Mercúrio, o deus dos pés ligeiros

A cena é lírica: Maia, uma das belas ninfas do monte Cilene, está parada diante do berço.

Observa com toda a ternura o seu filho Mercúrio, que está aparentemente adormecido, com o dedinho metido na boca.

— Um digno filho de Júpiter! — diz baixinho a filha de Atlas. Enquanto observa o filho adormecido, relembra o dia em que, nos braços

do pai dos deuses, concebeu o filho numa das cavernas do monte Cilene. Júpiter havia feito descer dos céus uma grande tormenta para abafar os amorosos ruídos de sua união com a ardorosa ninfa. Agora, ali estava, diante dos seus olhos, o produto daquela inesquecível e tempestuosa noite de amor. Maia, na ponta dos pés, afasta-se do quarto, deixando o pequeno deus entregue aos cuidados do Sono, que vela ao seu lado.

Mas tão logo a mãe se afasta, uma minúscula pálpebra lentamente se abre. Mercúrio, com o rosto parcialmente oculto pelo cobertor, estuda o ambiente. Sim, o Sono, bem ao seu lado, está completamente adormecido.

Afastando as cobertas, o pequenino deus, ainda deitado, faz deslizar uma de suas perninhas para fora do leito. Enquanto o Sono sonha e ressona, o pequeno pé tateia o chão, à procura de sua minúscula sandália: ah!, ali está!

Deslizando o resto do corpo para fora do leito, o pequeno Mercúrio está pronto para protagonizar a primeira de suas façanhas. ‘ Uma façanha perfeitamente memorável!”, pensa o deusinho, lá no seu tatibitati divino.

Já com suas sandalinhas aladas presas ao pé, Mercúrio aproxima-se da janela. A noite é cálida e estrelada — perfeita para um delicioso vôo noturno. Dando um impulso às suas pernas, o deus menino lança-se à vastidão do espaço negro, isento de qualquer receio — porque o pequeno Mercúrio fora brindado com esta inexcedível virtude: nascera sem medo.

Pela primeira vez o filho de Júpiter corta a imensidão dos ares, levado por suas sandálias aladas. Incumbido por seu pai das mais diversas missões — na maioria das vezes urgentes e inadiáveis -, Mercúrio se notabilizará justamente por este seu atributo básico: o da irrequieta mobilidade. Nenhum deus mais ágil, mais expedito, mais voluntarioso e, ao mesmo tempo, mais disciplinado do que Mercúrio. Condutor de recados, não se limitará, porém, à função de mensageiro, sendo também condutor de almas. A ele, o mais atarefado dos deuses, caberá também a tarefa de conduzir as almas dos mortos até as margens do sinistro Aqueronte. Por muitas vezes, assim, o veremos levar heróis e mortais pelos caminhos obscuros do Hades sombrio: será ele, por exemplo, quem conduzirá Orfeu até os braços de sua amada Eurídice para o ardoroso e fugaz reencontro.

Mas o pequeno Mercúrio também, desde cedo, já revela outra de suas inúmeras vocações.

É o que veremos agora.

O deus-menino, após viajar muito, já está em Piéria, local onde Apólo, o deus solar, guarda os seus rebanhos. É noite, ainda, e os animais estão abrigados em seu redil. Mercúrio, sem se deixar deter por tão mísero detalhe, abre a porteira e sozinho — daquele tamanhinho — aparta cinqüenta novilhas para si.

“Uma… duas… três… três e uma… três e duas… cinqüenta de uma vez!”, contabiliza ele, lá na sua matemática infantil.

Uma coisa é furtar grosseiramente, sem arte nem graça; outra é fazê-lo com a elegância do estilista. Mercúrio é isto: um esteta do furto. Por isto é padroeiro dos ladrões e também —

desculpem — dos comerciantes. Mas sigamos adiante com o divino garoto, porque ele já vai longe, obrando a sua primeira façanha.

Conduzindo, então, as novilhas, ele chega ao Peloponeso. Na cauda de cada animal — e aqui está o engenho — prende uma vassoura de ramos, que vai apagando o rastro das reses. Mas isto ainda não é o bastante: o pequenino Mercúrio, sempre previdente, inverte também a posição dos cascos das novilhas, calçando igualmente as suas sandalinhas de maneira invertida, para tornar mais perfeita a ilusão.

