Esta comédia foi escrita por Monteiro Lobato, especialmente para ser representada na Biblioteca Infantil Municipal de São Paulo, a 8 de janeiro de 1938.
PERSONAGENS: Dona Benta, Narizinho, Pedrinho, Tia Nastácia, o Visconde de Sabugosa, Emília, a menina da Capinha Vermelha e um lobo, como são imaginados nas “Reinações de Narizinho” do mesmo autor.
ATO ÚNICO
CENÁRIO: Sala de jantar duma modesta casa de fazenda — O Sítio de Dona Benta. Dona Benta está em cena examinando várias peças de roupa de Pedrinho, amontoadas sobre a mesa. Há uma cadeira comum, de pernas serradas — cadeira de velha.
DONA BENTA — Não sei o que Pedrinho faz dos botões. Com certeza os come. Toda a semana levo consertando a roupa dele e pregando botões. Olhem só este paletó sem um só botão e sem bolsos também. Parece incrível! (toma aquele paletó e senta-se na cadeira de pernas serradas junto à qual está a cesta de costura) Nastácia (pausa) Nastácia!
UMA voz DE DENTRO — Já ouvi, Sinhá. Já vou indo (Nastácia aparece enxugando as mãos no avental)
TIA NASTÁCIA — Que é, Sinhá?
DONA BENTA — Onde andam os meninos? Saíram cedo e até agora nem sinal.
TIA NASTÁCIA — Onde andam!… Por esses mundos afora, Sinhá, fazendo quanta estrepolia há. Aqueles diabretes são “capaz” de tudo, Sinhá. Depois que deram comigo na Lua, e me deixaram lá cozinhando para São Jorge e com aquele horrível dragão que me espiava e lambia os beiços com a língua de ponta de flecha, eu não acho nada impossível. Credo! Só de me lembrar disso sinto ainda um arrepio no corpo…
DONA BENTA — A Emília foi também?
TIA NASTÁCIA — Se foi! A Emília está virando a Lampiãozinha do bando, depois que se apanhou dona daquele boi dum chifre só na testa, o tal ri… ri…
DONA BENTA — Rinoceronte. TIA NASTÁCIA — É isso. Depois que se apanhou dona e amiga íntima do tal “rinoceronte”, está que está uma rainha, de tão mandona. Diz cada desaforo para mim, Sinhá, que só vendo. Me destrata de “anarfabeta” e “inguinorante” para baixo, a pesti- nha, como se não fosse eu que fizesse ela.
DONA BENTA — Que a fizesse, Nastácia. Olhe a gramática.
TIA NASTÁCIA — (suspirando) — Inda mais essa agora, a tal gramática, como se não fosse pouca a minha trabalheira na cozinha, com o raio do ri… “rinoceronte” no quintal me espionando o tempo inteiro, tal qual o dragão. Eu é porque…
DONA BENTA — Espere: Que horas são?
TIA NASTÁCIA — (que tinha vista curta, trepa a uma cadeira para ver as horas no relógio de parede) — Quatro e meia, quase horas de jantar. Sinhá não se assuste, que a cambadinha não tarda aí. Garanto. Quando a fome aperta vêm todos ventando nem que seja da Lua. Nesses países encantados onde costumam passear — ou aventurar, como eles dizem — parece que há de tudo — fadas, príncipes que viram ursos, castelos de ouro e marfim, tudo, menos comida.
DONA BENTA — E que está fazendo para o jantar?
TIA NASTÁCIA — Sopa de batata, salsa, galinha ensopada…
DONA BENTA — Que galinha matou?
TIA NASTÁCIA — Aquela franga sura de seis dedos no pé direito.
DONA BENTA — (recordando-se) — Espere. Essa franga parece que era da Emília, não? Ouvi aí um negócio entre a Emília e Narizinho a propósito dessa sura.
TIA NASTÁCIA — Eu sei, Sinhá. A franga era de Narizinho, mas Narizinho vendeu o pé da franga para a Emília e me deu o resto, de modos que matei a franga e guardei o pé de seis dedos para a Emília, que anda agora com mania de fazer um museu de coisas esquisitas. Tem cada uma…
Barulhada no terreiro vem interromper a conversa. É o bandinho que chega. Entram Narizinho, Pedrinho, Emília e o Visconde, atropeladamente.
