Argos e Io

Amanhecia no Olimpo. Juno, a rainha dos céus, acordara há pouco e percebera que estava só em seu leito. Júpiter, seu esposo, já havia levantado.

“Por que terá levantado tão cedo?”, perguntou-se Juno, algo desconfiada. Há vários dias o seu esposo vinha apresentando um comportamento estranho. “Deve estar me preparando alguma…”, pensou consigo mesma.

Abrindo as cortinas de seu maravilhoso quarto, a ciumenta deusa relanceou o olhar por sobre a vastidão do mundo, até fazê-lo recair, finalmente, sobre uma imensa nuvem escura que cobria a região que cercava o rio Ínaco, na Grécia. Curiosa, Juno resolveu descer até lá para ver o que se passava. Em má hora. porém, tomara esta decisão, pois abaixo desta grande nuvem escura estava seu marido, Júpiter, fazendo amor com a ninfa Io, filha do rio. Há vários dias que o deus adquirira o hábito de dar estas ligeiras escapadas até as margens daquele rio, para desfrutar dos prazeres da nova amante. Como temesse, porém, que a sua esposa viesse um dia a descobri-los, estendera sobre o céu daquela região um imenso tapete de nuvens negras. De repente, sua bela amante, que estava deitada sobre a relva, percebeu que a nuvem se desfazia e que em meio a seus farrapos surgia a robusta e vingativa Juno.

— Júpiter, sua esposa está chegando! — exclamou, assustada, a bela ninfa, procurando cobrir-se rapidamente.

Júpiter, levantando a cabeça do peito nu de Io, voltou o olhar para o céu, enquanto passava a mão em seu manto. Imediatamente ergueu-se, com os cabelos ainda revoltos, e disse à bela amante:

— Não se assuste, Io querida, mas serei obrigado a metamorfoseá-la em algo…

Sem esperar resposta, transformou-a numa novilha.

No mesmo instante, Juno descia à Terra, pousando às margens do rio.

— O que faz aqui, parado diante desta vaca? — perguntou a deusa, irritada.

— Eu? — gaguejou Júpiter. — Bem, eu estava passeando por esta bela região quando vi pastando mansamente, às margens deste belo rio, esta encantadora novilha. Achei-a tão linda que fiquei observando-a um pouco.

Juno, fingindo acreditar nesta desculpa indigna de um deus, acercou-se da novilha, como se fascinada com a beleza do animal:

— É, de fato, uma bela novilha — disse, alisando o pêlo sedoso e macio. Estudou o animal durante um tempo, enquanto Júpiter a observava, temeroso.

— Realmente magnífica — disse a deusa, por fim. — Dê-a para mim, querido Júpiter!

O pai dos deuses não sabia o que dizer, diante do inesperado pedido. Como negar o presente, sem atiçar de modo definitivo as suspeitas da esposa? Viu-se ?brigado a ceder o animal a Juno, e assim foram embora, a novilha sendo puxada pelos cornos pela satisfeita deusa, que parecia muito feliz com o presente.

Tão logo chegaram ao Olimpo, Juno chamou o seu fiel criado Argos:

— Argos, tenho uma tarefa para você — disse, de modo imperioso.

— Pois não, rainha das deusas — disse a estranha criatura, que possuía cem olhos.

— Está vendo esta novilha? — perguntou Juno, apontando para Io disfarçada.

— Sim, poderosa Juno, meus cem olhos não poderiam deixar de admirar tão belo animal.

— Silêncio! — disse a deusa, com rispidez. — Quero apenas que a leve para um local afastado, mantendo-a sob a mais estrita vigilância.

Argos obedeceu, retirando-se logo em seguida juntamente com a infeliz >. A pobre ninfa derramava escondida grossas lágrimas de pesar, enquanto era carregada pelo horrendo criado para um vale deserto. Uma vez ali, Argos soltou-a, sentando-se numa alta pedra, de onde podia observar toda a região.

Assim, fosse dia ou noite, a atenta criatura jamais despregava sua multidão de olhos da infeliz Io. Nem para dormir o gigante deixava de vigiá-la, pois jamais fechava mais de dois olhos durante o seu sono desperto. Desta maneira viveu Io durante muito tempo, lamentando a sua sorte: “Jamais me livrarei da vigília deste maldito monstro”, ponderava a pobre Io, enquanto arrancava do solo os horríveis tufos de grama, que engolia sem mastigar.

Júpiter, saudoso dos prazeres de sua adorável Io, foi disfarçadamente até os estábulos do Olimpo e lá ficou sabendo do ardil da esposa. Indignado, mandou chamar imediatamente o seu fiel Mercúrio.

— Tenho uma sigilosa missão para você — disse o deus dos deuses para o filho. —

Quero que você descubra onde está a minha adorada Io e a traga de volta. Mas antes deverá matar Argos, o gigante que a mantém prisioneira.

— Assim o farei — disse Mercúrio, disposto a dar cumprimento às ordens. Disfarçou-se em pastor, escondendo as asas num manto que o envolvia por inteiro. Levava consigo o caduceu, bastão de ouro capaz de fazer adormecer qualquer ser vivente.

