caiu morta. O sol se levantou e, radiante através do mar, acordou-a. Ela sentiu uma dor cruciante. Mas bem ali, na sua frente, estava o belo príncipe. Os olhos dele, negros como carvão, a encaravam tão intensamente que ela baixou os seus, e percebeu que sua cauda de peixe desaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como as que qualquer jovem poderia desejar. Porém, estava completamente nua e assim se envolveu em seu longo e esvoaçante cabelo.
O príncipe perguntou-lhe quem era e como chegara até ali, e ela só conseguia fitá-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis, pois, é claro, não podia falar. Então, ele a tomou pela mão e a levou para o palácio. Cada passo que ela dava, como prenunciara a feiticeira, a fazia sentir dores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadas, mas suportou de bom grado. Caminhou com a leveza de uma bolha de sabão ao lado do príncipe. Este e todos que a viram ficaram maravilhados com a beleza de seus movimentos graciosos.
Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina. Ela era a criatura mais bela no palácio, mas era muda, não conseguia falar e cantar. Lindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e dançaram diante do príncipe e de seus parentes reais. Uma cantou mais lindamente que todas as outras, e o príncipe bateu palmas e sorriu para ela. Isso entristeceu a Pequena Sereia, pois sabia que ela própria podia cantar ainda mais lindamente.
E pensou: Ó, se ele soubesse que dei minha voz para sempre, a fim de estar com ele.
Em seguida, as escravas dançaram uma dança muito elegante, deslizando ao som da mais encantadora música. E a Pequena Sereia ergueu seus belos braços brancos, ficou na ponta dos dedos dos pés e deslizou pelo piso, dançando como ninguém dançara antes. A cada passo, parecia mais e mais formosa e seus olhos atraíam mais profundamente que o canto das moças escravas. Todos ficaram encantados, especialmente o príncipe, que a chamou de sua pequena desamparada. Ela continuou dançando, apesar da sensação de estar pisando em facas afiadas cada vez que seu pé tocava o solo. O príncipe disse que ela nunca deveria deixá-lo e ela teve permissão para dormir do lado de fora de sua porta, em uma almofada de veludo. O príncipe ordenou produzir para ela um traje de amazona para que pudessem andar a cavalo. Cavalgaram juntos por florestas perfumadas, onde ramos verdes roçavam seus ombros e passarinhos cantavam em meio às folhas frescas. Ela subiu com o príncipe ao topo das altas montanhas e, embora seus delicados pés sangrassem e todos pudessem notar o sangue, ela apenas sorria e acompanhava o príncipe até onde podiam ver as nuvens abaixo deles, parecendo um bando de pássaros que viajam para terras distantes. No palácio do príncipe, quando todos dormiam, ela descia a escadaria de mármore e ia refrescar os pés ardentes na água fria do mar. E então, pensava nos que estavam lá embaixo nas profundezas.
Uma noite, suas irmãs subiram de braços dados, cantando melancolicamente enquanto flutuavam sobre a água. Acenou para elas, que a reconheceram e lhes contaram o quão infelizes havia feito a todos. Depois disso, passaram a visitá-la todas as noites, e uma vez ela viu ao longe sua velha avó, que não vinha à superfície do mar havia muitos anos, e também o velho rei do mar com sua coroa na cabeça. Ambos estenderam as mãos para ela, mas não se aventuraram tão perto da costa como as suas irmãs. Com o tempo, ela foi se tornando mais estimada para o príncipe. Ele a amava como se ama uma pequena criança, pois jamais lhe ocorreu fazer dela sua rainha. E, no entanto, ela precisava se tornar sua esposa, pois do contrário nunca receberia uma alma imortal e, na manhã do casamento dele, se dissolveria em espuma do mar.
— Você gosta de mim mais do que a todos? – os olhos da Pequena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braços e beijava sua adorável fronte.
— Sim, você é muito preciosa para mim – dizia o príncipe —, por ter o coração mais amável que todos. E você é mais dedicada a mim que qualquer outra pessoa. Você me lembra uma moça que conheci uma vez, mas que provavelmente nunca verei de novo. Eu estava em um naufrágio e as ondas lançaram-me em terra firme, perto de um templo sagrado, onde várias jovens cumpriam seus deveres. A mais nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida. Eu a vi apenas duas vezes. Ela é a única no mundo a quem eu poderia amar. Porém, você é tão parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minha mente. Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviou você para mim. Nunca nos separaremos.
Ah, mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vida, pensou a Pequena Sereia. Carreguei-o pelo mar até o templo na floresta e esperei na espuma que alguém viesse ajudá-lo. Vi a bonita jovem que ele ama mais do que a mim. Suspirou profundamente, pois não sabia derramar lágrimas. Ele diz que a menina pertence ao templo sagrado e que por isso nunca retornará ao mundo. Eles nunca se encontrarão novamente. Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias. Eu vou cuidar dele, amá-lo e dar minha vida por ele.
