Quando Midas deixou de ser rei, ele foi habitar os campos, juntamente com Pã, a divindade dos bosques. Ali vivia em agradáveis conversas com a mais feia e desagradável das divindades, que tinha pés de bode e corpo peludo, parecendo em tudo um fauno.
Este deus, apesar de ser pouco favorecido pela beleza, tinha um dom inegável para a música. Tendo inventado uma flauta, passava seus dias se exercitando, de tal sorte que havia adquirido uma destreza ímpar com o seu instrumento. Empolgado com seu talento, resolveu um dia desafiar o próprio Apolo para um concurso de música.
Midas ainda tentou, precavidamente, demovê-lo da idéia:
— Não sei, Pã, mas não acho recomendável pretender bater-se com o próprio Apolo.
Com sua lira, ele não tem rival.
— Afinal, você é meu amigo ou amigo de Apolo? — disse Pã, fazendo uma careta de desagrado que o tornou mais repulsivo ainda.
Como o deus dos bosques não se mostrasse disposto a evitar o confronto, mandou-se um mensageiro atrás de Apolo, encarregado de lhe levar ao conhecimento o desafio.
Apolo concordou em realizar a disputa e, chegando ao local do embate musical, perguntou, em tom debochado.”
— Quem é o atrevido que ousa se achar melhor do que eu? Será meu filho Orfeu, talvez?
— Não, sou eu, Pã, que com minha flauta provarei ser melhor do que você!— exclamou o deus, confiante.
Os deuses todos do Olimpo reuniram-se para assistir ao desafio, que se deu no próprio bosque onde residiam Midas e Pã. O próprio Tmolo, deus da montanha, afastou as árvores de seus ouvidos para escutar melhor os acordes dos dois competidores.
Sentando-se numa grande pedra, Pã sacou de sua flauta e começou a soprar sobre os tubos enfileirados de seu instrumento. Um som melodioso e triste partiu daqueles minúsculos orifícios, espalhando-se pelo ar com tal encanto e sonoridade que os próprios pássaros silenciaram para escutar. As folhas das árvores despejavam o orvalho acumulado em suas folhas com tal intensidade que parecia que choravam, comovidas com os acordes da triste música. Os deuses escutavam com atenção, agradavelmente impressionados. Alguns julgavam mesmo que dificilmente Apolo faria melhor com sua lira. Quando Pã terminou seu recital, todos aplaudiram-no com entusiasmo.
Agora era a vez de Apolo demonstrar seu talento. Lançando para as costas a sua túnica púrpura, o deus do Sol ajeitou a folha de louro sobre a orelha. Depois, empunhando a lira de ouro, começou a deslizar pelas cordas finas como teias de aranha os seus dedos delicados, arrancando delas um som que era nada menos do que celestial.
Outra vez os olhos dos circunstantes encheram-se de brilho. A natureza silenciara uma vez mais, para escutar os ritmos e tons do instrumento, acompanhados ainda pela voz maviosa de Apolo, que unira assim dois instrumentos num só — o que o seu adversário não pudera fazer, por ter uma voz estridente e desafinada. Por isto dizia-se que a flauta de Pã era mágica, pois conseguia transformar sua voz anasalada num som limpo e perfeitamente modulado.
Enquanto Apolo executava sua canção, foi crescendo no entendimento de todos a certeza de que seria ele o vencedor, afinal. Com o último acorde de sua lira, os aplausos choveram de todos os lados.
— Bem, vamos ao julgamento — disse o deus da montanha, que já tinha seu voto firmado.
Um a um foram os deuses dando seus vereditos — sendo desnecessário requisitar-se o voto de Minerva, aquele que decide as questões controversas, pois ali parecia não haver lugar algum para a controvérsia.
— Pã foi maravilhoso, mas Apolo foi insuperável! — disse Vênus, dando seu voto.
— Não pode haver dúvidas de que Apolo, unindo sua voz à de sua lira, é o vencedor! —
disse Mercúrio, de maneira enfática.