Em um instante Mercúrio percorria velozmente todos os vales e pastos da Grécia, tentando descobrir onde estava o esconderijo de Io. Sobrevoava uma certa região quando finalmente a avistou. Tomando o aspecto de um pastor, juntou algumas ovelhas e desceu à Terra.

Foi se aproximando, lentamente, com um ar distraído, enquanto tocava sua flauta de Pã.

— Que instrumento maravilhoso é este? — perguntou Argos, tão logo percebeu a chegada do forasteiro. — Aproxime-se, jovem pastor, e toque um pouco mais

— Lindo dia, não? — foi dizendo de modo jovial o pastor, fingindo não perceber a novilha, já que Argos permanecia com seus outros noventa e nove olhos postos sobre ela. —

Esta é minha flauta, e com ela procuro distrair o tédio durante minhas caminhadas — disse, chamando a atenção do segundo olho do monstro.

“Onde arrumarei mais noventa e oito novas distrações?”, pensou Mercúrio.

— Esta bela flauta que você está vendo foi criada pelo deus Pã — continuou a dizer o filho de Júpiter. — Existe, a propósito, uma lenda interessante que descreve a sua invenção.

— E mesmo? — disse Argos, que adorava lendas.

— É uma bela história, na verdade! — acrescentou Mercúrio e em seguida começou a narrá-la, tornando-a aborrecida na tentativa de adormecer o monstro. Haveis de saber, ó vós que me ouvis, que em eras mais recuadas os mais encantadores e majestosos bosques de toda a Grécia foram brindados com o surgimento de uma esplendorosa ninfa. Seu nome era Sirinx, cujos lábios carmesins tinham o odor das açucenas e o tom escarlate das cerejas…

Ele contou, naquele mesmo estilo enfadonho, que a bela ninfa jurara jamais se entregar a homem algum, sendo devota fiel de Diana, a deusa da caça e das matas, protetora da virgindade.

Um belo dia o deus Pã, passando por uma vereda do bosque, avistou-a voltando da sua caçada e apaixonou-se perdidamente. Saiu correndo em seu encalço, mas a ninfa fugiu a toda pressa por entre as árvores do bosque, até chegar à margem do rio. Ali o impaciente Pã, num salto ágil de seus pés de bode, conseguiu agarrá-la pela cintura. Apavorada, Sirinx pediu o auxílio de suas amigas ninfas, que imediatamente a tiraram das mãos do sátiro, deixando em seu lugar apenas um feixe de juncos. O pobre Pã, desconsolado, deixara-se cair ao chão, segurando o seu miserável prêmio. No entanto, ao dar um suspiro, seu sopro passou por entre as varetas, produzindo um som melodioso, que encantou o infeliz amante. Tomou alguns dos juncos, de tamanhos desiguais e, colocando-os lado a lado, criou um novo instrumento, conhecido por “flauta de pã”, que o consolou da perda que sofrerá.

Mal Mercúrio terminou de contar essa história e o seu adversário já havia adormecido.

Assim que ele percebeu que todos os olhos de Argos estavam cerrados, tomou sua varinha mágica e redobrou de intensidade o sono do inimigo. Depois, puxando da sacola uma grande espada, aproximou-se da presa fácil e desceu a lâmina sobre o pescoço do pobre Argos, decepando sua cabeça, que rolou pelo chão com seus cem olhos arregalados de espanto.

Retirando Io daquele lugar maldito, disse-lhe:

— Pronto, agora já está livre!

Juno, ao descobrir o horrível fim que tivera Argos, encheu-se de tristeza. Depois, recolhendo os cem olhos do monstro, colocou-os na cauda de seu pavão de estimação, homenageando desta forma o seu desastrado e infeliz servidor. Mas ela, que não era mulher de lamentações, decidiu ainda se vingar da causadora daquela tragédia. Para tanto convocou ao seu palácio uma das Fúrias, as deusas do ódio, da vingança e da justiça, nascidas do sangue de Urano quando este fora mutilado.

A deusa dos castigos apresentou-se imediatamente.

— Quero que você atormente esta desgraçada, perseguindo-a até os confins da Terra! —

ordenou Juno, tomada pela cólera.

A Fúria, tomando a forma de uma gigantesca mosca, saiu pelos ares em busca de Io, que ainda estava metamorfoseada numa novilha. Tão logo a avistou, voou até ela cobrindo-a de picadas. Io, apavorada, disparou numa correria louca pelo mundo, levando sempre atrás de si o terrível inseto. Fugiu, atravessando vários países, até chegar às margens do Nilo, onde tombou, enfraquecida pela fadiga. Júpiter, sabedor de mais este ato de crueldade da incansável esposa, decidiu pedir perdão a ela, prometendo que jamais tornaria a procurar a bela Io, desde que Juno cessasse de atormentá-la e lhe devolvesse a sua antiga forma.

Juno aceitou a proposta, e assim, Io, enquanto se recuperava do cansaço, ainda às margens do Nilo, percebeu que retomava, aos poucos, seu antigo aspecto. Seu rosto lentamente diminuía de tamanho, enquanto seus chifres recuavam para dar lugar outra vez a seus negros e sedosos cabelos. As patas dianteiras foram ganhando novamente o formato de seus antigos braços, enquanto os cascos retornavam à condição de mãos. Tão logo retomou a sua esbelta forma, passou a viver no seu novo país, onde se tornou uma deusa muito venerada.


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