— A mulher mais veloz do mundo é minha filha, Atalanta! — dizia sempre Esqueneu, o rei de Ciros, orgulhoso.
Sua filha, por sua vez, não fazia nada para desmentir tais palavras. Desde menina que a esbelta Atalanta já corria velozmente pelos campos. Porém, também corria uma lenda a respeito desse hábito — que nela parecia mais uma obsessão — e que dizia o seguinte: quando a jovem nascera, fora profetizado que ela jamais deveria se casar, pois o casamento seria a sua ruína.
Levado por este temor, seu pai a ensinou desde cedo a se esquivar de qualquer pretendente, pois desde a infância que os pedidos de casamento se acumulavam diante do trono:
— Minha filha, lembre-se de que você jamais deverá se casar — dizia-lhe sempre seu pai, quando a via inclinada a aceitar os elogios de algum amante mais afoito.
Atalanta acabou gostando do hábito de se esquivar, de tal forma que sentia mais prazer em fugir do que conversando com seus pretendentes. Tendo se colocado sob a proteção de Diana, a jovem isolou-se no campo, em caçadas com suas companheiras.
Mas os pedidos continuavam cada vez mais, e com tanta insistência, que um dia ela disse ao pai:
— Pai, não agüento mais essa perseguição dia e noite! Preciso afastar esse bando de impertinentes.
O rei concordou e arranjou um meio de afastá-los: todo homem que quisesse receber a mão de sua filha teria de vencê-la em uma corrida de vida ou morte. Aquele que perdesse, porém, seria inevitavelmente morto.
— Isto os fará pensar duas vezes antes de entrar na disputa — disse o rei. Atalanta ficou encantada com a idéia, pois tinha certeza de que ninguém
conseguiria ser mais veloz do que ela. Ficou marcada, assim, uma corrida para o mês seguinte.
Apesar da ameaça que pairava sobre a cabeça dos concorrentes, apresentou-se uma quantidade imensa deles, de tal modo que o rei chegou a pensar em suspender a disputa.
— Não se preocupe, pai, eu vencerei todos eles! — disse Atalanta, confiante.
No dia marcado, apresentaram-se homens de todos os tipos. Mais um pouco, e surgiu o alvo de todas as atenções: Atalanta, cuja beleza nunca estivera tão evidente. Seus cabelos estavam presos num gracioso penteado ao alto da cabeça. Vestida com um levíssimo traje de linho, ela achou melhor despi-lo, para ter seus movimentos facilitados. Mas ao despir-se, fez também com que mais uma centena de concorrentes se inscrevessem às pressas, aglomerando-se entre os demais na linha de partida.
Aquilo começava a tomar as perigosas proporções de um suicídio coletivo.
— Isto será um verdadeiro massacre, alteza! — disse um assessor do rei, temeroso das conseqüências.
— Ótimo — replicou o monarca. — Servirá de lição aos futuros pretendentes.
Enquanto isto se passava nas tribunas, Atalanta, separada dos concorrentes, passava um óleo por todo o corpo. Seus seios e curvas brilhavam ao sol, e a jovem parecia recém-emergida das águas. Suas formas eram atléticas o bastante para lembrar o corpo de um homem e suficientemente femininas para afastar tal idéia. Os músculos de suas pernas luziam, fremindo como as coxas de um puro sangue, enquanto seus pés, flexionados, tinham a perfeição dos pés de uma estátua prestes a saltar do pedestal.
Quando a jovem se abaixou para esfregar o óleo nas canelas, um suspiro de admiração percorreu toda a assistência: seus seios, apesar de volumosos, permaneciam firmes e sólidos, enquanto as nádegas fremiam no retesar vibrante dos músculos.
Atalanta lançou, então, um olhar aprovativo para o rei, na tribuna. Finalmente, soou o sinal para a partida. No mesmo instante Atalanta partiu, lançando seu pé direito para a frente num salto que lembrava o da mais ágil gazela. Os homens, amontoando-se na pressa de serem os primeiros, tropeçavam uns sobre os outros, caindo num bolo humano logo na saída. Parecia que um monstro masculino formara-se no solo, com dezenas de cabeças, membros, braços e pernas.
Dentre os juízes, contudo, havia um jovem ambicioso, chamado Hipomene, que mais que qualquer outro parecia acompanhar a competição em um estado de ânimo próximo do êxtase.
Desde que Atalanta se despira, ele não pôde mais desgrudar os olhos daquela magnífica mulher.
“Essa mulher será minha!”, pensava Hipomene, enquanto torcia pela vitória de Atalanta e, conseqüentemente, pela morte de todos os seus adversários.
Atalanta já ganhara a dianteira; seu corpo movia-se com a perfeição elástica de um felino.
Os pés nus batendo sobre a areia levantavam um fino vapor, como se pelo atrito fossem incendiar o solo. Os seios rijos da princesa sacudiam, mas sem comprometer a leveza dos movimentos. Seu rosto, incendiado por duas manchas vermelhas, abrasava-se, enquanto da boca escapava um sopro forte e ritmado. Mas a nada disso os concorrentes — sempre atrás de Atalanta — puderam ver. Enxergaram apenas as suas costas, o que, por certo, não era espetáculo menos digno e empolgante: os ossos de suas omoplatas moviam-se alternadamente, ao ritmo dos braços, produzindo um movimento perfeito da musculatura dorsal. As nádegas não balançavam, mas fremiam, absorvendo o impacto das vigorosas passadas.
Os adversários já estavam reduzidos a apenas meia dúzia de concorrentes que, de longe, não ameaçavam a moça. Mesmo o mais veloz nunca esteve a menos de cem metros dela, que dava-se ao luxo de virar-se para observar os rivais.
