PRIMEIRO DIA
Cheguei hoje, finalmente, à ilha de Chipre, onde pretendo me instalar para exercer minha atividade de escultor. Dizem que os ares daqui são revigorantes, e a luminosidade, ideal para os artistas. Dei uma caminhada pelas ruas da cidade, assim que me livrei da arrumação de minhas coisas. As ruas são cheias de caminhos labirínticos, suas casas são baixas e sólidas, e a população é bastante agitada. “Bastante” talvez seja exagero; estando acostumado às minhas criaturas imóveis e silenciosas, não posso deixar de me surpreender quando entro em contato outra vez com seres humanos reais, vivos e inquietos — exatamente como eu, afinal.
SECUNDO DIA
Estou aguardando ainda a chegada do grande bloco de mármore que encomendei em Páros. Apesar de ter tomado esta providência há mais de um mês, calculando que já estaria aqui quando eu chegasse, acho que caí outra vez na conversa dos transportadores.
Ao final deste dia insuportavelmente quente, dei uma passada no porto para saber da entrada de alguma embarcação proveniente da ilha. Nada havia, o que me fez retornar a passo lento sob uma brisa fresca que soprava — felizmente! — vinda do mar.
TERCEIRO DIA
Como são atrevidas as mulheres desta ilha… Não posso deixar de me surpreender com seu comportamento vulgar; a maioria delas não hesita em se insinuar diante de qualquer homem, com propostas francas e ousadas. Não estou acostumado a isto e não posso deixar de achar que as mulheres perdem muito de sua graça quando são muito desinibidas.
Tive a oportunidade de dizer isto, de maneira franca, a uma delas, que riu simplesmente na minha cara, dizendo: “Querido, estamos fartas de ouvir falar tanto em virtude. Falemos um pouco de prazer”.
Se não houvesse impedido seu furor, creio que ela teria ido muito mais longe nas suas intenções; acho, porém, que fiz mal, pois em seguida ela me deu as costas, num desdém alegre que provocou o riso de todos — até dos homens, que parecem gostar deste tipo de mulher. Me abstive, no entanto, de revidar as suas chacotas.
QUARTO DIA
Finalmente minha encomenda chegou!
Pela manhã fui bem cedinho até o porto, com um forte pressentimento de que meu bloco de mármore estava a caminho. Quando cheguei, indaguei de um velho se estava prevista a chegada de alguma embarcação vinda de Páros.
O velho, sem me olhar no rosto, apenas indicou com seu dedo recurvo o alto-mar.
Lá ao longe pude identificar uma grande embarcação que avançava lentamente em nossa direção. Sem outro recurso, sentei-me sobre os degraus amplos do cais enquanto esperava. Uma chuvinha miúda começou a cair quando o navio encostou, bem à minha frente.
A nau, de fato, era proveniente da ilha onde eu fizera minha aquisição; em instantes tive a satisfação de ver descarregar, envolto por uma armação de tábuas, o meu sólido bloco de mármore — tão puro que lembrava o mais fino marfim.
Acompanhei com os carregadores o traslado da pedra até minha casa, feliz em poder retomar minha atividade, pois já andava cansado de tanta ociosidade.
Enfim, hoje mesmo comecei a trabalhar.
QUINTO DIA
Passei o dia inteiro pensando no que faria de meu magnífico bloco de mármore.
Vários temas me passaram pela mente, mas afinal terminei optando por fazer uma estátua de mulher — uma mulher de verdade, pensei, diferente de todas as que vejo na rua.
Sem me dar conta de meu paradoxo, continuei decidido a moldar uma mulher tal como eu a prefiro: bela e discreta. Talvez, admito, também com uma pitada muito sutil de malícia, mas muito diferente da malícia óbvia e exaustiva que vejo por aqui.
DÉCIMO DIA
A obra está avançando admiravelmente, ainda que a custo de muita concentração.
Durante cinco dias estive entregue à tarefa de dotar a minha estátua de um rosto superior a todos os outros. Não tenho tido tempo nem ânimo para desviar os olhos da minha obra.
Mas, afinal, concluí hoje aquela que para mim é e será sempre a parte mais importante de uma mulher: o seu rosto. Consegui de tal modo colocar nele as particularidades das feições mais belas que conheci, que acabei esculpindo um que não se parece com nenhum outro jamais visto.
Não sei exatamente como explicar; há nele um encanto que combina o ar sonhador oriental com o ar de ponderada reflexão das mulheres mais sábias da minha terra.
