A Morte de Hércules

I — O IDÍLIO DO HERÓI

— Hércules, querido, não esqueça de passar uma vassoura no palácio depois de terminar o seu bordado.

Ônfale, rainha da Lídia, estava descansando em uma cadeira de encosto na balaustrada do seu palácio; fazia frio e ela vestia a pele do leão de Neméia, que Hércules, seu marido, abatera em um de seus famosos “trabalhos”.

— Varrer todo o palácio de novo?! — disse uma voz rouca vinda lá de dentro.

— Uma vez por semana é muito para você? — disse a rainha, erguendo levemente a cabeça. — Para quem limpou os estábulos de Augias — e você sabe em que estado eles estavam!

-, o que é passar uma vassourinha por aqui, uma vez por semana?

Ônfale estava ligeiramente irritada: nos últimos tempos seu marido estava se tornando cada vez mais preguiçoso e resmungão.

Escutaram-se ainda alguns resmungos inaudíveis vindos do interior, e depois seguiu-se um silêncio. Ônfale passou a mecha para trás da orelha e apurou o ouvido.

“Sim, ainda está fiando o linho…”, pensou, relaxando um pouco.

Hércules, com efeito, fora obrigado a casar-se com a rainha por conta de uma punição que recebera por ter matado o seu amigo Ifítus. Tal sentença lhe fora dada em Delfos, onde fora lavar-se desse crime. O oráculo de Apolo condenou-o à escravidão por três anos, e Hércules foi vendido por Mercúrio a Ônfale. Agora, passava dias inteiros diante da roca, lidando com o fuso e os fios, como uma criança lida com seu brinquedo — ou como uma mulher lida com suas tarefas.

“Como o maior herói da Grécia pôde ter-se afeiçoado tanto a esta distração?”, pensou ainda a rainha.

Ônfale ergueu-se. Depois de ajeitar melhor a pele sobre os ombros, rumou para o quarto do casal. Tão logo entrou na peça avistou a pesada maça do esposo largada a um canto. Por que será que, por mais que a escondesse, ela sempre estava à vista? Seria um signo, um sinal de algo que permanecia latente — a virilidade de seu esposo, quem sabe, que a qualquer momento poderia retornar?

A jovem, entretanto, referia-se aqui a outra espécie de virilidade. Hércules não deixara nunca de cumprir com seus deveres conjugais; na condição de escravo da rainha, ele se mostrara bastante dócil quanto a esta parte do acordo, entendendo que ela era a parte mais agradável do rol de suas obrigações.

Esta, aliás, era outra coisa que também sempre a intrigara: por que Hércules, o homem mais forte do Universo, páreo até mesmo para os deuses, tinha tamanha facilidade em servir? Um homem com aquela força descomunal, aquela ira tão fácil de explodir, e que, no entanto, não contestava nunca quando alguém vinha pôr-lhe a canga no pescoço! Com que facilidade, por exemplo, mostrara-se disposto a cumprir as ordens de Euristeu, seu sórdido primo, um sujeito tão covarde que jamais recebia pessoalmente o herói, mantendo sempre preparado um jarro de bronze onde pudesse se refugiar, caso este resolvesse atacá-lo! Será que o divertia o fato ter de obedecer a alguém sabidamente inferior? Ou era apenas um senso de dever que os deuses haviam insulado em si para contrabalançar o seu primitivismo anárquico e feroz?

Ônfale pensava em todas estas coisas enquanto observava o marido sentado diante da roca. Hércules vestia roupas femininas e parecia não se importar nem um pouco com isto. Quem se atreveria a debochar dele, afinal?

— Hércules, tenho notado em você uma certa inquietação, agora que o prazo final de nosso casamento se aproxima — disse a rainha, que não sabia dizer, sinceramente, se lamentava que tal fim estivesse próximo.

O herói largou por um momento o fio que enganchara no fuso e comentou:

— De fato, acho que ando cansado disto tudo.

— Espero que eu não esteja incluída no seu nisto tudo — disse Onfale, fingidamente magoada.

— De forma alguma! — disse Hércules, erguendo-se. As pregas do seu manto liberaram-se e o tecido de seu vestido lhe desceu até os pés. — Você tem sido uma esposa — e uma ama — maravilhosa!