NARIZINHO — Bom dia, ou boa tarde, vovó (corre a beijar a mão da velha; Pedrinho faz o mesmo.)
DONA BENTA — Então? Por onde andaram?
NARIZINHO e PEDRINHO — (ao mesmo tempo em atropelo, um dizendo uma frase e outro, outra) — Nem queira saber, vovó! Tivemos uma aventura das mais perigosas. Na Floresta dos Tucanos Amarelos. Sim, lá perto da casa da menina da Capinha Vermelha. Ela não estava em casa.
DONA BENTA — (levando as mãos aos ouvidos) — Parem! Vocês me deixam tonta, tonta. Cada um fale por sua vez. Vamos, comece, Narizinho.
EMÍLIA — (que está a um canto mostrando qualquer coisa ao Visconde) — Não seja bobo! Eu sei o que faço. (e começa a cochichar-lhe ao ouvido)
NARIZINHO — Pois é isso, vovó. Fomos parar bem perto da casa da Capinha Vermelha. Mas sabe quem encontramos? O lobo! Aquele horrível lobo que comeu a avó dela!…
TIA NASTÁCIA — (que já se ia retirando para a cozinha, entrepara ao ouvir a palavra “lobo” e persigna-se, murmurando, “Credo!”)
NARIZINHO — (continuando) E sabe o que a Emília fez? Desafiou o lobo! “Vá lá no sítio comer Dona Benta para ver o que acontece, “sêo” cara de coruja seca!” disse ela bem no focinho dele, imagine! Eu, Pedrinho e o Visconde, assim que vimos o lobo, não quisemos saber de histórias e trepamos a uma árvore bem alta. Ele estava com cara de fome velha. Mas Emília nem se mexeu. Plantou-se diante dele com as mãozinhas na cintura, a dizer os maiores desaforos que um lobo ainda ouviu. Até de analfabeto o xingou.
DONA BENTA (para a Emília) — Emília, como é que você faz isso? Nunca devemos ofender os passantes, e principalmente um passante perigoso como esse lobo. Por vingança ele é bem capaz de vir rondar aqui a casa e no mínimo me apanhar umas galinhas.
EMÍLIA — Pois que venha, é isso mesmo que eu quero. Provoquei-o de propósito — e já botei o rinoceronte de guarda na porteira, de chifre armado. Assim que o lobo aparecer com aquele focinho e começar a farejar o ar para ver se tem avó de menina aqui dentro…
DONA BENTA — Que história é essa de avó de menina?
EMÍLIA — Esse lobo só se alimenta de avós de meninas. Comeu a avó de Capinha e gostou do petisco.
DONA BENTA — Que bobagem, Emília! Você bem sabe que o lobo que comeu a avó de Capinha foi morto a machadadas por um lenhador.
EMÍLIA — O lenhador não o matou bem matado e o lobo reviveu outra vez com mais fome de velha ainda. Cheguei bem pertinho e vi no corpo dele os sinais das machadadas.
PEDRINHO — Não perca tempo com essa boba, vovó. Ela não viu sinal nenhum. Era um lobo à-toa, como outro qualquer. Pergunte ao Visconde.
VISCONDE — Na minha opinião… (.Emília finca as mãos na cintura e encara o Visconde com tais olhos que ele treme e diz justamente o contrário do que ia dizendo) … esse lobo era exatamente o mesmo que comeu a avó de Capinha. (Emília vitoriosa põe a língua para Pedrinho — Ahn!)
Barulho fora. Alguém bate com aflição na porta. “Abram!” Pedrinho corre a abrir, mas primeiro espia quem é pelo buraco da fechadura. “Uma menina!” exclamou. Abre a porta. Aparece a menina da Capinha Vermelha.
CAPINHA — [Entra de ímpeto e fecha a porta, ficando a escorá-la, enquanto volta-se para os demais, de olhos arregalados) — O lobo! O lobo que comeu vovó!…
Grande pânico. Dona Benta abana-se com o paletó de Pedrinho: está com as pernas tão moles que não pode erguer-se da cadeira. O Visconde trepa em cima da mesa, tira dum prego o binóculo de Dona Benta e põe-se a espiar o terreiro pelo vão da janela.
