Orestes e as Fúrias

— Orestes, filho de Agamenon e Clitemnestra! — disse a deusa Minerva, pondo-se em pé, ao alto da tribuna. — Você está agora diante dos doze juízes deste Areópago para que responda à acusação de ter dado morte cruel à sua própria mãe.

O acusado ergueu-se, vacilante, e deu um passo adiante. Atrás dele, contidas a custo por Apoio, o defensor de Orestes, estavam três horrendas figuras que, com os braços estendidos, procuravam agarrar e dilacerar o réu.

Eram as Fúrias, divindades infernais do ódio, da vingança e da justiça. Virgens caçadoras, eram filhas da Noite e viviam no Tártaro. Possuíam asas rápidas e horrenda fisionomia. Eram três: Megera, que personificava a inveja e o ódio, Tisífone, que açoitava os mortais com seu chicote, e Alecto, a mais terrível, que personificava a vingança.

— Para trás! — exclamou Minerva, algo impaciente, às selvagens criaturas. — Cessem por um momento a sua ira, para que ouçamos o que o réu tem a dizer em sua defesa.

— O que pode dizer o assassino da própria mãe? — exclamou Tisífone, fazendo estalar o seu chicote de cobras trançadas sobre as costas do acusado.

— Sim…! — acrescentou Alecto, outra das terríveis Fúrias, aproximando o facho do rosto do acusado. — Vamos inaugurar entre nós, então, o insano costume de conceder perdão aos parricidas?

— Irrisão! — gritou Megera, a terceira das irmãs infernais, com os olhos raiados de sangue. — Malditos todos aqueles que tomarem o partido deste cão odioso!

— Basta, filhas do Tártaro! — disse Minerva, silenciando as três. — Quero ouvir, a partir de agora, tão somente a voz do acusado.

Um silêncio pleno de expectativa desceu sobre o recinto, fazendo-se ouvir somente o estalar das flamas que ardiam nos archotes portados pelas sinistras irmãs.

— O que venho aqui pedir — disse Orestes, encarando os seus julgadores -é que ponham um fim aos meus tormentos, libertando minha consciência, afinal, da cruel perseguição que lhe movem estas terríveis criaturas desde o dia em que, funestamente, minha mão ergueu-se contra minha própria mãe! Eis, pois, a minha negra história — completou o acusado.

♦♦♦

“Meus tormentos começaram na terrível noite em que, ainda criança, fui acordado por minha irmã Electra, a me dizer com os olhos esgazeados:

— Meu irmão Orestes, tome suas coisas e parta o quanto antes desta casa! Senti que algo me arrancava brutalmente da mais amena província de

Morfeu para me lançar no mais horrendo dos abismos de Plutão.

— O que diz, Electra? — perguntei-lhe, com o sono ainda a cerrar minhas pálpebras.

— Nossa mãe, Clitemnestra, e o odioso homem que ela tomou por esposo tramam a sua morte! — disse ela, sacudindo-me, para espantar de mim os últimos vestígios de sono.

Em rápidas palavras, explicou-me, então, que, tendo ambos tramado e levado a efeito a morte de nosso pai Agamenon, planejavam agora desvencilhar-se também de mim. -justamente aquele que, futuramente, poderia querer tirar deles uma sangrenta desforra! Bastaram algumas poucas palavras do infernal Egisto para que minha mãe, baixando a cabeça, concordasse. ‘Faça o que tiver de ser feito, amado Egisto, para que nosso amor não corra perigo algum…!’, dissera ela, simplesmente. — ‘Eu amo você, um crime selou nosso destino, e nada neste mundo poderá nos separar! Nem mesmo nas sombras mais escuras dos mais profundos antros infernais — prometa-me! — você vai permitir que nos separem…’.

Sua consciência já a remetia, insensivelmente, aos lugares de tormento e maldição; porém, ainda assim, ela persistia no seu projeto insano de continuar a viver ao lado daquele crápula! ‘Oh, Vênus suprema, pode o amor, então, estar associado à tanta baixeza?!’, perguntava-me, enquanto arrumava minhas coisas para partir imediatamente.

Antes do dia clarear, já estava a caminho da casa de meu tio Estrófio, rei da Fócida. Ele era casado com a irmã de meu falecido pai, e ali eu podia estar certo de minha segurança. Quanto à minha irmã Electra, preferiu permanecer em Argos, pois, segundo o que ouvira, imaginava não correr tanto perigo quanto eu.