Seu semblante, a princípio, parece meio severo, da testa até o nariz. Dali para baixo, no entanto, resplandece uma alegria — comedida e mais interior — que está, julgo, perfeitamente representada no traçado meticuloso dos seus lindos lábios, que não são cheios nem finos, mas bem proporcionados.
Seu rosto tem uma forma ovalada, e seus cabelos compridos, descidos de cada lado de suas feições, são uma moldura perfeita para ele.
Não fosse o rosto de uma estátua, diria que estou apaixonado por ele.
DÉCIMO PRIMEIRO DIA
Depois de dar alguns retoques na cabeça, comecei a esculpir hoje o pescoço e o torso.
Será uma tarefa que exigirá muito tempo, pois esculpir as curvas de seus ombros e modelar os seus seios — que não sei ainda que formato e volume exatos terão — exigirá de mim todo o esforço e o talento de que eu for capaz.
Enquanto esculpia, porém, tive como que uma súbita inspiração. Abandonando o martelo e o formão, exclamei de improviso: “Galatéia!”.
Depois repeti várias vezes este nome, e nenhum outro me pareceu mais adequado ao seu porte e sua fisionomia.
DÉCIMO TERCEIRO DIA
Terminei de esculpir o busto. Preferi dar-lhe um volume intermediário entre o grande e o pequeno — talvez puxando um pouco para o grande. As duas estruturas estão inacreditavelmente sólidas e ao mesmo tempo parecem leves e soltas, de tal forma que parecem balançar toda vez que sacudo levemente o pedestal.
Será imaginação minha ou seus seios balançam-se mesmo a um leve toque de meus dedos? Bem ao centro de cada um dos montes coloquei duas pequenas saliências, que acrescentaram ao conjunto um efeito magnífico.
Como poderei, desse jeito, resistir por mais tempo aos seus encantos?
VIGÉSIMO QUINTO DIA
Finalmente concluí minha adorada estátua! Seus pés ficaram perfeitos. Nunca vi joelhos mais simétricos. Sua cintura não tem uma falha. Suas costas têm as linhas mais harmônicas do mundo. Eu a fiz inteiramente nua, mas pretendo logo cobri-la de sedas. Sim, cobrirei sua maravilhosa nudez de sedas e de jóias — as mais caras e belas que puder encontrar!
E vou fazer isto agora mesmo.
VIGÉSIMO SEXTO DIA
Comprei dúzias de vestidos para minha amada Galatéia. Comecei por cobri-la com um longo vestido azul, da cor da noite. Deixei apenas a descoberto a parte frontal do peito, num generoso decote.
Passei o dia, assim, a observá-la e a imaginar, deliciado, o que este longo pano ocultará de meus olhos. Sim, bem sei que minhas mãos a esculpiram inteira, desde os dedos das mãos até o maior dos seus segredos. Mas agora, estranhamente, é como se jamais a tivesse visto de outro jeito. Minha mão, porém, hesita em descobrir um milímetro sequer de seu corpo: tenho medo de que meus dedos queimem em contato com o ardente mármore de sua pele.
Descartei de uma vez a hipótese de loucura. Minha Galatéia é perfeitamente real na sua esplêndida e vivida imobilidade.
VIGÉSIMO SÉTIMO DIA
Hoje cometi algo que poderá parecer uma extravagância: removi minha querida Galatéia de seu pedestal e coloquei-a deitada no meu leito. Tive de me retirar do quarto por alguns instantes. Porém, quando retornei, levei um susto.
“Quem é você e o que faz em meu leito?”, lhe perguntei, tão viva ela me pareceu.
Aproximando-me, toquei então em sua mão. De seus dedos senti emanar um calor vivido, como se fosse proveniente dos dedos de uma mulher de verdade.
Não tive coragem de tirá-la do seu descanso e fui dormir no chão a alguns passos dela.
(Fiquei imaginando o que diriam de mim as pessoas daqui, se vissem esta estranha cena. ) Azar. Eu amo a minha Galatéia — e para mim ela está cada vez mais viva.
VIGÉSIMO OITAVO DIA
Beijei hoje, pela primeira vez, os lábios de Galatéia. Não, eles não são de carne. Quem me dera, entretanto, poder torná-los reais, úmidos e quentes, como os de qualquer outra mulher.
Ou, antes, como os de nenhuma outra mulher.
VIGÉSIMO NONO DIA
Começaram hoje as festividades em honra de Vênus. Estive em sua procissão e não pude deixar de me maravilhar com a devoção do povo, que acorreu em massa para reverenciar a mais bela das deusas. Durante o culto, enquanto se faziam os sacrifícios, uma idéia me passou pela cabeça, mas a descartei por me parecer absurda demais.