Hércules, vestido de mulher, estreitou nos braços a rainha envolta em sua pele de leão.

— E diversão não lhe faltou aqui — disse a esposa. — Você liquidou dois malfeitores que aterrorizavam este país e enfrentou até uma serpente monstruosa.

— Pois é, mas acabou, e agora estou, pela primeira vez, me sentindo um homem preso.

Onfale sabia que ao vencer o prazo Hércules lhe daria as costas. E quem era ela para manter seguro um homem daqueles, uma vez que ele decidisse que era hora de ir embora?

— Muito bem, então que seja assim! — disse a rainha.

Onfale foi até o canto onde estava a poderosa maça do herói e, pegando-a, aproximou-se de Hércules.

— Para que isto? — perguntou ele, com um sorriso.

— Em nome dos deuses, a partir deste instante eu lhe devolvo a liberdade! — disse ela, batendo levemente com o porrete, primeiro no ombro esquerdo e depois no direito do herói.

— Já é hora de deixar de usar isto, também — disse ela, despregando as vestes femininas de Hércules e conduzindo-o para o leito do casal.

— Desde que você me devolva isto — disse Hércules, arrancando num puxão a pele de leão que envolvia os ombros frágeis da rainha. Onfale deu uma volta sobre si mesma e foi cair estatelada sobre o leito de macias penas.

Um sorriso satisfeito brilhou, afinal, nos lábios da rainha: Hércules voltara a ser o mesmo, outra vez.

II — O DUELO DE HÉRCULES E AQUELÓO

Durante o tempo em que estivera servindo à rainha da Lídia, Hércules havia se lembrado muitas vezes de uma promessa que havia feito ao herói grego Meleagro, quando de sua visita aos infernos para trazer à superfície Cérbero, o temível cão de três cabeças. Ele havia prometido à sombra de Meleagro morto que se casaria com sua irmã Dejanira, filha do rei de Calidon, tão logo retornasse à Terra.

Uma vez liberto, Hércules, premido por mais esta missão — mais uma, com efeito, em sua vida —, partiu logo para Calidon. Entretanto, ao chegar lá descobriu que Dejanira já tinha um pretendente — um grande pretendente.

— Oh, lamento, grande Hércules, mas Aquelóo, filho do Oceano e de Tétis, já pediu a minha mão em casamento! — disse Dejanira, sinceramente decepcionada.

“Lamento, grande Aquelóo, filho do Oceano e de Tétis, mas a mão da adorável Dejanira será minha!”, pensou Hércules, já pronto para mais uma disputa.

Empunhando sua maça e envergando seu traje característico, o herói foi em busca do seu rival.

Aquelóo, o mais célebre de todos os rios que banham a Grécia, ficou furioso ao saber das pretensões de Hércules.

— Como você se atreve a pretender tirar de mim a minha noiva? — disse o rio, espumando de raiva.

— Lamento, poderoso rio — disse Hércules, raspando sua clava sobre o solo -, mas se trata de uma promessa feita a uma sombra, e promessas desta natureza devem ser cumpridas custe o que custar.

— Não custará menos do que a sua vida! — disse, num rugido, Aquelóo. — Mas não se preocupe, logo estará diante do irmão de Dejanira e então você poderá se explicar melhor.

Imediatamente os dois adversários lançaram-se ao ataque. Era tudo o que Hércules mais queria: poder empunhar outra vez a sua maça e desferir a torto e a direito os seus poderosos golpes.

Aquelóo, sentindo o poderio do adversário, transmudou-se em uma serpente gigantesca.

— Serpente, senhor rio? — disse Hércules, com ar de mofa. — Ora, se estrangulei uma no próprio berço…

Hércules agarrou a cabeça da víbora colossal e deu-lhe um nó tão forte que Aquelóo viu-se obrigado a desvencilhar-se daquela forma e assumir a de um grande touro de ventas negras como a noite.

— Agora verás o poder do meu arremesso! — disse o touro, escarvando o chão e levantando atrás de si uma nuvem de poeira que sufocou a cidade inteira.

— Venha, então! — disse Hércules, lançando longe a sua clava e esfregando as duas mãos, que mais pareciam dois potentes malhos.

