A Cegueira de Dáfnis

Dáfnis era filho de Mercúrio e de uma obscura ninfa da Sicília. Desde cedo foi para os bosques, onde se tornou amigo de Pã, o deus amante da música. Com ele aprendeu a compor versos e executar em sua flauta as mais belas melodias que ecoavam pelos vales, trazendo alegria a todas as criaturas dos bosques.

— Dáfnis, quando é que você vai se apaixonar de verdade? — perguntava-lhe sempre o deus dos pés de bode.

— Por que me diz isto todos os dias? — quis saber o pastor.

— Suas canções são belas, e sua música, insuperável — respondeu Pã, reclinado sob a sombra de uma árvore. — Mas falta o amor nos seus versos, e a sua poesia só será perfeita no dia em que você viver um grande e inesquecível amor.

— Inesquecível, divino Pã? — perguntou o pastor, com um sorriso. — E há tal coisa? O

deus lembrou-se, então, da ninfa Siringe, que havia amado e perdido há muito tempo.

— Essa flauta que você tem aí é a melhor prova do que afirmo — disse Pã, silenciando a sua dor, que ameaçava retornar mais uma vez.

Dáfnis observou a flauta: vários caniços, de vários tamanhos, unidos com cera. Sim, o velho Pã já havia lhe contado várias vezes que eram feitos do corpo de sua amada, que convertera-se em um grande junco ao tentar escapar de seus rudes afagos. Para tê-la sempre consigo, ele arrancara o junco do solo e o transformara naquela flauta. Uma bela história, pensou Dáfnis, mas ele não tinha tanta pressa de amar, como tinha de cantar. Por isso, recomeçou a tocar a sua flauta, alegre e despreocupado como sempre.

Mas um dia sua bela música atraiu uma ninfa chamada Lice até o bosque.

— Quem é esse pastor que canta e toca de maneira tão bela? — perguntou Lice às amigas ninfas.

— É Dáfnis, filho de Mercúrio — respondeu uma delas.

O pastor havia se deitado na grama, às margens de um pequeno córrego; uma brisa suave e refrescante aliviava o calor da tarde. Tendo despido o manto, mantinha agora uma de suas pernas mergulhada dentro da água corrente, enquanto escutava, de olhos fechados, o dia passar.

De repente, porém, sentiu atrás de si uma presença.

— Não, não abra os olhos… — disse a ninfa Lice, pousando suas mãos sobre as vistas do jovem pastor.

Dáfnis sorriu; a ninfa que tivesse uma voz cristalina e mãos de seda como aquelas não poderia deixar de ser bela; por isso decidiu obedecer cegamente àquela suave imposição. Em seguida escutou um ruído quase imperceptível, de algo muito volátil e delicado que escorresse do alto por uma superfície macia até ir embolar-se na relva. Sentiu ainda que aquilo — um provável véu — fora depositado sobre o seu manto, que estava ao seu lado. Finalmente, sentiu nas costas, que estavam em contato com o solo, um ligeiro tremor, como se alguém houvesse estendido um corpo, quase diáfano, ao lado do seu.

— O que temos aqui? — disse a mesma voz, pousando a mão sobre o ventre de Dáfnis.

Este, num reflexo, movimentou suas pálpebras, mas aquela doce mão, num gesto veloz, as cerrou outra vez. — Não… lembre-se de nosso trato! — disse a voz feminina, docemente impositiva.

Pousada sobre o ventre do pastor estava sua flauta de vários tubos, presente do deus Pã, que se movimentava ao sabor de sua respiração — talvez um pouco mais apressada, agora, do que antes da chegada daquela excitante intrusa.

Tomando a flauta em suas mãos, a ninfa Lice tentou tirar dela algumas notas, que não soaram nada mal aos ouvidos de Dáfnis.

— Nada mal, para quem se exercita pela primeira vez… — disse Dáfnis, estendendo a mão para retomar o instrumento.

Mas em vez da flauta, suas mãos tocaram as de sua misteriosa companheira. O pastor tentou novamente abrir suas pálpebras, mas a ninfa persistia em sua atitude proibitiva. Sem meios, então, de resistir às ordens da ninfa, Dáfnis decidiu permanecer deitado lado a lado com ela na relva, conversando e cantando, enquanto ia desenhando mentalmente o seu retrato.