Quando Atalanta cruzou a linha de chegada, um sorriso brilhava nos seus lábios entreabertos. Os infelizes, derrotados, foram imediatamente reunidos para o sacrifício.
— Pai, proponho que, no lugar de serem sacrificados, sejam estes homens privados da sua virilidade! — disse Atalanta, mostrando-se mais cruel em sua aparente piedade do que se tivesse autorizado a morte de todos. -Assim, ao menos, deixarão de me incomodar.
O povo, no entanto, viu-se presenteado com o espetáculo das execuções, do qual desfrutou com imenso assombro e prazer, enquanto a causadora do holocausto retirava-se, aborrecida pelo vulgarismo do sangue. Contudo, Hipomene — cuja decisão não fora afetada pelo funesto resultado da competição — continuava determinado a conquistar Atalanta. Pulou da tribuna e caiu aos pés da bela corredora e futura adversária:
— Lindíssima Atalanta, permita que eu a desafie para uma disputa, somente eu e você!
— disse Hipomene, com os olhos erguidos e ofuscados pelo olhar surpreso da moça.
— Você… ?! — disse Atalanta, surpresa. — Não teme se unir àqueles desgraçados?
— A única coisa que temo é não ter você ao meu lado — exclamou o rapaz, arrebatado.
— Muito bem, belo e audacioso jovem, marque o dia e a hora — disse a moça, retirando-se para lavar o suor e o óleo de seu corpo.
Hipomene, à medida que via a data do confronto se aproximar, começava, no entanto, a inquietar-se. Talvez tivesse sido imprudente ao se lançar a um desafio sem ter um trunfo nas mãos.
Na véspera da disputa, temeroso de perder a sua amada, ele foi ao templo de Vênus pedir proteção. A deusa do amor, lisonjeada com o pedido e desejosa de abater aquela moça que parecia fazer pouco dos seus dons, disse ao desesperado pretendente:
— Aqui, ao lado do templo, há um pomar consagrado a mim; vá até lá e colha três maçãs douradas que pendem de seus galhos.
Instruiu-o na maneira de usar os frutos durante a competição, e o rapaz saiu, mais confiante. No dia seguinte, postaram-se ambos — Atalanta e Hipomene — para a disputa, o que atraiu nova multidão ao campo do confronto. Atalanta, bela e radiante, estava lado a lado com seu oponente, que preferiu correr vestido com um pequeno manto — em cujos bolsos levava as três maçãs. Tão logo o rei deu o sinal para a partida, Atalanta arremessou-se outra vez para a frente, nua e ágil como uma leoa. Hipomene, não menos empolgado, também lançou-se com toda a vontade. O jovem parecia ser o primeiro rival à altura da veloz moça. Por alguns instantes esteve emparelhado com Atalanta, roçando a sua pele nos membros ágeis daquela mulher e sentindo em seu rosto o hálito intenso e perfumado da adversária. Tão entusiasmante era esse combustível, que Hipomene não precisaria sequer das suas maçãs para chegar no mínimo empatado com ela. Atalanta, percebendo a proximidade, apertou o passo e logo deixou para trás o desafiante.
Hipomene, vendo que suas forças não seriam o bastante para dobrar a rival, decidiu recorrer ao artifício de Vênus. Pegou do bolso uma das maçãs douradas, esfregou-a no manto e lançou-a longe, de tal modo que o fruto caiu um pouco adiante dos pés de Atalanta. A moça, vendo aquele objeto dourado rolar aos seus pés, parou para ver o que era. Ajoelhando-se, recolheu o fruto, admirada de seu brilho e beleza, enquanto Hipomene aproveitava sua distração para ultrapassá-la. Entretanto, percebendo que o rapaz a deixava para trás, Atalanta retomou a corrida e num instante ganhou vantagem sobre o adversário. Hipomene, outra vez, recorreu ao mesmo expediente. Atalanta, apesar de já ter sido enganada uma vez, não pôde deixar de recolher novamente o belo e precioso fruto. De posse dele, retomou sua carreira, ultrapassando com facilidade Hipomene. Agora ela já estava a dez passos da linha de chegada. Hipomene teve de calcular bem o seu último disparo. Com extrema perícia, arremessou o último fruto dourado, que foi cair a apenas alguns metros da linha de chegada. Atalanta, calculando que teria tempo de juntar a maçã e ainda chegar à frente de seu adversário, abaixou-se para juntá-lo. — É agora ou nunca! — esbravejou o rapaz, colocando toda a sua força num último arremesso.
Enquanto Atalanta erguia-se, sentiu passar-lhe pelo rosto um vento veloz. Em seguida um grito de espanto ecoou ao seu redor.
Hipomene transpusera a linha de chegada e vencera a corrida! Atalanta, abatida, deu-se finalmente por vencida. O casamento foi marcado, e embora a jovem se mostrasse decepcionada com o resultado do desafio, não estava de todo desgostosa com as núpcias. Hipomene era um belo rapaz — e também inteligente, o que ela apreciava mais do que tudo em um homem.
Os dois casaram-se e tiveram a oportunidade de disputar ainda, reservadamente, muitas outras corridas, das quais ela se saía sempre vencedora. Cada vez mais se acendia o ardor entre os dois amantes, até chegar ao ponto de fazê-los descuidar-se de suas obrigações para com os deuses. Hipomene, num descuido imperdoável, esqueceu de agradecer a Vênus pela vitória. Irada, a deusa do amor decidiu punir marido e mulher, fazendo com que profanassem o templo de Cibele, deusa da fertilidade e da terra, ao fazer ali os exercícios prescritos por Vênus. A divindade, encolerizada com o desrespeito, puniu imediatamente os dois amantes, transformando Hipomene num leão e Atalanta numa leoa e colocando-os a puxar o seu belo carro.
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[…] Hipomene e Atalanta […]
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