Menu fechado

O Silêncio

O SILÊNCIO – 433p.

PRÓLOGO – A Lua Vermelha

Na entrada da ponte, de olhos fixos no abismo, o anseio pela dor sarada. A mente dançava ao ritmo da aflição – um canto funesto. Cada passo hesitante reverberava o arrasto do coração. Ailin queria viver.

As sombras inquietavam-na sem piedade enquanto a lua iluminava a senda. O raro espetáculo celestial, tingindo a lua com tons de carmim, tornou as emoções indomáveis. Não podia entender por que as alegrias e conquistas pareciam sepultadas dentro de si.

Lágrimas, como o efêmero orvalho, deslizaram pela face de Ailin, que procurava algum motivo para a tristeza – um sequer.

Ailin acabara de chegar da missão e ainda trajava a vestimenta. Ao vê-la parada onde estava, o sentinela pensou que era a substituta para o próximo turno da guarda.

– Chegou cedo, mas vou aproveitar!

Já estava a três metros dela quando percebeu quem era. 

– Me desculpe! Eu achei que fosse… você está bem?

– Sim, sim… pode ir. Está tudo bem.

Embaraçada pelos olhos ainda inchados, preferiu assumir o posto a ter que explicar. E voltou a encarar o abismo que, enquanto ela tentava se lembrar de como tudo havia acontecido, pareceu se acovardar diante dela.

https://rockcontent.com/br/talent-blog/jornada-do-heroi
https://www.tertulianarrativa.com/apromessadavirgem

• (próximo tópico da promessa da virgem) A prova tangível de que seu sonho pode se transformar em realidade

CAPÍTULO 2 – O Início de Tudo (tá horrível)

O dia era importante. O sol dourava o céu anunciando que logo se poria. Os hakais só pensavam na cerimônia que mais tarde se iniciaria. Com o hakiba precoce do jovem Diban, havia muita expectativa. E algum receio.

Bran, tutor das crianças, mui crente que era, se perdera em seus pensamentos num misto de orgulho e preocupação. A cerimônia que sagraria a união inseparável talvez significasse mais que isso.

– A Rocha… – sussurrou consigo.

– É só um nome – comentou Mitsak, um aluno.

Cauteloso, Bran acrescentou:

– Pode ser. O treinamento dirá. Vamos terminar a nossa…

A conversa foi ouvida por Ailin, que se irritou e jogou suas coisas ao chão, chamando toda a atenção da sala.

– Ailin, pelo bem de todos! – gritou o tutor.

Ele ajeitava a insígnia no peito pela oitava vez no dia.

– Já sei que você é o especialista – Ailin murmurou.

A ironia o pegou de jeito.

– Eu ouvi o que disse. E eu prefiro…

– Sim, sim, “grande conhecedor dos mistérios da natureza” – disse Mitsak.

A classe riu. Já tinham ouvido aquilo algumas vezes. Ailin corou mais que Bran e se encolheu.

– Eu entendo que esse dia é difícil pra você, mas… 

Tocar em sua ferida a fez tentar mudar de assunto.

– Estamos perdendo tempo! Já era pra termos vencido as sanguessugas se…

Um aluno se intrometeu:

– Ninguém mais chama eles assim.

– E não estamos em guerra – disse Bran. – Insistir em falar deles com desdém não ajuda em nada. Depois de tantas guerras e mortes, estamos em paz com um tratado frágil com termos demais. Não é à toa que o caminho daqui até lá está quase irrastreável. Você precisa pensar menos nisso.

– Eu só penso nisso quando estou aqui.

– Então, é isso que temos que consertar, não acha? Se tivermos mais de nós envolvidos nos problemas reais, boa parte deles serão resolvidos. Não precisamos ser conhecidos só pela força militar.

Bran tocou na ferida de Ailin, que voltou a resmungar.

– Só porque você não tem coragem de… 

– Ah, se o bravo Hakalam visse onde está posta a preocupação de seus frutos! – meneava a cabeça.

– Ninguém mais fala isso também – o aluno, outra vez.

– Ninguém fala o quê? Frutos? Você quer sugerir outro nome para quem consegue o hakiba? Você teria um nome melhor do que o próprio Hakalam deu?

– E só porque ele foi o primeiro, somos frutos dele? Um pouco estranho – Ailin se intrometeu.

– Aí está, a ironia outra vez. Ailin, nós somos frutos de Hakalam, sim. Nós somos os hakais, a Família Hakal, não somos? Os seus hakas, essas criaturas maravilhosas, estão aí com vocês, esperando vocês alcançarem todo o seu potencial. E cada um terá o seu papel.

Ailin desprezou as palavras, mas não seu haka, que a olhava debaixo da cadeira. O réptil, agora mais acoado, arregalava seus olhos e se esforçava para entender até onde podia.

– Já pensou no Bukie grandão no seu braço e que tipo diferente de armadura ele seria? Quem sabe, se você viver o suficiente, ele não se torne como um dragão?

– Tá mais pra uma lagartixa… – disse Mitsak.

Com a sala toda rindo às custas de Ailin, a tentativa de acalmá-la desandou.

– Ah, é? Vocês vão ver!

Enquanto corria para longe do grupo, as outras crianças a olhavam com o mesmo olhar enfadado de sempre, exceto Ainan. Aos resmungos e berros, a pequena Ailin se distanciou e pôs-se a pensar em questões que grandes demais para ela. Tudo havia se tornado mais difícil depois que Bran disse na frente da classe que Ailin precisava de um choque de realidade para começar dar valor àquilo que a Família Hakal representava.

Sem se lembrar das canções de ninar e dos contos assustadores sobre Daxa, Ailin saiu dos limites do clã, como já havia feito outras vezes. Por instinto, dirigia-se ao Vale das Preces. Nessas horas, as referências sobre o lugar deixavam de ser convincentes. Mas, à medida que se aproximava, repensava cada passo. “Está tudo bem, as histórias são antigas e não provam nada”.

Aos poucos, admitia estar fingindo que as coisas não eram como deveriam; aos poucos, cogitava estar trocando o caminho da maturidade por uma ilusão; aos poucos, o receio se aproximava. 

O trajeto da saída comum ligava o monte encostado no planalto com uma ponte até a montanha do outro lado. A ponte ficava por sobre a entrada do vale. Ailin preferia não ser vista, nem sair do perímetro da cidade, escolhendo um atalho que ninguém fazia, antes do monte, acessando a entrada do vale pelo outro lado. Tinha sua própria trilha.

Seguiu até a lateral da encosta e, atravessando uma fenda, deslizou por entre as pedras. A descida era longa. Para entrar por esse lado da entrada do vale, era preciso passar pelos Muros Vivos ou dar uma longa volta. Ailin preferiu os muros, atenta para não encostar em nada no trecho esquecido pelos hakais, com plantas venenosas pelo chão. Ailin via os espinhos e buracos, mas sabia onde pisar. Passada a entrada do vale era onde o mistério maior começava. E aquele era sempre o limite de Ailin.

Logo após a entrada do vale, uma sombra estendia suas mãos por sobre o caminho e não se via de onde vinha, nem onde terminava. Ailin sempre tremia quando percebia que nada parecia projetá-la. Para os hakais, mais um sinal de que não se devia entrar lá.

Do planalto, a barreira das montanhas impedia que se enxergasse o que havia lá embaixo. Por todos os lados, elas desmoronavam com facilidade, o que impedia que alguém tentasse escalá-las por dentro ou por fora.

Ailin fez o trajeto de sempre, com um pouco mais de velocidade e, quando viu, já havia passado do ponto até onde costumava ir. Ela já estava caminhando sob a sombra a alguns metros, mas só percebeu quando se deu conta da quietude que a rodeava. Prestes a entrar em pânico, voltou alguns passos e sentiu-se mais confortável. Mas num ímpeto rebelde, a curiosidade começou a fala mais alto.