— Apolo é o melhor — afirmou Juno, com sua habitual reserva.
Todos votaram, até que chegou a vez de Midas revelar o seu voto. Vendo que seu amigo estava fragorosamente derrotado, resolveu dar-lhe um voto de consolo — pois sabia ele que Apolo se saíra muito melhor.
— Apolo é imbatível com sua voz melodiosa e sua lira afinada, todos sabem. Infelizmente para ele, hoje sua lira esteve minimamente desafinada, o que qualquer ouvido mais apurado deve ter percebido — começou simplesmente a dizer Midas. — Entretanto, a flauta de Pã esteve simplesmente perfeita, e os sons que saíram dela não perderam um tom do seu brilho e musicalidade. Foi uma execução absolutamente impecável e, por isto, não hesito em afirmar que Pã foi, inequivocamente, o vencedor.
Alguns aplausos soaram, mas Apolo estava francamente revoltado com o julgamento de Midas. Seu semblante alterado denunciava a sua vaidade ofendida, pois esperava vencer com a unanimidade dos votos, tornando sua vitória absoluta e irrefutável. “Quem este idiota pensa que é?”, pensou o deus, enquanto fuzilava um olhar mortal sobre Midas. Este, percebendo a fúria acesa nos olhos do ofendido, tentou consertar:
— Quero deixar bem claro que a derrota de Apolo, no meu modesto entender, se deveu não à sua imperícia, mas a um defeito de afinação do próprio instrumento…
Mas já era tarde demais; o estrago já estava feito, e seu adendo perdeu-se em meio ao burburinho dos circunstantes, que se dispersavam para retornar aos seus lares.
Apolo, entretanto, decidiu aguardar o atrevido que ousara desfeiteá-lo em público, daquela maneira. Tão logo se viu a sós com o juiz adverso, assumiu um ar vingativo:
— Já que suas orelhas parecem ser mais apuradas do que as dos demais, lhes darei um formato mais de acordo com elas — disse, lançando sobre o pobre Midas uma praga.
Assim que Apolo lhe deu as costas, Midas sentiu que suas orelhas começavam a crescer.
Tufos de cabelos nasciam nas covas do imenso pavilhão que apontava nos dois lados da cabeça.
Em menos de um minuto Midas tinha colado nos dois lados da cabeça um imenso par de orelhas de burro.
— Está aí o que se ganha em querer ajudar os amigos! — disse, ao ver que ficara algo parecido com Pã, que também tinha suas orelhas pontudas de silvano, só que em tamanho muito maior.
Desconsolado, Midas tentou esconder seus horríveis apêndices com um barrete, que enterrou na cabeça, até ocultá-los totalmente. Assim viveu durante um certo tempo, até que um dia seu cabeleireiro veio, a seu pedido, até o bosque para lhe cortar o cabelo. Ao retirar a proteção de sobre a cabeça do cliente, o barbeiro encheu-se de assombro, e ia falar, mas Midas interrompeu-o, tomando-Ihe a tesoura com grosseria:
— Cale-se, não diga uma palavra, idiota! Se ousar abrir o bico e contar para alguém, corto fora… as suas orelhas!
O barbeiro, assustado, silenciou rapidamente, executando a sua tarefa com discrição. E, ao final do trabalho, juntou seus instrumentos e afastou-se, desaparecendo bosque adentro. No entanto, sua língua ardia, a vontade de falar era intolerável, pois todos sabem como os profissionais dessa classe adoram uma novidade.
Não podendo mais se conter, decidiu parar no caminho e cavar com a tesoura um buraco no chão. Depois, abaixando-se, protegendo a boca com as mãos, ciciou no interior do buraco estas palavras:
— Midas tem orelhas de burro…
E cobriu a fenda com terra, logo em seguida.
O tempo passou, até que no local brotou um feixe extenso de bambuzal. Tão logo o primeiro vento mais forte soprou entre os caniços, arrancou deles as palavras que, ainda que entoadas num sussurro, eram perfeitamente audíveis:
— Midas tem orelhas de burro…
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