VISCONDE — Não vejo lobo nenhum. Foi rebate falso. Esperem… Estou vendo sim, lá longe uma coisa.’ Parece o cachorro do compadre Teodorico. Muito longe. Um quilômetro daqui.
EMÍLIA — O Visconde é um idiota. Não sabe ver lobo. (corre para ele e toma-lhe o binóculo e olha) É lobo, sim. Cachorro do compadre Teodorico o nariz dele. Lobíssimo! Com dois olhos que são duas tochas. E dentes arreganhados. Vem babando de fome. Já percebeu que aqui há avó de menina. Pedrinho, feche Dona Benta dentro do guarda-comida!
DONA BENTA — Nossa Senhora da Aparecida! Esta criançada me acaba pondo maluca. Não há mais sossego neste sítio. Cada dia uma coisa — ou é rinoceronte, ou é dragão de São Jorge ou é lobo… (abana-se aflita)
CAPINHA — Chamem o homem do machado!
NARIZINHO — Nesta casa o único homem é Pedrinho, que só usa bodoque.
CAPINHA — Então não sei como vai ser, porque sem homem com machado não há meio de vencer esse lobo.
EMÍLIA — (Sempre a observar pelo binóculo) — Lá vem vindo ele! Vem lambendo os beiços. Já farejou duas velhas aqui dentro. É exatamente o mesmo que comeu a avó da Capinha. Estou vendo as cicatrizes das machadadas e até estou vendo um pedaço de machado que ficou na testa dele…
DONA BENTA — Que olhos a Emília tem!
EMÍLIA — (continuando) — Já passou a porteira… Está no terreiro. Vem vindo, vem vindo… Parou para farejar o mastro de São João. Vai comer o mastro!…
DONA BENTA — (consigo) — Será possível?
EMÍLIA — (continuando) — Não comeu o mastro, não. Vem vindo para a varanda. Chegou, (pula na mesa e tranca a janela)
Todos se agitam, menos Dona Benta, que não consegue despegar-se da cadeira, embora o tente. Pedrinho empurra um móvel para escorar a porta. “Ajuda, garotada, que o negócio é sério.” Emília ajuda, levando a vassoura para fazer peso na porta. Narizinho reflete, de mão no queixo. Nisto ouve-se um arranhar de tábua. É o lobo arranhando a porta.
EMÍLIA — Pronto! está aí ele arranhando a porta e quero ver agora como vocês se arranjam, (para Dona Benta) E a senhora que é tão sabida, de tantos livros e dicionários que leu, quero ver como se salva. Veja no seu dicionário, que ensina tudo quanto se quer, se ensina jeitos de espantar lobo. Eu não preciso ir ao dicionário. Sei um jeito que é tiro e queda.
NARIZINHO — Então diga logo. Tenha dó da aflição de vovó.
PEDRINHO — (fazendo muxoxo) — Não dou um vintém pelo tal jeito.
EMÍLIA — (muito lampeira) — Só direi se Narizinho me der uma coisa…
NARIZINHO — Já sei. Quer que eu dê a minha coleção de potinhos de barro para você botar no museu, não é? Dou, sim, diga o jeito agora.
EMÍLIA — (mais lampeira ainda) — Todos são testemunhas de que Narizinho me deu os potinhos, não é assim? Muito bem. Nesse caso direi que meu rinoceronte já está avisado de tudo e logo que eu der um assobio ele investe contra o lobo e o espeta, bem espetado, no seu chifre pontudo.
DONA BENTA — Pois dê logo esse assobio, Emília, e não nos atormente mais. Não seja tão mazinha.
EMÍLIA — Esperem. Para dar o assobio eu quero que Pedrinho me dê aquele…
PEDRINHO — O cavalinho sem rabo, não é? Pois não dou. Não tenho medo de lobo. Você é uma cigana, mas comigo não tira farinha.
O lobo arranha com mais força a porta e dá uns roncos terríveis, pondo-se em seguida a uivar. Pedrinho amedrontou-se.