Avançava a passos curtos para dentro do vale e só conseguia pensar em seus pais. Algo lhe chamou a atenção. Podia ouvir os sons vindos da direção por onde viera, cuja reverberação diminuía à medida que adentrava o lugar. No entanto, vindo do outro lado não se ouvia nada, em absoluto. E quanto mais avançava, mais tinha certeza: nenhum som vinha do beco. Como se não pudesse mais voltar, continuou na mesma direção.

A essa altura, Ailin não sabia se torcia para seu haka aparecer e lhe fazer companhia ou se preferia que nada chegasse perto dela.

– Olá! Tem alguém aí? Meu nome é Ailin, hakal!

Percebeu que não precisava se esforçar para ser ouvida, tampouco para ouvir. O mínimo ruído ecoava com força. Quando parava de falar, só ouvia o barulho do vento vindo por trás e o som de seus pés sobre as pedras que, a partir desse ponto, pareciam mais pontiagudas e por pouco não furavam as sandálias de couro de cabra.

A trilha ia se desfazendo ao longo do percurso, até se apresentar como um lugar inexplorado ou feito para espantar alguém que se atrevesse a fazer o trajeto. O aspecto do lugar lembrou-a da chacina acontecida ali tempos atrás. Era fácil entender por que ninguém ia até lá. 

Ailin parou de falar, distraída com a aparência do lugar, e deu mais alguns longos passos à frente. Sem perceber, seu receio havia ido embora, junto com a luz forte do Sol da primavera, bloqueada pela estranha sombra. A partir dali, ao olhar para cima, Ailin via algo semelhante a nuvens, que não havia antes. O cenário mudara por completo.

Já não se lembrava das pedras pontiagudas. A iluminação, a temperatura, o aroma e a quietude do lugar tomara sua atenção.

Tranquilidade e alegria descomunais a invadiram aos poucos até se tornarem tudo o que ela sentia. Mesmo uma criança pôde perceber que não eram sensações naturais, mas algo do lugar. 

A consciência parecia clara e acelerada. Seus sentidos, mais aguçados. Sentia-se segura e confiante.

O lugar que se apresentou era uma pisagem que merecia ser pintada. Avistou ao longe uma cachoeira e caminhou em direção a ela. Conforme se aproximava, notava que a água não emitia som algum. Ailin sentou-se à beira de onde passava a água e, parada olhando-a cair sem nada escutar, gritou “que coisa!”.

Mal sabia se tinha dito aquilo ou não; só sabia que nenhum som ouvira de sua própria boca. 

Aquele não era mais o antigo vale. Algo havia mudado. Algo que não era ensinado nas aulas.

Ailin tentou gritar, bateu os pés no chão, atirou pedras contra a parede da cachoeira, deu com a mão na água… nenhum som. Nenhum mísero ruído. Não havia barulho, nem era possível fazê-lo. 

O silêncio era a lei do vale.

Um pavor começou a crescer dentro dela, ainda controlado pelas boas sensações do lugar fluindo em seu corpo. Ailin pôs-se a explorar o lugar e não demorou para decidir entrar na água da cachoeira, com roupa e tudo. Emergiu e tirou as sandálias para o próximo mergulho, mas o coração saltou quando viu o menino que a estava observando, poucos metros de distância.

– O que você quer? – nenhum som.

O entusiasmo, por um momento, desapareceu. Esperou alguns segundos fitando os olhos firmes no menino que, também assustado, não se movia.

– Quem é você? Vá embora! – nenhum som.

Já se preparava para correr quando notou que o menino também tentava dizer algo, levantando as palmas das mãos, como se pedisse calma. Com o movimento dos lábios, ela não pôde entender as palavras, mas compreendeu o gesto.

O menino hesitou por um instante e então sorriu, tentando dizer algo que Ailin não entendeu. Ela entendeu que ele já estava ali antes dela e sabia que era vão tentar falar.

Seu sorriso firme foi o suficiente para Ailin, que sorriu de volta. Os dois sorrisos se tornaram longas risadas jamais ouvidas.

– Qual seu nome? 

A pergunta sem pressa tentava fazer o menino ler os lábios, e o fez pronunciar algo que ela entendeu como “Ofer”. Ailin se arrepiou. Era um nome forte que na língua dos hakais significava “irado” ou “bravo”, e remetia ao fundador da Família Hakal. 

Com um sorriso grande e os olhos semicerrados, ele observou-a dizendo seu nome, mais fácil de entender.

Sentaram-se lado a lado e, de mãos dadas, olhavam para a cachoeira apenas deixando o tempo passar. A magia do lugar, a inocência dos dois e a beleza de seus sorrisos completavam uma paisagem que o vale jamais esqueceria.

Ailin, caindo em si sobre não ter nenhuma noção de quanto tempo já estava fora de casa, se levantou, cutucou Ofer e o fez se levantar. Deu-lhe um abraço apertado, disse alguma coisa incompreensível e saiu correndo. Nem sequer desconfiou que talvez pudesse nunca mais vê-lo.

O caminho de casa

Ofer ficou estático alguns segundos e só então temeu também pelo tempo fora de casa. Saiu correndo para o mesmo lado que Ailin havia ido, mas não a alcançou. Receoso, parou e prestou atenção, pois o caminho que fizera até o vale era diferente. Tentou se concentrar no percurso de volta para casa. Saindo do vale, notou ser já o final da tarde e temeu chegar de noite em casa. Os problemas que podia encontrar pelo caminho já seriam o suficiente para castigá-lo. 

Diferente dos minutos que Ailin estava de casa, o território do clã de Ofer estava a duas dezenas de quilômetros dali e não tinha um percurso fácil. O caminho não seria um problema se o cavalo de Ofer não o tivesse derrubado e abandonado horas antes.

Era hora de voltar. Depois de encher o pequeno odre com água da cachoeira, passou por todo o vale sem dar nenhum pio. Saiu rápido como um cervo pela estrada ao sul do Planalto Hakal. O primeiro trecho era a trilha que o levara até ali; quando a avistou, saiu da estrada e a seguiu. A trilha pouco usada, com mato e arbustos crescendo pelo caminho, levava a oeste, em direção a QeMua. Os coturnos feitos por ele mesmo, de couro e borracha de papoila, garantiriam que passasse por ali sem grandes problemas.

À medida que corria, lembrava-se de Ailin e do tempo que passou segurando sua mão. Lembrava-se do sorriso e tentava imaginar como seria sua voz. Por alguns momentos, se esquecia da vontade de fugir e nunca mais voltar. A imagem que não saía dos pensamentos era o reflexo dos dois na água, sentados de mãos dadas, frente à cachoeira. “Vai ser a minha primeira pintura!”.

Com o tempo, o fôlego já não era o mesmo, os pés doíam e o odre secou. Mas o ânimo e a alegria ainda continuavam intactos.

Por fim, saiu da trilha para não entrar pela entrada principal da vila e chegou ao trecho estreito do rio que precisava atravessar. Atravessá-lo já o colocaria para dentro do território de QeMua. O próximo ponto era o monumento de pedra feito em memória do acsi, das lendas bem conhecidas pelo seu clã. Quando viu o monumento, soube que estava no caminho. Dali, foi às nespereiras da parte mais aberta da mata, onde já se sentia em casa. Aproveitou para comer e recuperar o fôlego, mas, logo que pôde, saiu no mesmo ritmo acelerado de antes.

Em minutos, já podia ver o morro onde QeMua ficava. Faltava pouco e já respirava aliviado. Bastava agora atravessar a pastagem entre as nêsperas e a Colina das Três Irmãs. As três árvores ancestrais não pareciam tão acolhedoras nesse horário.

O resto da energia, gastaria subindo pelo lado mais alto do morro, ao norte, onde só os moradores sabiam como acessar, escapando também aos olhos do vigia.

Com os pensamentos vagueando nas alturas, não percebeu que hienas estavam tentando alcançá-lo desde que se afastara das nespereiras. Quando notou, já era tarde. Prontas para atacá-lo, as hienas não imaginavam o que estavam perseguindo. 