Ao chegar na Fócida, fui bem recebido pelo rei e a rainha e apresentado ao seu filho Pílades, este mesmo que aqui vem beber, com ansioso olhar, as minhas palavras.

Oh, fiel e dileto amigo Pílades! Desde então, como um irmão gêmeo, você jamais me abandonou… E mesmo neste momento de cruel provação, ainda uma vez me lança o olhar firme e leal da amizade! Que Júpiter supremo, ó meu irmão — pois sempre assim o chamarei -, possa velar incessantemente pelos seus passos, em todos os dias da sua vida!”

♦♦♦

Neste momento, Orestes, tomado pela emoção, viu-se obrigado a interromper sua narrativa, pois os próprios juízes haviam curvado as cabeças para ocultar as lágrimas. As Fúrias vingadoras, no entanto, ergueram ainda mais suas cabeças aduncas.

Megera, dando um salto, arrepanhou suas tranças emaranhadas de víboras, após arremessar na direção de Orestes uma cuspida de negra bile, e em seguida passou os olhos, enojada, pelos doze julgadores:

— Puá… Se tais são estes juízes, que ocultam as lágrimas por qualquer bagatela, que podemos esperar, irmãs, desta pantomima?

Apolo, então, que protegia a causa de Orestes, interveio:

— E o que entendem vocês de amizade, abutres sinistros, para que emporcalhem de maneira tão vil as belas palavras de Orestes? Querem descer, então, ao nível das harpias hediondas, que empestam com sua baba imunda tudo quanto tocam?

— Até quando permitirá, Minerva, que este protetor de assassinos desafie a justiça, que clama unânime pela punição deste que aí está? — exclamou Tisífone, interrompendo o deus e apontando seu dedo adunco para Orestes.

— Acabemos com esta discussão e faça-se a justiça que todo o Olimpo espera! — bradou Aleto, a terceira das Fúrias, lançando aos pés de Orestes a sua tocha ardente.

— Basta, terei de lembrar a todos que não estamos num teatro? — disse Minerva, erguendo o braço e restaurando a ordem outra vez. — A palavra é devolvida ao acusado.

Procure, apenas, ser mais direto em sua narração — disse ela, cochichando para Orestes.

Este, recobrado, pôde enfim retomar a sua narração.

♦♦♦

“Como estava dizendo, tão logo cheguei à corte de meu tio Estrófio fiquei conhecendo Pílades. Tal como eu, era ainda um garoto, e assim juntos crescemos, desfrutando das alegrias que ainda nos restavam da infância.

Os anos se passaram, e um dia, já adulto, fui impelido por Pílades a consultar um oráculo, para que esse pusesse fim, segundo ele mesmo disse, ‘aos meus rancores ou às minhas protelações’. Fomos, então, para Delfos e ali escutamos o oráculo proferido por Pítia, sacerdotisa de Apolo. Este foi categórico no sentido de que eu devia, a qualquer custo, vingar a morte de meu pai, Agamenon, expulsando para as regiões infernais o infame usurpador, bem como minha desgraçada mãe. Partimos, então, imediatamente, eu e Pílades, para Argos, a minha terra natal.

Depois de vários dias de viagem, chegamos finalmente, sujos e cansados -pois íamos a pé, como qualquer um, para não levantar suspeitas -, à minha terra.

A primeira coisa que fizemos foi ir logo ao túmulo de meu pai, para reverenciarmos a sua alma.

Lá chegando encontramos apenas uma jovem, que trazia a cabeça coberta por um véu, a qual não deu pela nossa presença. Sem me importar com ela, depositei um cacho de meus cabelos sobre a tumba, tomado pela emoção. Alguns instantes depois, no entanto, ela voltou-se para nós, ainda com o rosto velado, e disse:

— Não sabem, intrusos, que o acesso a este local é vedado a estranhos? Pílades, que sempre teve melhor presença de espírito que eu, improvisou logo esta resposta engenhosa:

— Perdão, jovem, mas somos estrangeiros. Sem sabermos de tal proibição, julgamos que seria um ato de piedosa devoção virmos, antes que tudo, reverenciar a memória do falecido rei.

A moça, contudo, em vez de continuar a nos recriminar, descobrira a cabeça e, fora de si, me disse:

— Benditos sejam os deuses! Será mesmo meu irmão Orestes quem tenho agora diante dos olhos?