No caminho, entretanto, cruza com um velho enxerido, que pergunta:

— Aonde vai com tantas novilhas, gracioso menino?

Mercúrio sabe que não o enganará, porque velhos metidos têm muita lábia.

— Fique com uma delas de uma vez! — diz Mercúrio, dando seus primeiros passos na antiqüíssima arte do suborno. — Mas não me denuncie, hein, velho?!

— Oh, não, confie em mim, gracioso menino! — diz o velho, abraçando-se à mais gorda das novilhas. — Confie em mim!

Mercúrio dá alguns passos e vira a esquina de um rochedo. O rosto de pica-pau do velho enxerido, contudo, não abandona a sua mente: “Oh, não, confie em mim, gracioso menino!

Confie em mim!”.

Aquele segundo “confie em mim!” é prova bastante: ele irá denunciá-lo. Mercúrio disfarça-se de proprietário ganancioso e irado e retorna.

— Velho enxerido, não viu passar por aqui um ladrão com cinqüenta novilhas?

— Bem, não…

— Dou-lhe uma novilha e mais quatro bois se me disser.

— Foi para lá, meu senhor! — grita o velho enxerido, apontando o dedo.

— Ótimo! — exclama Mercúrio, puxando seus bigodões de crina de proprietário ganancioso e irado. — Vou já buscar a sua recompensa.

Dobra por trás do rochedo e dali mesmo esmurra a montanha até fazer desprender dela uma rocha imensa, que vai cair exatamente sobre a cabeça do velho enxerido.

— Aí está sua recompensa! — diz Mercúrio, retomando a sua fuga.

E até hoje lá está um grande rochedo, sob a forma de um velho enxerido, postado em pé para sempre sob o pó do Peloponeso.

Depois disso, Mercúrio, novamente na sua forma original, conduz as novilhas até uma caverna, perto de Pilos. Ali faz uma oferenda aos deuses e aproveita para descansar. Está nisto, quando vê o casco vazio de uma tartaruga morta.

— Que é isso? — indaga a si mesmo.

Então, sem ter o que fazer, estica indolentemente alguns nervos de boi sobre o casco e, ao dedilhá-los, descobre que deles parte um som mavioso!

Mas eis que já amanhece, e Mercúrio retorna voando para casa, indo se meter rapidamente debaixo do cobertor. O Sono, é claro, ainda sonha docemente.

O deus Apólo, por sua vez, dá logo pela falta das suas cinqüenta novilhas. Mas descobrir o autor do maravilhoso furto é que são elas! Ludibriado pelas artimanhas do menino deus, não tem outro recurso senão valer-se — oh, vergonha! — de seu próprio oráculo, em Delfos.

Irado, Apólo apresenta-se diante de Maia, a bela mãe de Mercúrio, para reclamar das traquinagens de seu pequenino garoto. Ambos correm até o berço, mas pasmem, lá está ele, adormecido. Sua respiração está perfeitamente tranqüila, mas um ligeiro rubor de suas rechonchudas bochechas denuncia, talvez, uma recente atividade.

— É que ele está meio febril — diz a mãe, inventando qualquer coisa. Apólo coloca a mão na testa do bebê. Não, nada de febre!

— É que ele chupou o dedinho demais — diz a mãe, inventando outra desculpa.

E assim ficariam para sempre, porque mãe, em se tratando de filho, tem justificativa para tudo. Mas Apólo não está para rodeios, e já se prepara para dar umas palmadas no garoto quando este estica os dois bracinhos para fora das cobertas e começa a dedilhar uma bela melodia na lira que inventara.

Apólo congelou como uma estátua.

— Que instrumento maravilhoso é este?

Os hábeis e minúsculos dedos de Mercúrio dedilham com virtuosismo a lira, enquanto ele mastiga serenamente a sua chupeta.

Apólo, esquecido das malditas novilhas, só quer saber agora de obter aquela preciosidade.

— Vamos, dê-me esta lira e está tudo esquecido! — diz o deus, deliciado. Mercúrio estende o objeto — afinal, poderá fazer quantas liras quiser – e expele a chupeta com uma grande risada.


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