Nem bem o touro monstruoso havia se arremessado, cego de ódio, quando Hércules, dando um pulo ágil para o lado, agarrou-se aos cornos do animal, seguindo montado em suas costas. O touro correu alguns metros, mas foi obrigado a parar e ajoelhar-se logo em seguida, tão logo Hércules ameaçou quebrar-lhe os chifres.

— Está bem, você venceu, você venceu! — gritou Aquelóo, agoniado.

— Não, ainda não — gritou Hércules, arrancando com um golpe violento um dos cornos do animal.

Aquelóo despediu um urro formidável e terminou de cair ao solo, enquanto Hércules pulava para o chão, de posse do precioso chifre.

— Aqui está, podem levá-lo consigo! — disse Hércules às Náiades, ninfas dos regatos, que assistiam aterradas ao pavoroso embate.

As ninfas correram logo a se apoderar do corno e o encheram de frutos e flores, dando origem assim à cornucópia — símbolo da fertilidade, riqueza e abundância — ou pelo menos a uma delas, já que havia uma outra, segundo a tradição, feita do chifre de Amaltéia, a vaca que amamentara a Júpiter.

E foi desta maneira que Hércules conquistou a mão de Dejanira.

III — O CENTAURO NESSO

Infelizmente, o gênio irritadiço de Hércules não permitiu que pudesse ter uma vida calma com a sua nova esposa, eis que um dia, estando à mesa, matou num acesso brusco de cólera o pajem, filho de um amigo do rei de Calidon, simplesmente porque este lhe derramara em cima um pouco de vinho.

Hércules foi obrigado, então, a se exilar para expiar este desastrado crime, levando consigo a infeliz princesa.

— Não importa, amado Hércules — disse Dejanira, confiante -, para onde você for eu também irei!

Partiram, e um dia, chegando à beira do rio Aveno, não tiveram outro jeito senão atravessá-lo.

— Veja, Hércules, há um barco lá no meio do rio! — disse Dejanira, abanando a mão para o barqueiro.

— Eu conheço aquele sujeito — disse Hércules, com a mão em pala sobre os olhos, avistando a figura que conduzia o barco. — É o centauro Nesso, já nos defrontamos numa de minhas inúmeras batalhas contra os centauros; eu o expulsei para esta região.

O centauro aproximou-se lentamente com sua barca; parecia temeroso de seu reencontro com o velho inimigo.

— Pode encostar, viemos em paz! — disse o herói ao barqueiro.

Hércules, querendo testar a força dos seus braços, preferiu ir a nado, cometendo, no entanto, a imprudência de deixar que o antigo desafeto ficasse encarregado de transportar sua esposa até a outra margem.

Nem bem havia chegado lá quando escutou os gritos de Dejanira.

— Socorro, Hércules, me salve! — dizia ela, no meio do rio, lutando para se desvencilhar dos braços de Nesso, que, dez vezes mais imprudente, tentava violentar a esposa do herói, talvez para se desforrar da antiga derrota.

Hércules, então, sacando com toda a rapidez o seu arco e enganchando nela uma flecha embebida no veneno da hidra de Lerna, disparou a seta, que foi cravar-se no peito do agressor.

Nesso tombou ainda sobre a barca, mas antes de morrer disse a Dejanira:

— Dejanira, perdoe minha atitude! Estava louco de desejo pela sua maravilhosa beleza.

Quero também que Hércules perdoe tudo o que lhe fiz: aqui está algo que lhes poderá ser útil.

Tomou, então, um pouco do seu sangue envenenado e, colocando-o num pequeno recipiente, entregou-o a Dejanira, dizendo:

— Tome, guarde esta pequena porção de meu sangue. Quando você estiver em grave risco de perder o seu amado Hércules, basta que embeba neste líquido qualquer peça de roupa e faça com que ele a vista em seguida. Desta forma terá garantido para sempre o amor do seu marido.

Nesso morreu antes que a barca encostasse na outra margem, e fez bem, pois Hércules estava pronto a dar cabo do seu último alento de vida tão logo tivesse o centauro em suas mãos.