Imediatamente reconheci naqueles jovens e belos traços a figura de minha querida irmã Electra! E antes que pudesse responder vi-me em seus braços, num pranto incontido. Disse-lhe, então, após fazer o relato daqueles anos todos de nossa ausência recíproca, da razão de minha vinda. Ela concordou prontamente com meu plano de matar os assassinos de meu pai, pois não deixara um instante de nutrir um ódio profundo, tanto por Egisto quanto por nossa mãe. Assim, ocultou-nos em sua casa — pois não morava mais no palácio -, e ali planejamos todos os passos para a concretização de nossa vingança.”

♦♦♦

“Alguns dias depois”, recomeçou Orestes, em seu depoimento, “fomos eu e Pílades até o palácio real e nos fizemos anunciar como dois arautos do reino de meu tio.

— Temos uma triste notícia a dar sobre o filho de Clitemnestra — disse Pílades, que segurava, de maneira enigmática, uma grande caixa dourada.

Os dois não tardaram a aparecer. O primeiro a surgir foi o assassino de meu pai. Trazia o ar francamente esperançoso, pois havíamos plantado em seu coração, com nossas calculadas palavras, a certeza de que trazíamos a notícia de minha morte.

Em seguida surgiu minha mãe, Clitemnestra.

Que dizer do aspecto que trazia, então, em seu rosto? Como negar que, suspeitando de minha morte, não tivesse o direito de ostentar em seu rosto a piedade materna?

Oh, desde aquele dia não tenho pensado em outra coisa. Mil vezes, em pensamentos ou em sonhos (que digo?, em meus pesadelos!), revi e continuo a rever suas feições estranhamente familiares. Posso reconstituir um a um o desenho de seus traços, desde o conjunto amplo do seu rosto até os seus menores gestos: o franzir de sua boca, o brilho dúbio de seus olhos — tudo, tudo! Dêem-me um carvão ou um bloco de mármore, e os reproduzirei todos, tais quais os vi, então! — e, no entanto, não saberia dizer, ainda neste instante, o que expressavam ou escondiam!.

Diferentemente de Electra, ela não me reconhecera.

Mais um sintoma de sua indiferença por mim? Ou talvez meu rosto não fosse mais o de um filho? Pode, então, um filho que germina durante longos anos no espírito a idéia de matar a sua mãe trazer ainda algo nas feições que o indique como tal? Pode uma mãe que um dia desejou a morte do filho pôr os olhos nele sem que seu coração se parta em dois? Seríamos, mesmo, ainda mãe e filho — ou já dois estranhos, que se defrontavam para um acerto final?

Só sei que quando dei por mim escutava a voz familiar de meu amigo Pílades, a qual me soava, entretanto, como que vinda de um sonho:

— Os maus fados abatem-se novamente sobre esta casa, pois eis que trazemos nesta urna as cinzas de Orestes, filho de Agamenon.

Nesse instante, meus olhos, temendo ver a alegria estampada nos olhos de minha mãe, desviaram-se involuntariamente e foram parar no rosto do impostor, o qual, eu tinha certeza, não conseguiria ocultar a satisfação.

Com efeito, vi imediatamente seus olhos brilharem. Em seguida, recuperando mal e porcamente o seu cinismo habitual, dirigiu-se a nós outra vez, velando, porém, a voz:

— São verdadeiramente funestas as novas que nos trazem… Depois, voltando-se para Clitemnestra, gemeu sordidamente:

— Oh, Clitemnestra, que dia aziago é este, que Júpiter nos anuncia? Não podendo, então, suportar por mais tempo essa farsa abjeta, Pílades

abriu a caixa que mantinha em suas mãos, sem, no entanto, permitir que os olhos dele vissem-lhe o conteúdo. Maldito cão infernal! Se tivesse continuado a nos olhar, teria visto luzir, então, em nossos rostos, o reflexo do aço dos punhais.

Enquanto os dois assassinos entreolhavam-se, simulando um luto atroz, Pílades sacou da caixa o seu punhal, me estendendo rapidamente o outro. E quando o rei e a rainha dirigiram outra vez para nós os seus olhares, nos encontraram já de armas em punho.

— Mas… o que é isto? — exclamou o usurpador.

Pílades, então, sem dar uma única chance para o adversário, enterrou com toda a força o ferro no seu coração. Em seguida retirou-o do peito de Egisto, que cambaleou para trás, já com a fronte gelada pela mão da Morte. Quando caiu ao chão vomitava um sangue negro, que cobriu inteiramente o seu peito infame, agora descoberto.

