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A Morte de Aquiles

A Guerra de Tróia estava no auge da sua fúria. Após nove anos de cerco à cidade de sólidas muralhas, Aquiles, o maior dos gregos, já havia imortalizado o seu nome por meio de diversas façanhas. Fora ele, por exemplo, quem matara Heitor, filho do rei Príamo, o maior dos troianos; fora ele quem vencera Pentesiléia, rainha das Amazonas, em duelo singular; fora ele, também, quem vencera o gigantesco Mêmnon, filho de Aurora e guerreiro da nobre estirpe dos etíopes.

Aquiles, após abater Mêmnon, sobrinho de Príamo, estava agora tomado por uma grande cólera, como até então jamais havia experimentado — nem mesmo quando da morte de seu amigo Pátroclo, que tanta dor e mágoa lhe causara.

— Agamenon — disse Aquiles ao chefe dos aqueus -, meu coração não pode mais suportar tanta arrogância por parte desses troianos, que já há quase dez anos nos mantêm humilhados do lado de fora destas malditas muralhas! Sim, meu coração anseia por derrubar de uma vez estas portas que nos impedem o acesso à cidadela! Ele anseia também pela volta à nossa casa, com os côncavos navios repletos das riquezas que Ílion inteira esconde em suas casas, templos e palácios!

Nesse instante, Tétis, deusa marinha e mãe de Aquiles, inspirou ao chefe grego estas palavras:

— Aquiles, audaz e implacável filho de Peleu, lembre-se do funesto presságio que paira sobre a sua cabeça: desde sempre foi predito que você jamais viria transpor as portas Céias, que resguardam as mulheres e os tesouros da sagrada Tróia.

— O que tiver de ser repousa sobre os joelhos dos deuses — disse Aquiles, cuja impaciência chegara ao limite. — Jamais um guerreiro deixou de cumprir os mandamentos de seu peito por receio de meros presságios ou vaticínios. Aos adivinhos, os presságios; aos guerreiros, a espada. Além do mais, uma nova morte pesa sobre meu coração, a de Antíloco, filho de Nestor e leal companheiro que a crueldade troiana fez baixar recentemente à morada das sombras.

E tomando de sua lança, Aquiles ordenou aos seus mirmidões — guerreiros da Tessália, seus comandados — que o seguissem de lanças em riste.

Uma nova carnificina começou, então. Os cadáveres dos troianos juncavam o chão em frente às muralhas de Tróia, fazendo transbordar as águas do rio Escamandro, que corre perto com suas águas revoltas.

— Adiante mirmidões de sólidos escudos! — bradava o filho de Tétis. -Grandes recompensas os aguardam atrás destas paredes erguidas por duas divindades!

No alto das muralhas, Príamo, rei da Troada, acompanhava apavorado o massacre dos seus homens. Ao seu lado estava seu filho Páris, raptor da bela Helena, que abandonara seu esposo Menelau, em Argos, para ir viver com o belo irmão de Heitor.

— Páris, meu filho, parece que desta vez aquele terrível homem transporá as sólidas portas de nossa sagrada Tróia! — disse Príamo, aterrado com a aproximação de Aquiles e de seus furiosos mirmidões.

Páris, sem responder, cogitava sobre as terríveis conseqüências que estavam prestes a se abater sobre si e toda a cidade fundada por Ilos, de nobre memória. As recriminações de seus irmãos e os olhares de ódio de seus compatriotas ainda estavam bem presentes em sua mente.

Agora que tudo parecia perdido, podia perceber, mais do que nunca, aqueles mesmos olhares acusativos caírem sobre si como pequenos dardos envenenados.

Na verdade, o esbelto Alexandre — como também era conhecido -já tentara anteriormente, de algum modo, chamar a si a responsabilidade para a solução daquele conflito, quando propôs a Menelau, o marido ultrajado, um combate singular entre ambos, como forma de resolver a disputa. Entretanto, levara a pior, e se a própria Vênus não o tivesse ocultado em uma nuvem e levado para seus aposentos, dentro das muralhas protetoras, estaria agora morto — tão morto quanto a maioria de seus muitos irmãos, entre os quais Heitor, que tanto o censurara por suas atitudes levianas.