Ele correu. Uma das hienas o atacou por trás, fazendo com que ele manifestasse inconscientemente o que era. De imediato, sua pele se enrijeceu de dentro para fora. A primeira hiena deu com os dentes no couro suro do braço, fazendo Ofer sentir uma pancada, que não o fez parar de correr. Com energia extra, saiu numa arrancada que arremessou a hiena e se esborrachou no chão.

Outra hiena se jogou nele por trás e mal viu quando ele esquivou, o que a fez bater de frente com o tronco de uma árvore morta. A terceira e última hiena já chegava bem perto quando ele soltou um berro horripilante virando-se de frente para ela com um olhar profundo e terrível. Não dava para encarar aquilo, ainda mais sozinha. Mas tão logo a hiena se afastou o suficiente, Ofer caiu ao chão exaurido. 

Quando acordou, já era manhã e estava na casa de QoNoxa. A primeira coisa que viu quando abriu os olhos foi o ancião, usando seu mais novo colar de dente de hiena. A ferida no braço já estava bem melhor; em partes, por aquela gosma de folhas postas pelo curandeiro.

– Já era hora de acordar! Não vai tomar seu chá?

– O que aconteceu? Você me salvou das hienas, não foi? Obrigado! 

Ofer não sabia se ria ou se chorava, começando a se lembrar dos momentos antes do ataque.

– Fique calmo, Overim, pois temos muito a conversar.

Depois de tudo aquilo, era bom ouvir seu outra vez seu nome sem reprimendas ou deboches. Mas o instante não durou.

O pai de Overim entrou na casa de sopetão.

– Onde esteve? 

O tom era desnecessário. E erguia as mãos como se isso o ajudasse a falar ainda mais alto.

– Naité, respeite a santidade do meu lar. Baixe a voz. Contenha-se e escute. Seu filho ainda está exausto; foi atacado por hienas ontem e teve a sorte de eu estar por perto.

– Hienas? Mas onde você foi? –dessa vez com a voz baixa.

– Vamos pra casa. Agora! – disse a mãe de Overim.

A entrada, também repentina, foi o suficiente para irritar QoNoxa.

– Ora! Mas o que é isso aqui? O menino fica até quando eu disser!

O ambiente mudou. Os dois se entreolharam enquanto ainda decidiam o que dizer ao ancião, que não esperou:

– Vamos! O que estão esperando? Que eu abra a porta que vocês mesmos abriram pra entrar?

Os dois saíram. O olhar se voltou a Overim, que não o temia como seus pais, mas o respeitava como ninguém.

– Me desculpe! Eu não queria dar problemas! Eu não quero mais ser problema pra ninguém!

O que se seguiu durante toda a manhã foi um monte de perguntas sobre o motivo da saída às escondidas, onde havia ido e porque demorou tanto. Perguntas que, em si, não eram tão importantes, mas eram a forma do ancião investigar o que havia acontecido de fato com Overim sem apavorá-lo. Ao ouvir as respostas do menino, QoNoxa notou que algo não estava batendo. Era pouca informação para tanto tempo fora da vila. Tentou fazer perguntas diferentes tentando pegar Overim em contradição, pois imaginou que estivesse escondendo algo importante. Overim não disse nada sobre o Vale das Preces, muito menos sobre o Silêncio. QoNoxa não podia imaginar que algo tão curioso tivesse acontecido, mas o velho sábio não tinha dúvidas de que havia algo a mais. Apesar disso, também acreditou que Overim estava contando tudo que sabia sem tentar esconder nada.

– Como está se sentindo agora? 

Puxou-o pelo braço para ver como estava a ferida na parte de trás.

– Muito bem, graças a você!

– Então, é melhor você ir pra casa. Peça desculpas aos seus pais – deu com os ombros – eles são como são, mas estavam preocupados.

– Queria que o senhor fosse meu pai. 

A voz baixa e rouca deixou o velho desconsertado.

– Que bobagem! Eu sou só um velho, chato e irritado. Você não iria aguentar.

Com um sorriso meigo no rosto e um olhar cansado, foi caminhando em direção à porta e fez um sinal de reverência com o punho cerrado sobre o peito, inclinando a cabeça antes de sair, mas sem dizer nada, já pensando no sermão que ia ouvir dos pais.

Overim foi até perto de casa e não quis entrar. Esperou do lado de fora tempo suficiente para ver, ao longe, QoNoxa passar logo em seguida, indo até Gaef.

– Velho amigo!

– Quem está velho aqui? Ora, se não é o garanhão!

– Ah! Esse tempo já passou. Mas o seu tempo aqui ainda não. Vim tirar você do tédio. Algo importante aconteceu.

– Então, veio me importunar mesmo. Vez após vez, quando acho que me libertei dos problemas, você atira todos eles em mim, não é?

O riso de QoNoxa logo foi embora.

– E se eu te disser que o menino Overim entrou em Modo Nai?

– Não faz sentido. Ele é muito menino ainda. Por que acha isso?

– Veja, não foi a forma completa, mas aconteceu. Eu estava fumando no barranco quando o vi sendo atacado por hienas, mas àquela distância não pude fazer muito. E não precisei. Parece que ele saiu do controle quando viu as hienas. Uma delas chegou a morder seu braço e só conseguiu perder um dente lá; este aqui – mostrou o colar. 

– É como dizem, “um QaFuga, uma arma” – Gaef ria, ainda desconfiado. – A hiena não podia prever que a frágil aparência de sua presa escondia um QaFuga, dos filhos de Taacón, não é mesmo, meu amigo? Ora, não entendo como isso é possível. 

– Também não sei como aconteceu, mas não tenho dúvidas de que o parasita formou uma camada rígida por baixo da pele e o protegeu do ataque.

– Quando está nervoso, você as chama de “parasitas”. Bem, se tem certeza do que viu, podemos só teorizar.

– É um pouco frustrante. Somos a única linhagem sanguínea que pode hospedar uma QaNai e, ainda assim, sabemos muito pouco elas.

– Sim, sim. Me lembro das nossas infindáveis conversas. “Se depois do Modo Nai nós as compreendemos, mesmo sem conversamos extamente, por que antes disso nunca acontece?”; “Se nos relacionamos com elas desde tão cedo, recebendo seus benefícios, por que elas não despertam antes?”.

– E tem mais.

– Ora, a coisa está ficando boa!

– Espera-se que no Modo Nai a QaNai assuma o controle, mas que o hospedeiro fique observando tudo. Não tenho certeza se isso aconteceu, pois o Overim não se lembra de nada. Foi como se tivesse desmaiado. Ele não conseguiria domar sua QaNai tão repentinamente, mas com certeza ele tentaria, pelo susto. E não vi nenhum sinal disso.

– O lado bom é que talvez tenhamos mais um combatente na hora do apuro, não é?

– Às vezes, não sei se está só tentando acalmar as coisas ou se não está levando a sério.

– Não seja bobo. Sente-se aqui.

Gaef levantou-se para pegar algo em seu baú.

– Você se lembra desse jovem?

O ancião segurava uma ilustração.

– Haraf? Se eu não me lembrar do maior mago do clã em todas as eras, é hora de me passar o cajado! Mas o que tem ele?

– Essa figura é antiga, mas não é original, como você sabe. Ela vem sendo copiada de tempos em tempos. Veja, ele está com olhos negros, que é como os antigos representavam os homens de guerra, não é? Agora, você já reparou que nessa imagem Haraf está sem o pingente da marcação?

QoNoxa se aproximou da ilustração e esfregou bem os olhos.

– Acho que entendi onde quer chegar. Se a marcação é para todos os jovens e Haraf não passou por ela, isso poderia dizer que Haraf ainda era jovem demais quando teve a primeira experiência com a sua QaNai. Mas existe algum registro sobre quando a marcação começou a ser regra?

– De fato, não tem. Mas em se tratando de Haraf, isso não devia nos espantar de jeito nenhum, não é?

– É verdade. Mas daí a compará-lo a Overim…

– Não se precipite, menino.

– Está certo. Bem, vou até a casa de Overim pra ver se está tudo bem.

Overim ainda aguardava fora de casa, pensando em como, afinal, QoNoxa conseguira salvá-lo de várias hienas.