Ouvi um grito sufocado — um terrível e mudo grito! — que as duas mãos de Clitemnestra foram insuficientes para abafar.

— Orestes, faça agora o que lhe cabe! — gritou-me Pílades.

Levantei meus olhos do corpo retorcido do vilão e finalmente defrontei meus olhos com os de minha mãe.

Oh, sim, éramos mãe e filho, embora ao nosso jeito!

— Você… meu filho… Orestes… — gemeu ela, branca como o mármore que pisava.

Nada respondi, nem tentei justificar o ato que estava prestes a cometer. Um tal ato traz a sua própria justificação. Ergui o punhal e, desde então, nunca mais vi o seu rosto. Sua voz, porém, tive de escutar uma vez mais:

— Orestes, filho meu… Perdoe o sangue do seu sangue…

Minha mão, suspensa no ar, hesitou por alguns instantes. Mas Pílades, enérgico, repetiu:

— Orestes, lembre-se do oráculo! Faça o que deve ser feito!

O reflexo de algo brilhou rapidamente diante dos meus olhos. A lâmina, porém, ainda estava no alto, na mesma posição. Era a mesma. O aço brilhava, igualmente. Mas luzia nele, agora, uma mancha vermelha, que descia em vários filetes pelo metal, até alcançar o cabo de prata. Olhando para a frente, vi, então, estupefato, o corpo de Clitemnestra, rainha de Argos, estendido no chão…!

— Está feito o que tinha de ser — disse meu companheiro e me puxou pelo braço, para me afastar daquele lugar, para sempre maldito.

Nesse instante, porém, meu entendimento se turbou, e meus olhos se nublaram. E dessa névoa funesta vi surgirem aos poucos, à minha frente, essas odiosas criaturas — essas mesmas que ainda agora ali se assanham, ávidas por dilacerarem meu corpo inteiro!”

♦♦♦

A deusa Minerva, entendendo que acabara a defesa de Orestes, deu, então, por iniciada a votação que condenaria ou absolveria o réu. Cada qual dos doze juízes ergueu-se de seu assento e dirigiu-se solenemente à urna de votação, acompanhados sempre pelos olhares ávidos dos demais presentes. Ocultamente, introduziam em uma urna uma bola branca ou preta, conforme a natureza do seu voto.

As Fúrias, sempre inquietas, sibilavam ameaçadoramente a cada julgador que por elas passava, agitando suas tochas. Apolo, que recebera Orestes em seu templo para proceder à sua purificação, consolava-o, incutindo-lhe ânimo.

Encerrada a votação, finalmente Minerva começou a retirar as bolas da urna. Por seis vezes sua mão colheu de dentro bolas brancas. E, por outras seis, as bolas pretas.

— Os juízes não chegaram a um acordo — anunciou a deusa, laconicamente.

Orestes, angustiado, não sabia o que dizer nem o que esperar. As Fúrias abriram suas negras asas e entoaram seu espantoso hino, no qual clamavam pelo castigo mais cruel.

Minerva, a justa, decidiu, então, proferir ela mesma o voto decisivo:

— Meu voto será irrecorrível — disse, olhando severamente para todos -, e ai daquele que ousar empregar palavras rudes para contestá-lo!

A deusa subiu os degraus até a urna e diante dela depositou secretamente o solitário voto.

Em seguida, um dos juízes foi chamado para retirar dali o voto e proclamar a sentença.

— Minerva, deusa da sabedoria e magistrada suprema deste tribunal, decide agora pela absolvição do acusado! — disse, afinal, o juiz, retirando da urna a bola fatal.

— Parece que se encerra, finalmente, a época cruel das selvagens punições e das terríveis expiações — disse Apolo às Fúrias, com o semblante luminoso.

As três irmãs, contudo, esbravejavam, clamando contra o veredito:

— Que ninguém invoque, nunca mais, o nosso nome! Do antigo templo da justiça restam, agora, apenas destroços! Guardem bem estas palavras, pois exatamente isto repetirão futuramente os poetas.

— Que lhes disse, filhas do Érebo? — perguntou Minerva, encerrando a sessão.

Quanto a Orestes, abraçou-se ternamente a seu amigo e primo Pílades, sabendo que consigo encerrava-se, finalmente, o horroroso ciclo de crimes em sua família.


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