De repente um trovão rolou pelo céu e uma chuva intensa desabou sobre seus corpos nus. Dáfnis e Lice deixaram que as gotas se espalhassem pelos seus corpos, numa divertida brincadeira de cócegas, até que a chuva, tornando-se muito forte, obrigou finalmente a ninfa a erguer-se. Dáfnis aproveitou, então, para abrir os olhos.

Pela primeira vez enxergava a imagem da ninfa, ainda que pouco nítida por causa da chuva. Era como se a visse por detrás de um espelho lavado por um jato constante de água. Mas mesmo assim não havia a menor dúvida: era exatamente a mulher que imaginara, traço por traço.

No mesmo instante Dáfnis e Lice uniram seus corpos e suas almas, e a partir daí as suas vozes unidas alegraram duplamente os bosques, com canções que falavam de um amor profundo e real.

Mas havia uma nota de melancolia na voz de Lice que somente um ouvido bem treinado podia perceber: ela denunciava o medo da separação — temor constante que ronda todas as uniões, porque nada há neste mundo que não esteja sujeito a ela. Lice, contudo, pressentia a separação para muito em breve, sem saber dizer o porquê.

— Dáfnis, meu amor — disse ela, um dia, ao pastor -, prometa que jamais me esquecerá.

— Claro, Lice querida — disse-lhe o pastor, com ar despreocupado. — Como poderia esquecê-la?

— Espere — disse ela, pondo a mão em sua boca. — Preciso escutar isto dos seus olhos.

— Mas Lice, querida, desde quando os olhos convers… — tentou completar o pastor, porém sem sucesso; Lice havia selado os lábios de Dáfnis com um beijo, e agora, encarando firmemente seus olhos, buscava neles a confirmação de suas palavras.

— Lice, querida — disse, afinal, o pastor, tentando acalmar seus temores. -Se algum dia eu ousar esquecê-la, quero que os seus olhos sequem a luz dos meus! Assim, impedido de enxergar outro rosto, só terei o seu para relembrar eternamente.

E com essa promessa renovaram seus votos de um novo e ardente amor.

O tempo passou, e Lice foi acalmando suas apreensões.

Um dia Dáfnis, cansado de tanto conduzir seus rebanhos, sentou-se, como da outra vez, debaixo da sombra de uma árvore frondosa. Tomando de sua flauta, começou, então, a tocá-la.

Era uma melodia que compusera especialmente para sua amada. Toda vez que a tocava podia enxergá-la perfeitamente nítida — seu corpo nu, seus cabelos naturalmente esvoaçantes, sua boca úmida e seus olhos cálidos, embora sempre com aquela pequena nota angustiada, bem lá no fundo das pupilas da imagem amada.

Mas o pastor havia se afastado mais do que o habitual e, por isto, não percebeu que logo além de onde estava havia um palácio, e que em uma de suas janelas havia uma princesa que ninguém queria. E ela estava atônita com a beleza de Dáfnis e da sua melodia.

— Em quem pensará? — perguntava-se a princesa indesejada, desejosa de ser a inspiradora daqueles belos acordes.

Mas logo em seguida teve sua visão atraída por um brilho estranho. Um pouco acima da copa das árvores que davam sombra ao pastor, formava-se, cada vez mais nítida, a efígie vaporosa de uma mulher.

— E ela, a dona da sua inspiração — exclamou a mal-amada princesa.

A medida que a música se tornava mais apaixonante, mais a bruma adquiria o contorno definitivo do corpo de uma mulher, formado pela lenta evaporação das notas ardentes que subiam da mata, feito a fumaça de um desejo incandescido.

— Por Vênus, como é bela — sussurrou a princesa.

Suspensa acima das ramas verdejantes e revirando-se inquieta sobre seu leito esverdeado flutuava a imagem de Lice. Estava inteiramente nua, e pelo modo inquieto como se mexia, fazendo deslizar pelo corpo as pontas dos seus dedos aquilinos, logo deu a entender à princesa que dormia, presa de um sonho intenso de amor. E os dedos, apesar de serem os delas, tinham o toque evidente de um homem apaixonado.

Então a ilusória imagem da ninfa virou o rosto em sua direção: de fato, nem de longe tinha os pobres traços da rica princesa.

“Não, não sou eu…”, pensou ela, desconsolada.