PEDRINHO — Isto é, só dou se vovó mandar. Por mim não dou — mas se vovó mandar é outra coisa…
DONA BENTA — (sempre aflita) — Dê Pedrinho. Dê tudo quanto ela quiser. A Emília já tomou conta desta casa…
EMÍLIA — (vitoriosa) — E o Visconde também tem que me dar… É uma tristeza isto de fidalgos arruinados. Eles nunca têm nada para dar. Só a cartolinha — que é tudo quanto o Visconde possui…
NARIZINHO — Ande, Emília! Chega de amolar. Assobia logo. Tenha dó de vovó, coitada.
O lobo atira-se contra a porta. Ouve-se um estalo de madeira rachada. Emília assusta-se e leva dois dedos à boca. Assobia. Há uma pausa. Todos ficam à escuta do que se passa lá fora. Emília assobia de novo. Nada acontece lá fora e o lobo continua a despedaçar a porta. Emília assobia pela terceira vez.
EMÍLIA — Que será que aconteceu?
NARIZINHO — Com certeza o rinoceronte ficou surdo com a chuva desta noite.
PEDRINHO — (zombeteiro) — Fiem-se numa boneca…
CAPINHA — Não ficou surdo, não. O que ele está é dormindo. Quando vim para cá encontrei-o atravessado na porteira, roncando. Até pulei por cima, sem medo nenhum. Juro que está dormindo ainda.
EMÍLIA — (embaraçada) — Com essa não contei. Dormindo, ladrão. Nesse caso temos de acordá-lo. Mas como?
PEDRINHO — Se ele não tivesse o couro tão duro eu o acordava com uns pelotaços de bodoque no focinho. Mas pelotada de bodoque em couro de rinoceronte é o mesmo que beijo de mosquito.
Tia Nastácia, que está fora de cena desde o começo, entra da cozinha com uma colher de pau na mão. Não sabe nada do que se passa.
TIA NASTÁCIA — Que barulhada é essa, gente? Sosseguem, que é hora de arrumar a mesa.
DONA BENTA — É O lobo, Nastácia!
TIA NASTÁCIA — Que lobo, Sinhá? Mecê parece que está caducando. Onde já se viu lobo a estas horas por aqui? Lobo, nada. Os meninos estão empulhando mecê. (Percebe a presença de Capinha) Ué? A menina da Capinha Vermelha por aqui! Que novidade é essa?
CAPINHA — O lobo que comeu vovó me perseguiu na floresta e corri a esconder-me aqui. Está na porta, arranhando-e despedaçando as tábuas.
O lobo dá um uivo prolongado e arranha as tábuas com mais fúria. Tia Nastácia compreende tudo e põe-se a tremer de medo. A colher de pau cai da sua mão.
TIA NASTÁCIA — Credo! Figa, rabudo! É o lobo mesmo. E agora, Sinhá, que vai ser de nós?
DONA BENTA — Emília foi quem arranjou isso e tinha combinado a defesa com o rinoceronte. Era só dar um assobio que ele avançava com o chifre contra o lobo e o varava de lado a lado. Mas já assobiou três vezes e nada. Diz Capinha que ele está ferrado no sono, lá na porteira. Estamos pensando num jeito de acordá-lo.
TIA NASTÁCIA — Pois é mandar o Visconde fazer esse serviço. Para que serve um visconde tão importante em casa senão para esses serviços perigosos? (Voltando-se para o Visconde) Ande, Visconde! Vá lá na carreira e acorde o ri… o “rinoceronte.” Mexa-se.
CAPINHA — E se O lobo comer o Visconde?
TIA NASTÁCIA — Não come nada, menina. O Visconde é de sabugo e os lobos são “carnivo.”
DONA BENTA — Bela ideia! Vá, Visconde. Vá numa carreira acordar o rinoceronte.
CAPINHA — (sempre com dó do Visconde) — O lobo pode não comer o Visconde mas é bem capaz de espedaçá-lo. Não existe lobo mais malvado que esse.
TIA NASTÁCIA — Não se incomode, menina. O Visconde é de sabugo e foi feito por estas mãos aqui. Se levar a breca faço outro ainda mais bonito hoje mesmo. Vamos “sêo” Visconde. Que está esperando? Pule. Salve a família.
O Visconde prepara-se para sair, mas antes disso vai espiar o terreiro e vê a vaca mocha de Dona Benta mascando umas palhas ali por perto.
