Netuno, após ter sido engolido por seu pai, Saturno, a exemplo de seus irmãos, foi um dia regurgitado, depois que Júpiter obrigou o velho deus a ingerir uma beberagem mágica.
— Pronto, meu irmão — lhe disse Júpiter, satisfeito, depois de ambos haverem derrotado Saturno e seu poderoso exército na famosa Guerra dos Titãs. -Agora já pode tomar posse do mar, que é a parte do Universo que cabe a você. A mim caberão os céus, enquanto que nosso irmão Plutão reinará nos subterrâneos.
Netuno, todo sorrisos, abraçou o irmão. Mas embora todo o imenso território que lhe coube, não foi isto o bastante para contentá-lo. De fato, Netuno era um deus ambicioso, invejoso e intratável, e desde aquele dia entrou em inúmeras disputas com as mais diversas divindades: contra Minerva, disputou a Ática; contra Juno, o domínio da Argólida; contra Apólo, pelo controle do arquipélago de Delfos; e contra o próprio Júpiter, numa tentativa abortada de destroná-lo, ousadia que lhe custou o castigo de ter de servir o rei Laomedonte e construir para ele, pedra por pedra, as muralhas da cidadela de Tróia.
— Só entro em fria, mesmo! — dizia ele, enquanto carregava as imensas pedras. — E
além de tudo ainda tenho de agüentar este tagarela dedilhando a lira o dia inteiro. — Netuno referia-se ao deus Apólo, que também estava ali de castigo por uma falta cometida contra Júpiter.
— Sou um astro — disse o acalorado deus do sol, ajeitando-se numa sombrinha para melhor exercer o seu delicado ofício. — Nasci só para brilhar.
Netuno, para piorar, ainda teve o dissabor de ver-se logrado por Laomedonte, que recusou-se a lhe pagar o serviço.
E assim seguia sua vida, de deus rabugento e colérico, sempre fincando seu tridente no fundo do mar e provocando terremotos a propósito de qualquer contrariedade, a ponto de acabar conhecido como “Netuno, abalador da terra”.
— “Netuno, o importuno”, eis o que é! — disse um dia Júpiter, perdendo de vez a paciência. — É, não tem jeito mesmo, vamos ter de lhe arrumar uma mulher…
Depois de muito pesquisar, o pai dos deuses chegou à conclusão de que a solução estava nas mãos de Nereu, “o velho do mar”. Este deus decrépito era filho da velhíssima Terra e do antiqüíssimo Mar, e tinha uma penca de filhas, as Nereidas, assim chamadas em sua homenagem.
— Mercúrio! — disse Júpiter.
— Sim, meu pai — disse o deus dos pés ligeiros.
— Vá até o fundo do mar e me traga o velho Nereu.
No mesmo instante, Mercúrio, que era extremamente rápido em tudo que fazia, calçou suas sandálias aladas e rumou para o oceano. Dando um mergulho espetacular, chegou até os domínios de Nereu.
Mais tarde, no Olimpo, Júpiter exclamou, ao ver a visita:
— Nereu, velho amigo, que bom vê-lo aqui no Olimpo outra vez!
— O que ordena, deus supremo? — disse Nereu de longas e alvas barbas.
— Quero que ceda uma de suas filhas a meu irascível irmão — disse Júpiter, pondo uma mão sobre o ombro do velho amigo. — Não posso mais suportar as suas teimosias e temo que haja um confronto mais sério entre nós, caso ele não se acalme.
— Pois não, Júpiter poderoso — disse Nereu. — Pode escolher qualquer uma de minhas cinqüenta filhas.
— Cinqüenta? — exclamou Júpiter, puxando o lóbulo da divina orelha. -Mas não eram cem?
— Podem ser cem, como podem ser mil, deus supremo — disse o pobre Nereu, cuja memória já claudicava há muito tempo.
Depois de estudar a questão e analisar uma por uma as Nereidas, chegaram, enfim, a um consenso:
— Anfitrite será a esposa de Netuno! — disse Júpiter, jubiloso.
— Anfi-quem? — disse o pobre Nereu.
— Esqueça — disse Júpiter, dando uma palmadinha na face enrugada do amigo.
No mesmo dia Júpiter comunicou a escolha ao mal-humorado irmão, que decidiu, ainda assim, conhecer a sua futura noiva.
— Vá com calma — disse Júpiter. — As filhas de Nereu costumam ter o senso de independência muito pronunciado.
Mas Netuno, que tinha o senso de prepotência ainda mais pronunciado, não se intimidou.
— Onde posso ir encontrá-la? — disse, já se ajeitando.
— Ela está na ilha de Naxos, junto com suas irmãs — disse Júpiter. Netuno, confiante, partiu de seu palácio azulado no fundo do mar em direção a Naxos, conduzindo seu carro puxado por golfinhos.
Fazia um lindo dia de sol quando chegou às margens pedregosas da ilha. De fato, por cima dos grandes rochedos franjados pelas espumas do mar, lá estavam as encantadoras filhas de Nereu, algumas deitadas, descansando, enquanto outras, mais animadas, executavam os passos de uma movimentada dança. De vez em quando uma delas, estirando sua longa cauda recoberta de escamas douradas, dava um mergulho repentino nas águas verdes do arquipélago: um grande borrifo verde erguia-se, então, como se elas lançassem lá do fundo um imenso punhado de esmeraldas, que subiam, faiscando, em todas as direções.
Netuno, boquiaberto, pasmava para aquela cena paradisíaca.
— Verdadeiramente encantadoras… — exclamou o excitado deus, tratando, em seguida, de sentar-se ligeiro em seu carro.
De repente, escutou a voz de uma das Nereidas.