Não muito tempo depois, houve um rumor de que o príncipe se casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho, e por isso ele estava equipando um soberbo navio. O príncipe ia fazer uma visita a um reino vizinho – era assim que diziam, dando a entender que estava indo ver a noiva. Ele tinha uma grande comitiva, mas a Pequena Sereia sacudia a cabeça e ria. Conhecia os pensamentos do príncipe muito melhor do que qualquer outra pessoa.
— Eu tenho que ir – ele disse a ela. — Tenho de visitar essa princesa, porque meus pais insistem nisso. Mas eles não podem me forçar a trazê-la para cá como minha esposa. Nunca poderia amá-la. Ela não é bela como a moça do templo, a quem você se assemelha. Se eu fosse forçado a escolher uma noiva, preferiria escolher você, minha querida mudinha, com seus olhos expressivos.
Então, beijava a boca rosada da sereia, brincava com seu longo cabelo e pousava sua cabeça contra seu coração, fazendo-a sonhar com a felicidade humana e uma alma imortal.
— Você não tem medo do mar, não é, minha querida mudinha? – ele perguntou no convés do esplêndido navio que os transportaria ao reino vizinho. E ele lhe falou das poderosas tempestades e de calmarias, dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulhadores tinham visto lá embaixo. Ela sorria às histórias dele, pois sabia melhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar.
À noite, quando havia lua sem nuvens e todos estavam dormindo, exceto o timoneiro em seu leme, a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio, olhando para baixo através da água clara. Tinha a impressão de poder ver o palácio do pai, com sua velha avó postada no alto dele com a coroa de prata na cabeça, tentando enxergar por entre a rápida corrente na quilha do navio. Em seguida, suas irmãs apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios de tristeza, agitando suas mãos brancas. Acenava e sorria para elas, e teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para ela. Mas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmãs mergulharam, fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira era apenas espuma na água.
Na manhã seguinte, o navio entrou no porto da magnífica capital do rei vizinho. Os sinos das igrejas estavam tocando e, das torres, podia-se ouvir o toque de trompetes. Soldados saudaram com reluzentes baionetas e bandeiras coloridas. Todos os dias, havia festejo. Bailes e espetáculos se sucederam, mas a princesa ainda não tinha aparecido. As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educada num templo sagrado, onde estava aprendendo todas as virtudes reais. Finalmente, ela chegou. A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve que admitir que nunca vira pessoa mais encantadora. Sua pele era clara e delicada e, por trás dos cílios longos e escuros, seus olhos azuis sorridentes brilhavam com muita sinceridade.
— É você – disse o príncipe. — Você é aquela que me salvou quando estava estendido na praia, semimorto.
E estreitou nos braços sua noiva, de face corada.
— Ó, estou muito feliz – ele disse à Pequena Sereia. — Meu desejo mais caro, mais do que eu ousava esperar, foi satisfeito. Você compartilhará da minha felicidade, porque é mais devotada a mim do que ninguém.
A Pequena Sereia beijou a mão dele e sentiu como se seu coração estivesse partido. O dia do casamento dele significaria a sua morte e ela se transformaria em espuma nas ondas do oceano. Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percorriam as ruas para proclamar o noivado. Óleo perfumado queimava em preciosas lâmpadas de prata em cada altar. O padre balançava o incensário enquanto o noivo e a noiva uniam as mãos e recebiam a bênção do bispo. Vestida de seda e ouro, a Pequena Sereia segurava a cauda da noiva, mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela música festiva e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados. Ela pensava em sua última noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo.
Na mesma noite, os noivos embarcaram no navio. Os canhões troavam, as bandeiras brandiam e, no centro do navio, fora erguida uma suntuosa tenda de púrpura e ouro. Estava repleta de luxuosas almofadas para os recém-casados, que deveriam dormir ali naquela noite fresca e calma. As velas inflaram com a brisa e o navio deslizou leve e suavemente sobre os mares claros. Quando escureceu, acenderam lanternas de várias cores e os marinheiros dançaram alegremente no convés. A Pequena Sereia não pôde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergido do mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta. E agora ela entrou na dança, desviando e precipitando-se com a leveza de uma andorinha acuada.
Clamores de admiração a cumprimentaram de todos os cantos. Nunca antes ela dançara com tanta elegância. Era como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados pés, mas ela não sentia nada, pois a ferida em seu coração era muito mais dolorosa. Ela sabia que aquela era a última noite que veria o príncipe, por quem abandonara sua família e seu lar, sacrificara sua linda voz e sofrera horas de agonia sem que ele suspeitasse de nada. Era a última noite em que respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo e o céu estrelado. Uma noite eterna, sem pensamentos ou sonhos, aguardava por ela, que não tinha alma e nunca ganharia uma. Tudo era regozijo e diversão a bordo até muito depois da meia-noite. Ela riu e dançou com os outros, embora em seu coração ruminasse a morte. O príncipe beijava sua adorável noiva, que brincava com seu cabelo escuro e, de braços dados, os dois se retiraram para a magnífica tenda. O navio estava tranquilo e silencioso.