Enquanto Páris refletia sobre tudo isso, o bravo Aquiles, surdo a tudo, continuava a investir com fúria nunca vista, cortando braços, arrancando cabeças e pisoteando os corpos abatidos, como um leão que quando avança sobre um redil de ovelhas se atraca em todas, indiscriminadamente, movido apenas pela gana de enterrar as compridas unhas no pêlo fofo de suas vítimas, até torná-lo tinto do sangue negro e inebriante.

Aquiles estava agora diante das portas Céias. Apenas alguns bravos combatentes troianos ainda restavam diante da sua fúria incontrolável. Então uma voz, que não era humana, partiu do alto das muralhas:

— Aquiles, temerário! Volta os passos para trás, eis que já foi determinado pelos deuses que jamais vai colocar os pés dentro destas muralhas!

Era Apolo, filho de Júpiter e Latona, quem lhe dirigia essas acerbas palavras. Tétis, mãe de Aquiles, oculta sob a forma de um de seus soldados, tentava fazê-lo retroceder:

— Eia, Aquiles valoroso, voltemos ao nosso acampamento, pois é voz mortal quem lhe adverte de grave dano à sua pessoa!

— Cale-se, covarde, e retroceda sozinho, se assim lhe apraz! — disse o filho de Tétis, empurrando rudemente o soldado, sem saber que afastava a própria mãe de chorosos olhos. —

Hei de arrancar estas portas com meus próprios braços, e não serão vãs ameaças, ditadas por lábios mortais ou imortais, que me impedirão de levar adiante um ato de justa vingança que clama aos céus!

— Aquiles, a ira faz você blasfemar e invocar os deuses ao mesmo tempo! — disse Apolo, enfurecido pela audácia daquele homem. — Lembre que, ao fim e ao cabo, é mortal como todos os outros que vibram as lanças e os escudos junto de você. Até Sarpedon, filho do deus supremo, também baixou, de há muito, às sombrias moradas. Se você teimar na impiedade, terá, ainda com mais razão, o mesmo destino.

Aquiles, contudo, permaneceu surdo às funestas advertências: de espada em punho avançava resolutamente para as imensas portas, enquanto sua mãe, Tétis, de pés prateados, afastava-se, vencida pelos fados inexoráveis.

— Eia, mirmidões, arremetam às portas com este aríete feito de sólido carvalho e afiadíssima ponta! — disse o herói, pondo todo o empenho em sua voz.

Páris, ao alto, penava em seu desespero, pensando no que poderia fazer para deter aquele terribilíssimo homem, quando escutou a voz de Apolo soar a seu lado:

— Páris, nutrido pelos deuses, apreste ligeiro o seu arco e escolha a melhor das flechas!

— Aquiles é invencível!… — bradou Páris ao filho de Latona. — Seu corpo, banhado nas águas do Estige, é invulnerável, e seta alguma poderá feri-lo.

Tétis, num último gesto de amor materno, aproximou-se, então, de Apolo, e lhe disse estas palavras:

— Apolo, filho de Júpiter soberano! Toma antes uma de suas próprias flechas, se queres, para alvejar meu filho, eis que suas flechas tiram a vida sem causar dor.

O filho de Júpiter acedeu e, estendendo a Páris uma de suas próprias flechas, lhe disse em seguida:

— Toma e faz o que digo. Quanto ao rumo que a seta seguirá, não se preocupe, pois cabe a mim dar-lhe o rumo correto.

Páris ajustou a seta fatal ao seu arco e espichou a sólida corda até que as duas extremidades do arco, feito de fina e maleável madeira, se unissem.

— Dispara agora, filho de Príamo! — ordenou o deus solar.

Os dedos de Páris largaram a extremidade do dardo, e este partiu com um terrível assobio em busca do seu alvo. Apolo, arremessando-se junto com o dardo, foi conduzindo-o até o seu alvo, que era o calcanhar direito de Aquiles. O guerreiro, alvejado pela seta mortal, sentiu o pé fraquejar, embora dor alguma lhe lancinasse as carnes.