Abatida, a princesa abandonou a janela e foi encostar-se à parede, do outro lado do quarto. Suas costas deslizaram insensivelmente para baixo até deixá-la sentada no chão, abraçada aos joelhos. “Não, não sou eu”, repetiu, sentindo sua respiração arfante umedecer seus ossudos joelhos. De repente, num impulso, fechou também os olhos e beijou ardentemente os próprios joelhos! Mas seja por eles não terem respondido ao seu desejo ou por ela não ter lá muita imaginação, o fato é que os mordeu com fúria, logo em seguida.

— Pois se é uma visão, farei com que desapareça! — exclamou, pondo-se em pé, num salto, tomada pela raiva.

Sem perceber que seus joelhos sangravam, correu outra vez até a janela. Seus olhos, contudo, foram brindados agora com uma alegre visão: o pastor vinha vindo justamente em direção ao palácio!

Dáfnis chegou até o pé da janela e gritou:

— Por favor, gentil princesa, poderia me alcançar um gole de água?

— Claro, pastor, já desço com ela!

Infelizmente esta gentil princesa tinha o hábito de distrair a sua solidão da pior maneira, pois também era uma terrível feiticeira. Assim, antes de levar o copo com a água, introduziu nele um pouco do sumo da erva mágica do esquecimento.

— Aqui está! — disse ela, estendendo a beberagem maldita ao sedento pastor. Dáfnis bebeu a água de um só trago e no mesmo instante sentiu que a imagem de sua amada Lice desaparecia de sua mente. Apavorado, estendeu as mãos, como que para agarrá-la, mas ela retrocedia cada vez mais, até esfumar-se definitivamente no ar.

A princesa, percebendo o efeito de sua poção, perguntou-lhe:

— O que houve, belo pastor?

— Não sei — respondeu Dáfnis, passando a mão pela testa. — Tenho a impressão de que esqueci algo muito importante…

— Venha, entre comigo — disse a princesa, pondo na voz o pegajoso mel da luxúria. —

Tratemos, então, de fazer algo de que não esqueçamos jamais.

No dia seguinte Lice foi informada de que seu amado Dáfnis ainda estava nos braços da terrível princesa. Desesperada, correu até os portões e tentou forçá-los, mas foi expulsa rudemente pelos sentinelas.

Da janela surgiu, então, Dáfnis, com ar de sono.

— Quem é esta louca, soldados, e o que deseja de nós?

— Nós?! — exclamou a ninfa.

Com a mão ressequida, que ainda assim bastava para cobrir seu peito mirrado, a radiante princesa veio logo postar-se atrás do pastor.

Era esta a resposta!

Lice, dali mesmo de onde estava, encarou os olhos de Dáfnis, profundamente. E nesse exato instante o pastor lembrou-se de tudo: da ninfa que amara, dos momentos felizes que haviam gozado e também da terrível promessa que lhe fizera.

Desta vez, porém, não foi somente o rosto da ninfa que desapareceu diante de seus olhos, mas a própria luz de tudo que o envolvia. Dáfnis estava cego -irremediavelmente cego para o resto da vida!

E assim passou o resto de seus dias, vítima de uma cilada e de um deslize, vagando cego pelos bosques e montanhas. Nunca, porém, suas canções e melodias haviam sido tão belas —

horrenda contradição do amor, que mais pungente se torna quanto mais tenazmente o destino o persegue! -, a ponto do deus Pã reconhecer que agora — e somente agora — sua arte se tornara absolutamente perfeita.

Por toda parte onde Dáfnis errava, com efeito, podia-se ver pairada no ar, por alguns breves instantes, a imagem sempre evanescente de sua amada Lice, que morrera de infelicidade.

Até que um dia o pastor, cansado de tanto sofrer, subiu até o mais alto penhasco e ali estendeu os braços para o alto, na tentativa enlouquecida de agarrar as formas vaporosas daquela que ainda amava — pois a única coisa que ainda enxergava neste mundo era a efígie ilusória da ninfa perdida. Falseando o pé, entretanto, mergulhou no abismo, feliz de pôr um fim involuntário a tanta desdita.

Diz a lenda, contudo, que seu pai, Mercúrio, que a tudo assistia, calçou rapidamente as suas velozes sandálias e raptou sua alma antes que o corpo se esmagasse nas rochas. Indo além, diz-se ainda que no mesmo dia o pastor deu entrada no Olimpo, para fazer companhia aos deuses, tendo ao lado sua amada Lice, que ao cabo de tudo o perdoou, afinal.


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