Um pouco depois, seu pai o viu, pegou-o pelo braço ferido e levou-o para dentro. Uma gritaria se seguiu, com mãe e pai dizendo tudo ao mesmo tempo, fazendo perguntas retóricas e demonstrando mais raiva e indignação do que preocupação de fato. Overim estava cansado disso e se lembrou do porquê tinha ido para longe no dia anterior.

– Chega! Eu só quero silêncio! Silêncio!

– Olha como fala! – gritou a mãe, pronta para castigá-lo com uma vara que já trazia na mão.

– Não. Dê aqui essa vara. – disse o pai, com olhos frios.

“Na ira, a correção vira punição e nada corrige”, pensou QoNoxa que havia se aproximado da porta. E foi embora.

Overim levou varadas. Em outra oportunidade, teria chorado alto já com a primeira delas, mas não dessa vez, não com a ajuda que teve. Seus pais não perceberam, mas sua QaNai tornou enrijecer por baixo da pele. E dessa vez, não perdeu a consciência e ela não assumiu o controle, de forma que ele não só assistia tudo, como também podia se mover. Foi tão sutil que Overim nem sequer percebeu, pois podia sentir as varadas que, apesar de enfraquecidas pela proteção, eram ainda doloridas. Aquele nível de interação com a QaNai demorava-se para alcançar. O Vale das Preces, silenciosamente, havia mudado algo nele.

Overim foi posto de castigo sem comer o resto do dia, trancado no quarto, uma situação bem aproveitada por ele, que pôs-se a pensar.

Quando tentou se lembrar de onde esteve, viu que suas lembranças não passavam das proximidades das montanhas dos hakais. Ao tentar se lembrar, sentiu como que uma preguiça de pensar e um leve enjoo. Um desinteresse repentino do qual não se apercebeu o fez perder o foco sobre o que buscava. Minutos depois, se esforçou de novo e teve náusea, mas não notou a relação entre os eventos.

Pensando ns perguntas do ancião, cogitou a estranha hipótese de ter entrado em Modo Nai, e riu de si mesmo. Porém, ainda assim, tentou conversar com sua QaNai, que não respondeu. Overim ficou pensativo pelo resto do dia até pegar no sono.

Ailin e a ansiedade

Ailin saiu do vale e foi direto para casa.

– Onde esteve, Ailin? – perguntou Oilavo, o tio. – Sabe que está tarde, não é? 

Ele não fez contato visual. Continuou dobrando a rede que passara o dia terminando.

– Aconteceu uma coisa incrível!

– Sabe o que foi incrível? A cerimônia do Diban. 

Ailin fechou o sorriso e foi em direção ao seu quarto ver se seu haka estava lá. Os dois nunca haviam ficado tanto tempo separados. A única reação de Oilavo foi erguer a sobrancelha como se estivesse sem a menor paciência para ouvir qualquer história de criança.

– Oilavo? – disse Sane, sua esposa.

– Eu sei, eu sei… ela não superou ainda. 

– Eram os pais dela, Oilavo.

– Mas está na hora de levar as coisas mais a sério, não acha? E se não formos nós, quem vai educá-la? É a nossa responsabilidade.

– Ailin, vem cá. Está tudo bem. Mas onde estava?

Quando ela chegou, já estava sorrindo de novo.

– Fui ao vale hoje e entrei lá no fundo! Sabe o que tem lá? 

Voltou ao quarto, ainda procurando seu haka.

– Você foi aonde? 

E, finalmente, ela conseguiu fazê-lo parar de dobrar a rede.

– Quando é que vai crescer? Sabe que ninguém deve ir ao vale; é desrespeitoso! E se alguém souber que você entrou num lugar sagrado?

– Mas o senhor já foi lá? Por que está zangado?

– Você sabe por que não deve ir lá. E onde está seu haka?

– Eu não sei!

Ailin saiu da casa para ver se encontrava seu haka. Em pouco tempo escureceria e seria mais difícil procurá-lo. 

– Ailin? Oi! – gritou Bran, um dos tutores. – Onde esteve? Fui até sua casa depois da cerimônia e não a encontrei. Não contei e não contarei nada a Oilavo dessa vez, mas não faça mais isso. Você não é mais uma criancinha boba; sabe que é perigoso.

– Eu fui… é… ah, só estive por aí e já voltei!

– Adivinha quem está lá em casa à sua espera?

– Bukie?

– Isso mesmo!

– Obrigada! Procurei por toda parte!

– Vamos buscá-lo. Mas Ailin, preste atenção. Você é tão inteligente e tem tantas habilidades… não deve gastar energia com bobagens. Precisa se concentrar mais, prestar atenção no que te interessa e no considera chatice também. Faz parte da vida, em especial da nossa vida agora. O que aconteceu com os seus pais foi terrível e talvez a sensação nunca melhore, eu sei disso. Eu perdi uma filha. Muitos outros tiveram perdas terríveis. Estamos tentando reconstruir a vila faz anos e precisamos da ajuda de todos que têm condição. Você entende? 

Ailin nunca tinha visto um sorriso sincero em Bran e preferiu ficar quieta.

– O seu haka estava desesperado. Eu o vi correndo de um lado a outro depois que você sumiu e foi por isso que o peguei e levei pra casa. Precisa se acostumar a levá-lo por toda parte, porque depois do hakiba sabe que isso não pode acontecer.

Logo que entraram na casa, foi um pouco chocante ver a criatura sempre animada, dessa vez de olhos inchados no canto da sala. Quando ele a viu, saiu correndo e pulou em seu colo.

– Bukie! Me desculpe, me desculpe!

Ele dava voltas sem parar em torno de seu pescoço. 

– Ficou com saudade, é? 

Percebendo Oilavo que chegara logo atrás, o haka se afastou, de soslaio. Ele a pegou pela mão e agradeceu Bran.

– Depois conversamos, amigo.

No caminho até a casa, Ailin foi questionada sobre que problema dera ao tutor dessa vez, na sala, horas antes. Ailin só fez dizer que não queria ser negociadora, nem comerciante, nem artesã, nem nada disso. Queria apenas vingar os pais.

– Quero ser uma valente do clã, nem que…

– Ailin, você precisa me escutar.

– Ah! De novo isso?

– Na verdade, você precisa ouvir o seu pai. 

Ailin parou de imediato.

– Ouça com cuidado, porque quero dizer algo que vi seu pai dizendo a você quando você ainda era muito pequena e não deve se lembrar – a voz de Oilavo começou a embargar. – Você tem que aprender o paradoxo que nós somos. Tem que aprender sobre você. Você é um misto de algo grandioso e algo vergonhoso. Por mais que você nos esforcemos, o nosso coração é desesperadamente corrupto. Aprenda isso antes que você comece a ver com bons olhos os seus maus pensamentos e suas más escolhas. Aprenda isso antes de começar a tomar decisões sérias e que não têm volta. Está bem?

– Meu pai me falava isso?

– Ele sempre dizia isso. A você, pelo menos uma vez, que eu vi.

Ela não disse mais nada até a casa. Quando entraram, o haka ainda estava em seu pescoço. E a relação entre eles mudou a partir dali. Ailin e Bukie não se desgrudaram mais até o outro dia. E foi aí que a mudança aconteceu de verdade.

Durante a noite, Bukie se conectou ao pescoço de Ailin sem que ambos percebessem. Os pesadelos e as dores musculares passaram despercebidos pela exaustão da menina. Silencioso e esquecido, um hakiba havia acontecido.

No outro dia, logo pela manhã, Bukie a olhava atento esperando que ela, por fim, dissesse algo sobre o dia anterior. Era como se a criatura esperasse alguma justificativa, ainda que não fosse compreendê-la.

– Certo, vamos ver… me desculpe, Bukie! Eu estava tão irritada e saí tão rápido que te deixei pra trás. Não vai mais acontecer. Eu fui ao vale esfriar a cabeça; lá é um bom lugar pra isso. Me sinto bem de ter ido lá ontem, mas não sei se devo voltar, preciso ser mais útil e dar menos problemas, não é? Quero entender o que meu pai queria dizer.