IV — A TÚNICA DE DEJANIRA

Hércules e Dejanira instalaram-se na Tessália. Ali, o herói foi encarregado de chefiar diversas expedições pelas redondezas, e numa delas conseguiu trazer como despojo a princesa Íole, filha do rei Eurito, que este recusara certa feita a lhe entregar por esposa, mesmo tendo Hércules se saído vencedor de um concurso de tiro ao alvo cujo prêmio era a mão da bela princesa.

— Aí está como se dão as coisas neste mundo! — disse Hércules, carregando em triunfo a assustada Íole. — Seu pai, àquela época, não quis me dá-la para esposa; pois agora matei-o e tomo-a como minha concubina.

Hércules, no dia seguinte, resolveu parar num determinado santuário para agradecer aos deuses por mais esta vitória.

— Licas, venha cá! — disse ele, chamando seu fiel companheiro. — Vá até Dejanira e peça-lhe que me mande uma túnica limpa para que possa me apresentar com dignidade diante dos deuses e lhes oferecer a minha olorosa hecatombe.

Dejanira, entretanto, temerosa da rival, lembrou-se do remédio que Nesso lhe dera antes de morrer. Deu, então, a Licas, uma túnica embebida no sangue do centauro Nesso.

— Vá, corra até o meu esposo e dê-lhe isto para vestir! — disse Dejanira, esperançosa.

Tão logo Licas chegou onde Hércules estava, lhe estendeu a túnica, que o herói vestiu no mesmo instante.

Nem bem havia feito isto, porém, quando começou a sentir que a veste lhe picava por todo o corpo.

— Que raio de roupa é esta? — perguntou o herói para o servo.

— É a túnica de Dejanira — disse Licas, confuso.

Hércules lutou para se desvencilhar daquela veste incômoda, mas quanto mais tentava desapertá-la, mais ela grudava-se às suas carnes.

— Oh, que dor terrível é esta? — disse o herói, dando um grande grito que atroou as montanhas ao redor.

Licas, apavorado, tentava ajudar o amo, mas de nada adiantava. Hércules, então, no seu último assomo de cólera, agarrou Licas pelo pé e lançou-o contra o maciço rochoso, matando-o na hora.

— Aí está, traidor, o preço da sua perfídia! — disse ele, imaginando que se tratasse de alguma armadilha urdida por Licas e Dejanira para liquidá-lo.

Mas as dores nem por isso diminuíram ou cessaram, tornando-se cada vez mais excruciantes. Um fogo interno queimava o corpo de Hércules, que deitado sobre o pó rolava de um lado para o outro, ganindo como um Titã em chamas.

— Oh, dor horrível que me consome os ossos! — gritava ele, enterrando as unhas para tentar arrancar a túnica envenenada. Entretanto, estava ela tão aderida ao seu corpo, que junto com os pedaços do tecido vinham pedaços ensangüentados da sua própria pele.

Hércules compreendeu, então, que era o seu fim. Julgando-se vítima da vingança de sua mulher, o herói tomou as suas coisas e, acompanhado de seu amigo Filoctetes, subiu até o monte Eta.

— Filoctetes, amigo meu, deixo a você o encargo de construir agora a minha pira funerária, pois que meu corpo não tem força mais nem para suster-se em pé.

De fato, do antigo Hércules não restava quase nada. Seu corpo estava reduzido a um pobre feixe de ossos, e foi uma caveira barbada quem pediu este favor a Filoctetes, não um rosto humano.

— Em paga deste último favor que você me faz, Filoctetes amigo — disse Hércules, já deitado em sua pira -, deixo-lhe meu arco e minhas flechas; guarde-as em segredo e jamais revele a ninguém o local onde agora arderá a minha pira.

Filoctetes tomou a tocha e chegou-a até a pilha de madeira. No mesmo instante um raio reboou nos céus e desceu até a pira, fazendo com que a fogueira ardesse instantaneamente, de sorte que em pouquíssimos instantes nada mais havia do corpo de Hércules.

Dejanira, ao saber da desgraça, suicidou-se, vencida pelo remorso. Quanto ao espírito de Hércules, este deu entrada no Olimpo no mesmo dia e foi alçado à condição de deus por seu pai, Júpiter, e recebeu dele Hebe, deusa da juventude, por sua nova esposa.