Galatéia, eu a quero viva — viva de verdade! Depois deste dia não posse querer outra coisa. Minha cabeça está em febre. Meus sentidos estão excitados.
Acho melhor explicar. Cheguei em casa hoje, quando o sol já surgia no oriente com seu primeiro brilho. Durante a noite inteira estive aproveitando as festividades de Vênus. Tão logo havia me passado pela cabeça a idéia — que tachei anteriormente de absurda — de fazer um pedido à deusa, vi-me envolvido por um cortejo das mais belas mulheres de Chipre. Sentindo ao meu lado tantos corpos vivos e femininos roçarem suas peles sobre a minha, fui tomado por um desejo natural de me unir a qualquer uma delas.
“Uma mulher de verdade, é disso que eu preciso para me libertar dessa obsessão!”, pensei.
Tão logo cheguei em casa, no entanto, fui punido por Galatéia, que hoje, mais do que nunca, me pareceu irremediavelmente de pedra! Seu rosto estava perfeitamente impassível e seus lábios não responderam ao contato dos meus.
A estátua — tenho a certeza — estava enciumada, terrivelmente enciumada.
“Mas o que posso fazer, minha querida Galatéia…?”, eu disse, tentando me desculpar.
Seu olhar recusava-se a fixar o meu, mesmo quando a olhava firmemente nos olhos.
Tomado pelo remorso, abracei-me, de joelhos, à sua cintura. “Nenhuma outra mulher poderá jamais chegar a seus pés!”, gritei-lhe, cobrindo-a de beijos.
Depois, mais calmo, resolvi pôr em prática o meu plano.
Esta noite irei ao templo de Vênus novamente.
TRIGÉSIMO DIA
Fiz meu pedido à deusa. Enquanto as pessoas faziam suas preces e queimavam seus incensos, empreguei todo o meu fervor em pedir que desse alma a Galatéia. Quem melhor do que Vênus, a deusa do amor, para entender o meu desejo secreto?
Estou escrevendo isto num quarto de estalagem, onde passo a noite. Tenho medo —
muito medo! — de chegar em casa e ver que meu pedido não foi atendido.
TRIGÉSIMO PRIMEIRO DIA
O dia inteiro vaguei pelas ruas até que, quando a noite já caíra, tomei coragem e decidi enfrentar meu destino. Atravessei o caminho margeado de árvores que levava até minha casa.
Fiquei em pé, parado diante da porta, um longo tempo, até que, tomando coragem, entrei, afinal.
A casa estava às escuras. Meu primeiro olhar foi direto para o pedestal.
Nada havia em cima dele!
Todas as hipóteses passaram como num turbilhão em minha mente, e a pior delas foi esta, que expressei audivelmente:
“Galatéia foi arrebatada de mim!”
Como um louco percorri todos os aposentos da casa, sem me lembrar, no entanto, daquele que era o único, além da sala, onde ela havia estado: o quarto!
Implorando a Vênus que a encontrasse — ainda que sob a forma de estátua —, rumei em passos vacilantes para lá. Ao entreabrir a porta, tive a maior sensação de alívio que um homem poderia sentir.
Deitada em meu leito, lá estava ela!
Coberta por um fino lençol, pude ver, na obscuridade do quarto, seus cabelos caídos sobre os olhos. Certamente eu a havia deixado assim, como fizera outras tantas vezes. Esquecido já até do pedido, ajoelhei-me aos pés da cama. Galatéia estava imóvel, como sempre estivera.
Feliz por ter ao menos sua imagem para sempre ao meu lado, colei meus lábios aos dela com fervor e paixão. Senti um calor emanar de sua boca, mas deixei por conta de meu desvario.
No entanto, ao descolar minha boca da dela, percebi que a parte inferior do lábio ficara momentaneamente grudada ao meu, como ocorre com os beijos entre seres de carne e osso.
“Não pode ser…!”, pensei. Em seguida, com o coração galopando em terrível descompasso puxei a coberta que estava erguida até o seu peito.
Enquanto retirava a coberta, toquei involuntariamente no seu braço, que se afundou suavemente ao contato de meu dedo, retomando em seguida à aparência normal. Sua pele nem de longe lembrava a frieza do mármore.
Galatéia estava viva! Sim, não podia mais haver dúvida alguma.
Tomando sua cabeça em minhas mãos, despertei-a, talvez abruptamente demais. Seus olhos — como não pude perceber que estavam até então cerrados, se nunca antes assim estiveram? — abriram-se lentamente, mostrando um brilho meio assustado.
Pela primeira vez, seus olhos olharam verdadeiramente para os meus, sussurrando o meu nome.
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