Bukie entendeu pouco. Mas a palavra “vale” não o fazia pensar em nada além de grama, pedras, espinhos e aquele cheiro estranho.

– Eu sei o que parece. É o mesmo lugar de sempre. Mas ontem foi diferente! 

O sorriso reluzente de Ailin foi começando a perder a empolgação, pois não estava conseguindo pensar em qual era o motivo exato de ter sido diferente. Bukie, provocado pela ideia de ir até o vale, desceu da cama e correu para a porta olhando para ela, como se a estivesse chamando.

– Tá! Vamos até lá… também quero me lembrar de algumas coisas. 

Lá foram eles, pela mesma trilha de sempre, que Bukie detestava fazer – principalmente a parte de deslizar entre os picos pontiagudos da encosta sobre os ombros de Ailin. Ela via o seu medo de se esfolar e cair lá de cima. Passado o sufoco, entraram devagar no vale. Ailin não tinha boas lembranças de lá; ambos olhavam preocupados para todo lado. Qualquer ruído dava arrepios na espinha de Ailin, que já começava a se incomodar com o caminho cada vez menos convidativo. A iluminação, o cheiro, a temperatura, as pedras pontudas no chão… Sentia não ter motivo nenhum para seguir. Quando olhou Bukie, que já a encarava com os olhos esbugalhados, encerrou a aventura.

– Vamos embora. Não sei o que vim fazer aqui – jogou Bukie no ombro e fez o caminho de volta sem a menor pressa.

Um novo Overim

A mesma ansiedade de Ailin também crescia em Overim. Seus problemas tão peculiares, as expectativas de seus clãs acerca deles, a pressão de suas famílias e suas dificuldades particulares haviam sido até então uma forja MUITO dura. Mas, sem que eles soubesse, talvez as COISAs estivessem começando a mudar.

Overim nunca foi MUITO de conversar. Ele era introspectivo e não lidava nada bem com as brincadeiras que os outros meninos faziam com ele. Além de tudo, agora ainda havia essa preocupação (ou curiosidade) que o deixava ansioso sobre o que teria acontecido consigo e, claro, sobre por que raios não se lembrava.

A realidade de seu clã era MUITO diferente do clã de Ailin. Os QaFuga têm seus rituais e suas cerimônias cheias de formalidade, mas não educam as crianças sistematicamente. Os pais é que são totalmente responsáveis pela formação do caráter e de todos os ensinamentos; eles não terceirizam isso a ninguém. Por isso, Overim tinha mais tempo e podia escolher gastá-lo com algo que lhe interessasse.

(qdo chegou, já estava esperando) – Vô QoNoxa! Tá acordado? – gritou do lado de fora da casa do ancião.

– Estava esperando você, entre logo – gritou lá dos fundos.

O ancião estava ocupado desde cedo preparando um feitiço para tentar descobrir por onde Overim esteve no dia em que sumiu.

– Vô QoNoxa…

– Sim, sim… Não está conseguindo falar com sua QaNai; quer saber como salvei você das hienas; está preocupado porque pensa que pode ter acontecido algo nessa sua aventura de que não se lembra e isso tudo está deixando você angustiado, já sei. Vamos resolver isso tudo.

– Como é que sabe?

– Bem, eu fiquei aqui de olho em você a noite toda.

disse como se fosse qualquer COISA e se sentou no chão também. Agora Overim estava interessado.

– A noite toda? Aqui? Mas…? – confuso e com um tipo de riso temeroso, olhava para QoNoxa sem piscar.

– Precisei fazer um feitiço pra não dormir e poder te vigiar.

Um feitiço? Não, não… não gosto dessas coisas… Mas é a mesma… pegue tal coisa

– Vai me ajudar com a minha QaNai? Não sei o que está havendo; é como se ela não estivesse aqui. 

Seu semblante mudou; sabia que isso era preocupante. Por mais que não se comunicasse MUITO com sua QaNai, podia sempre senti-la MUITO viva. Mas desde o dia anterior, era como se ela tivesse se escondendo.

– O que vamos conversar aqui é coisa de adulto, coisa séria. Precisa me prometer que não vai contar pra mais ninguém.

– Eu prometo!

– Quando nosso corpo está ainda amadurecendo pra ter condições de entrar em Modo Nai, nós temos alguns sintomas. Sabe quais são?

– Sim! Quero dizer: não! Não sei.

– O que você sabe? Ou acha que sabe.

– Bem, sei que dá febre, mas não é sempre. Sei também que dói a cabeça e que, às vezes, você não se lembra do que fez e que a pele fica coçando. Não é isso?

– Sim, alguns têm MUITA febre, a cabeça dói nas primeiras vezes, a pele coça, mas também pode doer um bocado. Mas o pior é que ALGUMas pessoas, além de perderem o controle, perdem a consciência. A QaNai também sofre nas primeiras vezes e pode até ficar como que desmaiada, inconsciente. Isso depende de MUITA COISA, como por exemplo a quantidade de esforço que ela precisou fazer pra compensar a falta de massa muscular do hospedeiro. Entende o que estou dizendo? – agora, seu olhar era apreensivo.

– Hummm. Entendo. – diante da expressão quieta de QoNoxa, Overim demorou mais alguns segundos para relacionar as COISAs.

O velho apenas esperou. Até que:

– Espera aí! Como é que é? Vô QoNoxa…! Eu…! – ficou MUITO agitado quando percebeu que a descrição era exatamente a que pretendia dizer sobre si mesmo quando chegou à casa.

– Fique calmo. Mas talvez você seja o QaFuga mais novo a entrar em Modo Nai na história! – o ancião riu e ficou de pé tomando-o pela mão para que levantasse também. – Nós só precisamos descobrir por que isso aconteceu. Venha comigo! 

QoNoxa o levou para fora da vila, até o lugar onde o clã se reunia para testar os novos guerreiros. Ele precisava fazer com que Overim estabelecesse uma boa ligação com a sua QaNai, que no momento parecia estar inconsciente. Havia ALGUMas formas de se comunicar com uma QaNai, e uma delas era trazendo-a para fora do corpo pelo mesmo lugar por onde ela havia entrado, que geralmente era o braço. Isso era até fácil, só não era, digamos, a melhor sensação do mundo.

– Coloque o braço aqui. – disse, apontando para um cilindro feito de barro e folhas de palmeiras que era usado somente para aquilo.

Overim nunca havia tirado para fora sua QaNai, mas sabia que era dolorido. A expressão de medo em seu rosto fez QoNoxa lembrar-se de que já havia pensado numa forma de contornar isso:

– Ah, sim! – pegou seu alforje e dele tirou um saquitel vermelho.

– O que é isso? – perguntou o menino, curioso e com ALGUM receio.

– Vamos, coloque o braço. Confie em mim.

– Está bem, mas se isso aí vai doer mais que o…

– Anladam Sahü! – mal esperou que o braço de Overim entrasse por completo no cilindro e já lançou um feitiço antigo, fazendo com que o menino sentisse uma dormência que começou pelas pontas dos dedos de ambas as mãos e que, se chegasse à cabeça, o faria desmaiar.

– Que susto! Que foi isso? – disse olhando para o cilindro, tentando sentir a mão.

– Vamos rápido com isso.

QoNoxa travou o cilindro para que o braço não se movesse e, por uma abertura na parte de cima, enfiou um punhal que havia tirado também do alforje. O punhal fez um pequeno corte no braço de Overim, que não sentiu nada.

– Vô, não me sinto MUITO bem – a dormência já havia alcançado seu peito.

– Só mais um pouco! Aguente firme!

Em seguida, disse baixinho ALGUMas frases estranhas com a boca QUASE encostada no cilindro. Era outro feitiço, agora chamando a QaNai.

O braço de Overim engrossou e enrijeceu: a criatura estava vindo. Ele tentou dizer mais ALGUMa COISA, mas já estava com a boca mole. Suas pernas cambalearam e QoNoxa teve que segurá-lo antes que caísse.