— Ei, Anfitrite! Venha juntar-se a nós, sua boba!
Os olhos de Netuno voltaram-se para uma grande pedra isolada, que estava situada mais para dentro do mar. A pedra tinha o formato de um leito, magnífico trabalho de polimento operado pelas perfeccionistas Ondas, que durante séculos, com toda a calma, a haviam polido até dar-lhe aquela conformação ideal.
Em cima daquele leito solitário e da cor do chumbo estava estendida a divina Anfitrite.
Era uma das poucas Nereidas a ter os cabelos negríssimos, da cor da noite, enquanto que as escamas de sua longa cauda tinham uma brilhante cor prateada, matizada por maravilhosos reflexos azulados e cor-de-rosa que se alternavam ao menor movimento. Com as costas coladas à pedra, Anfitrite dos cabelos negros tinha a face voltada para o alto; seu braço direito, caído sobre o rosto, protegia seus olhos dos raios fortes do sol, enquanto os peitos firmes apontavam para o céu.
Netuno empinou seu carro na direção da Nereida de esbelto corpo. Emparelhando com a rocha, Netuno esteve longo tempo a observar os traços de Anfitrite, para ver se podia confiar em suas virtudes. Mas a ninfa adorável permanecia com o rosto quase completamente oculto pelo braço. O deus dos mares, na verdade, só podia observar direito o nariz perfeitamente aquilino de Anfitrite e sua boca úmida e carnuda, maravilhosamente desenhada para o beijo.
“Que mulher!”, pensou Netuno, quase apaixonado. “Se tais são seus lábios e seu nariz…
oh, como não haverão de ser seus divinos olhos!”
Um arfar mais indiscreto do deus, contudo, despertou a atenção da formosa Anfitrite. Seu braço caiu e as pestanas de longos cílios recurvos ergueram-se, piscantes — e foi, então, como se duas estrelas houvessem se descortinado. -Divina e encantadora Anfitrite! — disse a voz rouca ao seu lado. — A partir de hoje será minha divina esposa e a você caberá a honra de ser, para sempre, o repositório sagrado de meu divino sêmen.
Anfitrite, assustada, ao enxergar a seu lado aquele homem espadaúdo, de longos cabelos recobertos de mariscos e uma barba hirsuta tostada pelo sol a lhe dizer tais disparates, deu um ágil mergulho para dentro da água. Netuno ainda conseguiu agarrar um pedaço de sua cauda, mas as escamas lisas escorregaram por entre seus dedos, até surgir a grande e quase transparente barbatana, leve e fremente como um leque, que lhe deu uma bofetada, antes de desaparecer nas ondas.
— Para onde foi… ? — bradou o deus, desesperado.
E desde aquele dia Netuno perdeu Anfitrite de vista. Percorreu todos os mares, foi mil vezes ao palácio de Nereu, nas profundezas do mar, mas ninguém sabia dizer onde ela estava.
Irado, Netuno começou a sapatear e a bater ferozmente com seu tridente por toda parte, demolindo os imensos rochedos subterrâneos e provocando, com isso, terríveis maremotos na superfície dos oceanos. Ondas imensas eram cuspidas para o alto e montanhas inteiras arremessadas para as costas das cidades marítimas, levando o pânico a todos os mortais.
Finalmente, Júpiter, no último limite da aflição, ordenou a Nereu que revelasse o local onde a apavorada Anfitrite fora se ocultar. O pobre velho não sabia, mas sua esposa Dóris, como toda boa mãe, sabia — e muito bem.
Depois de um sem-número de pedidos, Júpiter finalmente conseguiu obter da mãe das nereidas o que os rogos e súplicas do velho marido, é claro, não tinham podido alcançar.
— Somente as carícias de sua divina filha poderão suavizar o rude temperamento de meu irmão — disse Júpiter à ainda reticente Dóris. — Quando isto acontecer, e a crosta primitiva de meu irmão houver caído, verá ela que se casou com um homem gentil e atencioso, além, é claro, de ter se tornado rainha de todo um império.
— Rainha de todo um império… — resmungou várias vezes a mãe de Anfitrite, até que finalmente cedeu, embora fizesse questão de afirmar que não fazia o menor caso de vir a se tornar mãe da “rainha de todo um império”.
Revelado o esconderijo da filha de Nereu, o impaciente Netuno rumou para lá, silenciosamente, montado em seu discreto golfinho. Dentro de uma caverna, oculta por uma floresta de líquens, estava a assustada Nereida, quando Netuno, pé ante pé, adentrou o recinto.
— Anfitrite adorada! — disse ele, cujas barbas estavam lustrosas do aromático âmbar. —
Venha comigo e garanto que não terá jamais motivos para se queixar de mim.
Netuno parecia realmente mudado: trajado modestamente, sem aquele ar arrogante que o caracterizava, havia deixado em casa até o seu horroroso tridente. Anfitrite, cautelosa, estudou ainda, longamente, o aspecto do deus. Depois, ainda indecisa sobre se deveria ou não aceitar aquela proposta, perguntou, amuada:
— E quanto àquele negócio de “meu repositório de sêmen”?
— Oh, não, esqueça esta bobagem! — disse Netuno, baixando os olhos. -Você será, para sempre, apenas o repositório de minha divina devoção e meu divino carinho.
Ainda mais corado por aquele sorriso de superioridade da divina Nereida, Netuno enterrou as unhas nas palmas das mãos e resolveu voltar ao velho estilo.
— Venha, vamos de uma vez, minha rainha! — disse, encurralando-a na parede da gruta úmida e dando-lhe um beijo intenso e apaixonado.
Depois levou-a nos braços até o golfinho e retornaram para o palácio de Netuno, onde ambos, desde então, governam felizes o imenso império dos mares.
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