VISCONDE — (apavorado) — Não posso ir. Ela está no caminho…
NARIZINHO — Que ela é essa, medroso?
VISCONDE — A vaca mocha! De lobo, de dragão, de rinoceronte eu não tenho medo, mas de vaca tenho e hei de ter sempre. Foi a mocha quem comeu meu pai e minha mãe e todos os meus irmãos e parentes. Essa peste de vaca não perdoa a um só sabugo. Assim que vê um colhe-o com aquele linguão vermelho e o vai mascando com a maior sem-cerimônia. Não vou, não vou e não vou.
O lobo continua a uivar e arranhar o porta. Dá um grande urro. Capinha, muito pálida, vacila.
NARIZINHO — Acudam! Capinha está desmaiando!…
Pedrinho corre para Capinha e a sustenta nos braços. Leva-a para o colo de Dona Benta. Depois corre ao bodoque e, de cima da mesa, através do vão da janela, prega umas pelotas na vaca. A vaca foge para o pasto.
PEDRINHO — Para a mocha, bodoque! “Zum!” Acertei uma na anca. “Zum!” Outra na orelha. Lá vai ela fugindo. “Zum!” Mais uma na teta. Esta valeu! Pronto, Visconde! O caminho está desimpedido.
PEDRINHO — (sempre a espiar) — Lá vai ele com muito medo, a olhar de todos os lados. É o eterno medo que o Visconde sempre teve da vaca mocha porque ele é sabugo e vaca não perdoa a sabugos. Come mesmo. Agora fez um rodeio para não passar perto do galo. Medo que o galo coma os três grãos de milho que ele ainda conserva no peito. Chegou… Está berrando no ouvido de Quindim… Mas Quindim não dá pela coisa. O Visconde berra inutilmente. Mudou de lugar. Foi berrar no outro ouvido. Nada! Agora está sa- pateando em cima de Quindim, mas não há meio. Quindim não acorda.
NARIZINHO — (torcendo as mãos) — Nossa Senhora! Que será de nós!
PEDRINHO — (sempre a espiar) — A vaca aparece lá longe e o Visconde disparou. Vem vindo na volada. Tropeçou numa casca. Vem chegando, (o menino recolhe-o) E então, senhor mensageiro?
VISCONDE — (enxugando o rosto suado com as palhas do pescoço) — Impossível acordar aquele dorminhoco. Parece que morreu. Fiz tudo. Beijei-lhe no ouvido. Sapateei em cima. Nada. Não acorda.
EMÍLIA — É um estafermo este Senhor Visconde! Não presta nem para acordar rinoceronte.
O lobo solta novo uivo de cólera e arranca mais uma tábua da porta. Enfia pele buraco o seu horrível focinho.
TIA NASTÁCIA — Nossa Senhora! É lobo mesmo, do “legite!”
DONA BENTA — (prestes a desmaiar também, pendendo a cabeça para o encosto da cadeira) Legítimo, Nastácia…
PEDRINHO e NARIZINHO — (pulando da mesa para o chão) — E agora?
Emília corre à cozinha e volta com o vidro de pimenta em pó. Trepa à mesa e salta para fora, dizendo antes de pular:
EMÍLIA — Esperem que eu arranjo tudo. Quero ver se o sono do Quindim resiste a esta pimenta. Vou mostrar ao saram bé do Visconde como é que se acorda rinoceronte.
Pedrinho volta ao seu posto de observação em cima da mesa. Tia Nastácia faz cruzes no peito e reza em voz baixa. Narizinho vai para junto de Dona Benta, que ainda tem ao colo a menina da Capinha Vermelha.
PEDRINHO — Lá vai a sirigaita muito lampeira com o vidro de pimenta. Pimenta precisa ela. Vai correndo sem olhar para trás. Chegou junto ao rinoceronte. Está abrindo o vidro de pimenta. Abriu. Despejou-o quase inteiro nos olhos do pobre animal. Malvada! O rinoceronte fez uma careta. Sacudiu a cabeça. Ergueu-se. Emília o está descompondo de cachorro para baixo, como se ele tivesse culpa de dormir, com um sol quente destes. Agora ela está apontando para o lobo — está atiçando Quindim contra o lobo…
NARIZINHO — (correndo a espiar também) — É uma danada a Emília! Acordou o rinoceronte e tais coisas lhe disse que ele vem vindo que nem uma bala de canhão. Já estou ficando com dó do lobo…
O focinho do lobo desaparece do buraco da porta. Logo em seguida ouve-se um grande berro de lobo espetado em chifre de rinoceronte. Grande alegria na sala. Tia Nastácia suspira com alivio. Pedrinho não esconde o seu desapontamento diante do sucesso da Emília.