Assim que o braço voltou ao normal, ele o desprendeu e soltou Overim ao chão para que pudesse lacrar novamente o cilindro, que já estava com a QaNai.

– Prontinho! – disse o curandeiro aliviado.

O pior já havia passado, agora era só esperar que Overim se concentrasse o suficiente e que houvesse compreensão entre ele e sua QaNai. O processo deveria ser razoavelmente rápido, não fosse o fato de Overim ter desmaiado.

– Que COISA! QUASE deu tempo. – comentou o velho, dando com os ombros.

Ele pretendia livrá-lo do feitiço antes do desmaio, mas agora era tarde, teria que esperar Overim acordar, pois as QaNai só conseguem conversar entre elas ou com seus próprios hospedeiros.

Tendo livrado o menino do feitiço da dormência, agora era só aguardar um pouco e acordá-lo. Ele esperou alguns poucos minutos e começou a dar cutucões com o pé. Overim se levantou, ainda cambaleando. QoNoxa explicou que só iria abrir o cilindro e deixar a QaNai saltar para fora quando ele se sentisse concentrado o suficiente para recusá-la. Isso porque é MUITO perigoso uma QaNai entrar em seu hospedeiro se ele não consentir. 

Overim nunca havia precisado fazer isso, pois nunca tinha chamado sua QaNai para fora. Quando a QaNai foi colocada em seu corpo, ainda um bebê, ele ainda não tinha capacidade de recusar. Essa é uma tradição do povo para facilitar as COISAs. Mas logo que recebem suas QaNai, eles recebem também um selo escuro que os impede de serem possuídos por espíritos ou invadidos por qualquer outra criatura mística ou sobrenatural sem seu consentimento.

– Pode abrir! – exclamou, tentando parecer mais confiante do que estava.

O cilindro foi aberto e a QaNai não saiu. Eles esperaram um pouco e logo tiveram que olhar lá dentro. Por um momento, pensaram até que ela não tivesse saído com o ritual, mas lá estava ela, viva, porém imóvel.

– O que há com ela? – perguntou assustado, atento a qualquer movimento da QaNai.

– Pode ser que ela esteja ainda inconsciente desde as hienas. – sussurrou, dando cutucões na criatura.

– É mesmo. – assentiu com a cabeça – E o que faremos? – olhava apreensivo QoNoxa cutucando sua QaNai e se deu conta: – Desde as hienas? Então fui eu? Sozinho? Ahhhh, grande! – expressão infantil de orgulho.

QoNoxa não respondeu. Estava pensativo.

Apesar da euforia, Overim sabia que o Modo Nai era iniciado pela QaNai, não pelo hospedeiro, e podia acontecer em qualquer momento que a QaNai quisesse. Mas sabia também que um hospedeiro podia despertar a QaNai, ou seja, convidá-la a entrar em modo de combate. Claro, isso só era possível quando já havia uma boa relação entre parasita e hospedeiro. 

– Você sabe por que estamos aqui, não é? Precisamos saber como é que sua QaNai já consegue assumir o controle. Você ficou MUITO tempo inconsciente, deve ter sido algo MUITO perigoso, MUITO além das hienas!

Ambos estavam pensando que a falta de memória de Overim era um indício de que ele tivesse entrado em Modo Nai por todo aquele tempo que passou no Silêncio, fazendo-o perder a consciência. O Modo Nai explicaria a perda de memória, que foi exatamente o que houve quando foi atacado pelas hienas, mas ainda não revelaria o motivo. Nisso, a QaNai poderia ajudar.

– É importante que vocês se entendam, então não seja grosso e tenha paciência.

Talvez o mais relevante fosse descobrir como a QaNai estava conseguindo assumir o controle, pois isso só deveria acontecer em sua fase adulta, daí o fato de nunca antes alguém tão jovem ter entrado em Modo Nai.

– Do que você o chama quando estão conversando? – perguntou QoNoxa.

– Não sei, acho que de nada. Bem… chamo de MUITAs COISAs! Mas, às vezes, ele me responde mais rápido quando o chamo de jio – que significa “quieto” no idioma Sandira, falado pelos QaFuga.

– Então, tente isso mesmo! E não precisa fazer isso. – empurrou a mão esquerda de Overim que tampava o corte do braço direito, como se estivesse protegendo contra a entrada da QaNai. – Confie no selo! – disse com voz firme, franzindo a testa.

Overim se aproximou do cilindro e, enquanto tocava a QaNai com o dedo, dizia repetida e lentamente: – Jiooo, Jiiiiioo!

A QaNai acordou depois de alguns insistentes segundos e se lançou no braço de Overim, que tentou impedir tampando com a mão, mas viu que era inútil, pois a criatura, quando queria, se tornava QUASE líquida.

– Resista, recuse! – orientou o ancião.

– Eu tenho que dizer algo? Me ajude! – já estava preocupado, não sabia se estava funcionando.

– Não, só resista e confie no selo!

A QaNai melecou todo seu braço e não conseguiu entrar, até que desistiu e começou a se acalmar. Olhava para Overim sem nenhuma expressão, esperando que ele se comunicasse e explicasse logo o que estava querendo.

– Jio, me desculpe por isso! Bem, posso chamá-lo de Jio?

– Não precisa se preocupar tanto com as palavras, só se concentre no que precisa dizer. – explicou QoNoxa.

A comunicação logo fluiu entre os dois, que passaram longos minutos praticamente em silêncio. A comunicação entre eles se dava pela sintonia entre os dois, QUASE como uma telepatia, mas no nível da intuição.

Overim estava conquistando um novo parceiro. Um era comovido pelo constrangimento e entrega do outro, e essa situação os aproximou de uma forma que nenhum dos dois esperava. Jio conhecia Overim melhor que ninguém. Sabia das suas frustrações, seus medos, suas dores, mas também da sua coragem. Mas isso não ajudaria nessa ocasião. 

Jio também não tinha nenhuma informação sobre o período sem memória de Overim. Overim “disse” a Jio que também não se lembrava de nada desde o caminho perto das montanhas até pouco antes do ataque das hienas, e isso deixou os dois ainda mais receosos.

Mesmo sem entender a conversa, se é que podemos chamar assim, QoNoxa podia sentir a sinceridade dos dois que, fitados um no outro, nem viam o tempo passar. Percebeu também certa tensão em ALGUM momento, que foi justamente quando especulavam o que teria acontecido com eles. Overim chegou a ter um pouco de tontura ao pensar mais profundamente em suas lembranças. Pouco depois disso, a QaNai entrou novamente em Overim.

– Pela sua cara, agora você tem mais dúvidas do que certezas, não é? – disse QoNoxa, levantando-se do tronco onde esteve sentado esse tempo todo. – Mas cada COISA a seu tempo!

– Bem, pelo menos sei que Jio está melhor. – respondeu, com um sorriso frágil no rosto.

Os dois voltaram enquanto Overim contava a QoNoxa sobre sua conversa com Jio. Não haviam descoberto MUITA COISA, mas sabiam que por enquanto deveriam manter segredo sobre tudo isso.

Nessa noite, o curandeiro teve uma visão enquanto dormia. Na visão, um dragão descia até QeMua e levava Overim para longe, até soltá-lo do alto num buraco negro no chão. O velho acordou assustado e voltou a dormir, mas o mesmo sonho se repetiu ALGUMas vezes até o amanhecer.

*****

No Planalto Hakal, havia uma rocha chamada de Secaji Diba, que na língua Teangô (idioma dos hakais) significa “rochedo do fim”. Sua visão em sonho fora MUITO parecida com uma das profecias antigas registradas pelo grande profeta Otsa nessa rocha. Uma parte da profecia dizia:

“E vi um dragão prateado que saía do sul e ia para o norte; e descendo o dragão prateado do céu, encontrou um verme; e o dragão prateado levou consigo o verme, e havia paz entre dragão e verme. Mas havia um dragão vermelho e este dragão não compreendia. E houve confronto entre o dragão vermelho e todos os outros vermes; e os vermes eram mais nobres que o dragão, que pelo fogo de seu próprio conselho os matou a todos; vermes e dragão pereceram”.