Apenas o timoneiro estava junto ao seu leme. A Pequena Sereia inclinou-se com seus braços brancos na amurada e olhou para o leste, em busca do sinal da rósea aurora. O primeiro raio do sol, ela sabia, traria sua morte. De repente, viu suas irmãs emergindo. Estavam tão pálidas como ela própria, mas seus longos e belos cabelos não mais ondulavam ao vento – tinham sido cortados.
— Demos nosso cabelo à feiticeira – disseram elas — para que nos ajudasse a salvá-la da morte que a espera esta noite. Ela nos deu um punhal, veja, aqui está. Vê como é afiado? Antes do nascer do sol, você tem de cravá-lo no coração do príncipe. Então, quando o sangue morno dele tocar seus pés, eles se unirão e se transformarão numa cauda de peixe, e você será sereia de novo. Poderá voltar conosco para a água e viver seus trezentos anos antes de ser transformada em espuma do mar salgado. Apresse-se! Ou ele ou você morrerá antes do amanhecer. Nossa velha avó tem sofrido tanto que seu cabelo branco tem caído, como os nossos sob a tesoura da feiticeira. Mate o príncipe e volte para nós! Mas não demore, veja as estrias vermelhas no céu. Em poucos minutos, o sol despontará e então você morrerá. – Com um suspiro estranho e profundo, elas submergiram.
A Pequena Sereia afastou a cortina púrpura da tenda e viu a bela noiva adormecida, com a cabeça apoiada no peito do príncipe. Inclinando-se, ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para o céu, onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso. Fitou o punhal afiado em sua mão e novamente fixou os olhos no príncipe, que sussurrou o nome da noiva em seus sonhos – só ela estava em seus pensamentos. Levantou as mãos que tremiam enquanto empunhava o punhal – e então ela o lançou para longe nas ondas. A água ficou vermelha onde caiu, e algo parecido com gotas de sangue ressumou dela. Com um último olhar para o príncipe, os olhos esmaecidos, ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma.
E logo o sol começou a subir do mar. Seus raios cálidos e suaves caíram sobre a espuma fria como a morte, mas a Pequena Sereia não tinha a sensação de estar morrendo. Ela viu o sol esplendoroso e, pairando ao seu redor, centenas de criaturas adoráveis – podia perfeitamente, através delas, ver as velas brancas do navio e as nuvens rosadas no céu. E a voz delas era a voz da melodia, embora etérea demais para ser ouvida por ouvidos mortais, assim como nenhum olho mortal poderia contemplá-las. Não tinham asas, mas sua leveza as fazia flutuar no ar. A Pequena Sereia viu que tinha um corpo como o delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma.
— Onde estou? – perguntou, e sua voz soava como a dos outros seres, mais etérea do que qualquer música terrena podia soar.
— Entre as filhas do ar – responderam as outras. — Uma sereia não possui uma alma imortal, e jamais pode ter uma a menos que conquiste o amor de um ser humano. A eternidade de uma sereia depende de um poder que independe dela. As filhas do ar tampouco têm uma alma eterna, mas podem conseguir uma através de suas boas ações. Devemos voar para os países quentes, onde o ar pestilento significa morte para os seres humanos. Devemos levar brisas frescas. Devemos espalhar a fragrância das flores através do ar e enviar consolo e cura. Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentos anos, conquistaremos uma alma imortal e teremos participação na felicidade eterna da humanidade. Você, pobrezinha, tentou com todo o seu coração fazer o que estamos fazendo. Você sofreu e perseverou e se elevou ao mundo dos espíritos do ar. Agora, com trezentos anos de boas ações, você também pode ganhar uma alma imortal.
A Pequena Sereia levantou seus braços de cristal para o céu e, pela primeira vez, conheceu o gosto das lágrimas. No navio, havia muito alvoroço e sons de vida por todo lado. A Pequena Sereia viu o príncipe e a bela noiva à sua procura. Com enorme melancolia, eles fitavam a espuma perolada, como se soubessem que ela se precipitara nas ondas. Invisível, ela beijou a fronte da noiva, sorriu para o príncipe e em seguida, com as outras filhas do ar, subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o céu.
— Assim flutuaremos por trezentos anos, até finalmente chegarmos ao reino celestial.
— E podemos alcançá-lo ainda mais cedo – sussurrou uma das suas companheiras. — Invisíveis, flutuamos para dentro de lares humanos em que há crianças, e para cada dia que encontramos uma boa criança, que faz merecer o amor dos pais, Deus abrevia nosso tempo de sofrimento. A criança nunca percebe quando voamos em seu quarto e sorrimos com alegria, e assim um ano é reduzido dos trezentos. Mas quando vemos uma criança perversa ou maldosa, então, derramamos lágrimas de dor, e cada lágrima acrescenta mais um dia ao nosso tempo de provação.
Fim.
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