DONA BENTA — Tragam água fria para eu acordar a esta menina.
Todos rodeiam a menina desmaiada no colo de Dona Benta. Narizinho traz um copo d’água, e a borrifa no rosto de Capinha. Ela começa a abrir os olhos, ainda tonta, como a sair dum pesadelo.
CAPINHA — O lobo já comeu Dona Benta?
TIA NASTÁCIA — Comeu nada, menina. Pois não está vendo ela aí na sua frente? Desta vez quem foi comido foi o lobo. O rinoceronte deu cabo dele com uma chifrada na barriga.
Capinha suspira aliviada e esfrega os olhos. Volta a si completamente e desce do colo de Dona Benta. Dona Benta também se ergue da cadeira, esfregando as pernas ainda meio moles.
DONA BENTA — Que susto! O perigo desta vez foi grande. Vi que o lobo entrava mesmo e me comia.
CAPINHA — E quem salvou a situação?
DONA BENTA — Quem mais senão a Emília? Está ficando mais sabida que todos os outros. Foi lá e acordou o rinoceronte, coisa que nem com um sapateado em cima dele o Visconde conseguiu. E sabe como? Despejando-lhe pimenta-do-reino nos olhos. Lembranças assim, só mesmo da Emília.
CAPINHA — (suspirando) — Ora graças que vou viver sossegada de hoje em diante! Esse lobo malvado comeu vovó, e como o homem do machado não o matou bem matado, ele sarou e vivia rondando minha casa para me comer também. Tanto medo eu tinha dele que me conservava sempre fechada lá dentro. Por isso nunca vinha aqui ao sítio apesar dos convites de Narizinho. Agora virei sempre.
NARIZINHO — Mas como veio hoje?
CAPINHA — É que espiei pela janela e não vi o lobo lá por perto; e então criei coragem e saí para colher no campo uns malmequeres. E naquilo me distraí e fui me afastando de casa. De repente, o lobo! Como aqui ficava mais perto que minha casa, corri para aqui. Foi isso.
PEDRINHO — (que fora ao quarto e voltara) — Tome lá. Aí está o seu cavalo, ciganinha.
Emília examina o cavalo e vê que estava sem uma das orelhas.
EMÍLIA — Dispenso. Presente sem orelha, eu dispenso.
TIA NASTÁCIA — Tenho coisa muito melhor para você Emília, (Tira do bolso do avental o pé da franga) Uma coisa mesmo de museu — um pé de galinha de seis dedos, um verdadeiro “felomeno.”
DONA BENTA — Fenômeno, Nastácia.
TIA NASTÁCIA — Não sei como se diz, mas que tem seis dedos, isso tem. Veja, conte.
EMÍLIA — (examinando o pé de galinha com toda a atenção) — Muito bem. Vai para o meu museuzinho de curiosidades. Vai fazer… Como é que se diz, Dona Benta, quando uma coisa faz parelha com outra?
DONA BENTA — Diz-se em francês fazer “pendant.”
EMÍLIA — É isso. Este pé de galinha vai fazer “pendant” com outra coisa que está lá.
Todos se voltaram para ela, curiosos.
EMÍLIA — (mordendo os lábios, toda ironia) — A inveja de Pedrinho…
Pedrinho disfarça o desapontamento enquanto Emília o olha firme. O Visconde leva a mão à boca para esconder uma risadinha espremida. Dona Benta volta-se para tia Nastácia.
DONA BENTA — Vê, Nastácia, até irônica está ficando…
TIA NASTÁCIA — Credo! (e benze-se)
#concurso literário #Editora Mente Cristã #Editora Universo Anthares #Lucas Rosalem #Mitologia brasileira #Universo Anthares #universo ficcional