QoNoxa conhecia essa profecia. Ele não se lembrava do contexto, do assunto específico, mas pôde se lembrar superficialmente dessa parte à qual seu sonho MUITO se assemelhava. Talvez significasse que um mal lhes sobreviria, mas não podia saber quando, como, nem o que era.

O sábio supôs que o menino deveria começar a ser treinado imediatamente e que seria necessário que ele conseguisse despertar Jio sempre que precisasse. Aperfeiçoá-lo às escondidas não seria fácil, mas era necessário tentar e, mais que isso, ter êxito.

Overim havia mudado, assim como as expectativas sobre ele. E essa mudança não veio só para ele.

Uma nova Ailin

Ailin passou a se mostrar mais interessada pelos assuntos ensinados por seus tutores. O que começou como uma atitude, uma necessidade de mudar sua conduta imposta por ela mesma, meses depois havia se tornado uma prioridade. O interesse pelos estudos e pelo aprendizado tornou-se sua rotina rapidamente.

– Bom dia, Ailin! – disse Jolen.

Era o tutor que ensinava sobre contos antigos, profetas, as guerras travadas e todo o conhecimento que o clã dispunha sobre os outros povos. Era um professor de História, com a diferença de que fatos históricos, filosóficos, religiosos e morais se entrelaçavam e tinham o mesmo valor e grau de importância.

– Oi, mestre! Me desculpe pelo atraso. Eu trouxe gomas! – disse Ailin, cheia de orgulho por ter preparado sozinha uma guloseima feita de mandioca, açúcar de beterraba, gordura de leite, ovos e água de coco, e isso especialmente para dar ao professor.

– Adoro goma! Obrigado!

As aulas preferidas de Ailin eram as de Jolen. Havia MUITOs contos empolgantes sobre seres vindos do céu, criaturas marítimas, catástrofes terríveis da antiguidade e outros assuntos desse tipo que prendiam a atenção das crianças. Mas Ailin estava se interessando mesmo era pelas profecias ainda não cumpridas, cada vez mais.

Havia algo nas profecias que a atraíam demais. E, claro, passar tanto tempo refletindo sobre todas as aparições de Daxa no meio do seu povo parecia algo com MUITA importância. Daxa era recorrente nas profecias antigas. Pensar sobre isso a fez entender que não deveria mesmo ir mais ao Vale das Preces, tendo por aquele lugar respeito e temor. Não foi difícil deixar de ir até lá, já que as únicas visitas que se lembrava ter feito ao vale eram das tentativas frustradas de hakiba, que ainda desejava MUITO alcançar, mas não se preocupava da mesma forma que antes. Sentia certa segurança sobre isso, pois, na verdade, ainda que não soubesse, já havia conseguido.

Mesmo nos momentos de treinos físicos das crianças com seus hakas, Ailin ficava fazendo conexões entre as metáforas das profecias que conhecia em sua mente. Isso a fazia perder um pouco o foco dos treinos, o suficiente para não se conectar automaticamente com Bukie na frente de todos sem querer, atrasando seu hakiba que era iminente. Isso durou pouco tempo, pois apesar de Bukie ter recebido toxinas de seu corpo uma única vez, a quantidade liberada fora de QUASE uma noite inteira. O corpo de Bukie aguentou MUITOs dias sem precisar se reconectar, mas quando a necessidade veio, ele nem tentou esconder.

Num desses dias de treino, Ailin percebeu que Bukie parecia mais agitado que o normal e um pouco irritado, mas não teve como parar para investigar. Chegando em casa depois do treino, logo que os dois entraram no quarto, Bukie deu um berro chamando a atenção dela, que largou ao chão imediatamente o que trazia nas mãos e o olhou.

– O que foi? – perguntou assustada.

Ailin se lembrou do comportamento diferente dele durante o dia e, agora, o olhava preocupada.

– Me diz! Eu fiz ALGUMa COISA?

Bukie estava entrando em pânico e não conseguia explicar a ela o problema, a única saída foi se lançar ao seu pescoço e torcer pra que se unissem sem MUITO esforço ou relutância da parte dela.

– Bukie! O que está fazendo? – perguntou, sem saber como reagir àquilo.

De subido, Ailin entendeu. Ela temeu, mas a vontade era tão antiga e tão forte que, em silêncio, apenas esperou que acontecesse.

– Hakiba! – gritou Ailin, sem calcular o volume.

– Ailin? – perguntou seu tio, vindo até o quarto rapidamente.

Ao chegar no quarto teve uma surpresa: Ailin e Bukie estavam unidos. Bukie se enrijecera formando como que um exótico colar que envolvia o pescoço na frente, mas que atrás era como uma gola com formato de leque, protegendo desde o meio da coluna até pouco acima da nuca.

– Sane! Corra aqui, agora! – gritou assustado chamando sua mulher.

– Não grite! O que foi? – respondeu de longe, sem dar MUITA importância.

 – Calma, tio! – Ailin ficou desnorteada com a situação e o olhar de seu tio a assustava.

– Isso é lindo! É fantástico! – gritando ainda, num tom pouca COISA mais baixo.

– Ailin! – disse sua tia. – Você conseguiu! É um fruto abençoado por Hakalam! – dizia com as mãos no rosto, expressando MUITA alegria e surpresa.

Na mesma noite, a notícia se espalhou pelas casas mais próximas fazendo com que amigos e vizinhos mais próximos viessem vê-la.

– Quem diria, hein? Aquela menininha revoltada agora está tão diferente, e já é um fruto! – comentava um dos amigos de Oilavo na frente da casa, sem se importar MUITO se Ailin estava ou não ouvindo.

Ailin ficou MUITO constrangida, mas não tinha coragem de rejeitar a união com Bukie, sabendo que teve tanta urgência para ele e tendo ela esperado tanto tempo. Ficaram unidos até que os visitantes se dispersaram e seus tios cogitaram dormir. De madrugada, porém, ainda um pouco eufórica, quando Ailin conseguiu conversar direito com Bukie sobre a proeza, pediu que se unissem novamente e foi assim que passaram a segunda noite inteira unidos.

No outro dia, indo até o lugar onde as crianças se reuniam, todos por quem passavam já pareciam saber da novidade, pois olhavam para ela cochichando entre si, sorrindo ou até acenando.

Não era anormal o hakiba em sua idade, mas também não era fácil acontecer. As reações das outras crianças foram diversas. MUITAs estavam claramente curiosas, ALGUMas a olhavam com olhos invejosos, enquanto outras pareciam felizes por ela. Ainan, em especial, que já parecia admirá-la antes disso, mostrava claramente MUITA felicidade e orgulho por ela. Os dois tinham uma leve proximidade, mas apenas por terem nascido no mesmo dia e por seus pais, quando jovens, terem sido MUITO amigos.

– Oi, Ailin! Valente de Hakalam! – foi a primeira frase de Ainan quando a viu chegar.

– Não diga isso! Sou só um fruto prematuro. Mas obrigada! – disse isso com as bochechas ruborizadas, dando com os ombros. Ailin não lidava bem com elogios e teve que disfarçar nesse caso, porque Ainan era sempre MUITO simpático com ela.

Ainan lhe deu um abraço forte na frente das outras crianças, o que a constrangeu e por fim a ele também, quando se deu conta.

– Ah, me desculpe! Mas você é o nosso orgulho! – dizia com os olhos fitados nela.

Eles se sentaram e a aula logo se iniciou. Na aula, ninguém disse MUITA COISA ali, mas todos estavam MUITO surpresos por Ailin ter se tornado um fruto antes de ALGUMas das outras crianças, ALGUMas delas MUITO promissoras. Todos ficaram curiosos, cheios de dúvidas e com perguntas na ponta da língua, mas também tentando transparecer que fosse algo MUITO natural, embora soubessem que não era. Não nesse caso.

O temperamento conhecido de Ailin e sua falta de concentração seriam COISAs que a fariam demorar MUITO tempo para conseguir o hakiba. O que teria acelerado o processo? Essa era a dúvida de todos. 