— Fui alvejado… — gritou Aquiles, compreendendo, num instante, que seu fim se aproximava.

Arrancando o dardo do calcanhar, que sangrava copiosamente, mesmo assim o filho de Peleu ainda encontrou forças para continuar batalhando. “Hei de cair somente depois que meus mirmidões tiverem rompido as portas que dão acesso à cidadela!”, pensava ele, brandindo com fúria redobrada a sua espada encharcada de sangue inimigo.

Aquiles avançou, cada vez com maior dificuldade, pois a sombra da Morte começava a descer sobre seus olhos e, após haver semeado o pânico entre os troianos, apoiou-se sobre o madeiro sólido e instransponível de uma das gigantescas portas Céias. Seus joelhos fraquejaram pela última vez, e sentiu que sua alma começava a descer ao Hades sombrio para ir fazer companhia aos companheiros mortos.

— O destino de Tróia está, desde sempre, também decretado! — bradou Aquiles, nos últimos arrancos de sua vida quase extinta. — E tão certo quanto agora cumpro meu negro fado, chegará muito em breve a vez de vocês também cumprirem o seu! Não terão como escapar, e então sentirei espumar em minha boca, mesmo nas moradas sombrias, o sumo feliz da vingança!

Aquiles cerrou seus lábios e sua armadura finalmente retiniu sobre o chão, com imenso estrondo, cobrindo-se de seu próprio sangue ajuntado ao pó.

Grande júbilo ergueu-se do alto das muralhas: Príamo, aliviado, via exterminado, de uma vez por todas, o flagelo grego, matador de troianos e de seu querido filho Heitor.

Começava nesse instante, porém, uma outra batalha, agora pelos despojos do maior dos aqueus. Ajax e Ulisses, companheiros fiéis, arremessaram-se ao corpo para impedir que mãos inimigas o raptassem, apossando-se de sua armadura gloriosa, fabricada pelas próprias mãos de Vulcano, inexcedível artífice, e levassem seu corpo para dentro das muralhas, para ser esquartejado e lançado aos dentes corruptos dos cães de Tróia. Era a vez, agora, de Aquiles ter seu corpo arrastado de um a outro lado e coberto de sangue e de pó, como acontecera a tantos outros desde o começo daquela terrível e cruenta guerra.

Enéias, pelos troianos, forcejava junto com os seus para apoderar-se do corpo, enquanto que Ajax e Ulisses os repeliam com toda a fúria. Glauco, primo de Sarpedon morto, conseguira laçar os pés esfolados de Aquiles e já ia arrastando o corpo até as hostes troianas, quando Ajax, arremessando um dardo certeiro, prostrou-o sem vida no chão.

E assim, ao redor do corpo ensangüentado do filho de Tétis, foram caindo, às dezenas, os guerreiros que lutavam em busca do prêmio mais ambicionado: o corpo e as armas de Aquiles, filho de um mortal e uma deusa.

Finalmente, os gregos levaram a melhor e conduziram o corpo de Aquiles para as suas tendas. Lá o herói recebeu os rituais fúnebres devidos, sendo queimados seus despojos numa imensa pira, sob o choro de todos os companheiros, e até dos deuses, que do alto lamentavam a morte do maior guerreiro que o mundo já vira. Tétis, sua mãe, veio das profundezas do mar, junto com suas nereidas, coberta de luto, e durante toda a cerimônia não cessou de lamentar a morte de seu querido filho. Depois, as cinzas de Aquiles foram depositadas junto às de Pátroclo, amigo e fiel companheiro de armas, conforme o seu desejo.

Há uma ilha na foz do Danúbio que a tradição chama de Ilha Branca; para lá Aquiles teria sido levado pelos deuses, onde estaria vivendo até hoje, juntamente com seus companheiros Pátroclo e Antíloco, cercados de adoráveis ninfas e exercitando-se nas armas e esportes viris. E

todo marinheiro que se preza, se alguma vez contornou aquelas costas, gaba-se sempre de haver escutado, ao longe, o retinir das armas se entrechocando e o riso e o canto dos amigos soando harmoniosamente em lautos banquetes.