Aqueles dias haviam providenciado MUITOs detalhes a favor do hakiba de Ailin. Por exemplo, é verdade que hakas não dormem na cama com seus hakais, isso em qualquer idade, pois simplesmente não é algo confortável. Então, ter se unido primeiro de forma afetiva com seu haka, foi a peculiaridade que os fez se unirem também fisicamente no hakiba. Ter ficado várias horas longe de Bukie também cooperou para aquela primeira noite.

O fato mais curioso não era só a união ter acontecido inesperadamente, mas também a quantidade de tempo que passou unida a Bukie e o formato bem definido com que se apresentou na suposta primeira união (que na verdade foi a segunda). Era algo extremamente raro, para não dizer absurdo ou impossível, uma primeira união tão perfeita como a relatada pelos tios e vizinhos de Ailin ao resto do clã. MUITA gente que não viu ficou desconfiada.

Não demorou MUITO e o tio de Ailin foi ter com alguns conselheiros do clã para que promovessem a cerimônia de teste do hakiba da menina. A formalidade era necessária para que se oficializasse Ailin como um fruto do clã e, mais à frente, uma valente, se ela assim desejasse ou se fosse necessário.

– Oilavo, o que está nos pedindo parece precipitado. Sua sobrinha nunca havia sequer se unido a seu haka. Não temos nenhum registro ou relato dos tutores e agora quer nos convencer de que houve um hakiba que, além de estável teve uma formação definida? – argumentou Tsarat, um dos mestres do conselho, o que tinha a autoridade da palavra final.

– Com todo respeito, Tsarat, mas está com receio de um exagero ou apenas questionando se há verdade em minhas palavras? – perguntou Oilavo, com a cabeça reclinada.

– Nada disso, bravo amigo. Só entenda como é estranho tudo isso. – respondeu com um sorriso que tentava contornar o constrangimento. – Só digo que precisamos analisar com calma antes de colocarmos Ailin à prova na frente de toda comunidade Hakal, não é mesmo?

Se aproximou e pôs a mão no ombro de Oilavo.

– Sim. Compreendo. – respondeu baixo, com um olhar tranquilo que escondia sua ira.

– Simples! Que acha de trazê-la aqui antes? – sugeriu Moren, outro mestre.

– Isso, Oilavo. Traga Ailin aqui e faremos uma prévia. – concordou Tsarat – O nosso relato como testemunhas oculares servirá de registro, assim a COISA toda não foge dos padrões. O que me diz?

Oilavo respirou fundo e, ainda um pouco chateado confirmou:

– Tudo bem. Vou trazê-la logo depois do desjejum amanhã.

– Perfeito! – concordou Moren, em tom alegre, como que tentando melhorar o ambiente. – Será um horário excelente!

Oilavo os cumprimentou e virou-se para sair da sala do conselho. Voltando sua cabeça para os conselheiros, disse:

– Só não a pressionem. Ela é uma boa menina. – e saiu.

Já lá fora, enquanto ainda engolia a decisão do conselho, um terceiro mestre, Elinon, correu até ele. 

– Oilavo! – chamou-o apressado. – Espere um momento.

– Elinon, me desculpe, mas estou com pressa. – o tom não escondia sua irritação.

– Entendo seu lado, mas não pode deixar seu orgulho passar por cima até mesmo do bem estar de sua sobrinha. Ela ainda é MUITO menina e até poucos dias atrás tinha um histórico delicado, não é mesmo? Os registros sobre ela mudaram, mas não deveríamos ser mais cautelosos? – perguntou de um jeito sereno.

Oilavo levou alguns segundos.

– Será que estou exagerando? – indagou Oilavo, pensativo.

– Talvez. Não sei dizer. Você só não deve deixar que essa alegria seja mais sua do que dela. No mais, entenda que não é mero capricho do mestre; é uma formalidade tradicional que talvez devamos mesmo respeitar, não é?

Todos os conselheiros eram considerados mestres, mas “o mestre” se referia ao líder do conselho, que era propriamente o líder do clã todo, o “mirki” (algo como “prefeito” em Teangô, idioma hakal – geralmente pronunciado apenas o “mi”). Era por isso que se referiam a ele com um “M” antes do nome: Zaté virava Tsarat.

– Não estou satisfeito, mas compreendo. – murmurou Oilavo, continuando sua caminhada.

Oilavo fora um grande valente do clã, mas já fazia MUITO tempo. O ferimento em uma batalha ocorrida MUITOs anos antes havia feito dele um homem aflito, que se sentia inútil depois de passar os últimos anos fabricando redes de pesca para o clã; as melhores redes do clã, diga-se de passagem. Além disso, ele não conseguia ter filhos e não sabia se o problema era consigo ou com sua esposa, mas era uma ferida tão grande quanto a que o pusera fora do grupo dos valentes.

Sentiu-se reconfortado por ter sido designado para cuidar de Ailin quando ela perdeu seus pais, o que trazia MUITA dor também, pois essa alegria viera com a morte de seu irmão. No entanto, Ailin até então não era como ele gostaria que fosse. Oilavo sempre esperou ter um filho ao qual pudesse ensinar empunhar a espada, treiná-lo a adaptar-se ao seu haka e, quem sabe, ser um dos mestres do conselho, que eram os hakais mais fortes e respeitados.

O entusiasmo de ver Ailin passando pelo hakiba tão jovem e com um controle tão alto, deu-lhe uma nova perspectiva. Quem sabe agora poderia ser o pai que sempre quis ser.

Chegando em casa, encontrou Ailin feliz, brincando com Bukie.

– Filha – sentiu um arrepio ao chamá-la assim, como não a chamava havia MUITO tempo. – Precisa descansar hoje, pois amanhã cedo vamos até a sala do conselho. Eles querem vê-la, querem testemunhar se o hakiba é verdadeiro, assim podemos fazer o quanto antes a cerimônia com o clã.

Ailin suspirou e tremeu, mas o olhar de felicidade do seu tio sobre ela era algo que não via havia MUITO tempo.

– Tá! Eu vou. – exclamou, sem conseguir esconder o nervosismo. – Mas e se eu fracassar? E se eu não conseguir me concentrar? – perguntou e correu em direção a Oilavo lhe abraçando.

Oilavo riu. – Não se preocupe, isso é bobagem! Eu sei o que vi e foi perfeito! Seu hakiba tinha o aspecto mais natural que já vi em toda minha vida! – falou em tom inspirador, erguendo Ailin em seu colo. Continuou:

– Além do mais, se não conseguir, qual o problema? Só quem vai ver é o conselho, mais ninguém!  – o conselho era formado por quinze valentes. – Não tem mistério, faça somente o que já fez, minha querida – completou.

Oilavo conseguiu que sua empolgação não a fizesse se sentir pressionada. Pelo contrário, havia motivado Ailin, que foi à aula depois de fazer sua refeição ao meio-dia e não disse uma palavra sobre isso a ninguém, exceto Ainan.

– Preciso te contar uma COISA! – cochichou bem baixinho a Ainan, sem que as outras crianças pudessem ouvir – O conselho quer comprovar meu hakiba e eu tenho que ir lá amanhã pra isso. Não é demais?

– Uau! Você é que é demais!

Fez uma pausa e acrescentou com os olhos arregalados:

– Eu tremeria apavorado e não conseguiria ficar em pé!

– Mas é uma COISA tão natural, não acha? – disse Ailin, com as sobrancelhas erguidas, apertando os lábios.

– Natural? Desmaiar de pavor? Bem, pra mim talvez seja mesmo. – retrucou Ainan envergonhado.

– Não! Eu quis dizer o hakiba. É natural. Todo hakal consegue, se eu não conseguir de novo amanhã, vou conseguir depois. – disse isso com tanta segurança que despertou curiosidade em Ainan.

Todos os hakais conseguem o hakiba. Alguns bem cedo, outros demoram mais, mas todos eles alcançam a união com seu destinado haka, e apenas com ele.

– Você mudou BASTANTE. Não é mais como antes. Todos notaram que você mudou MUITO de uns dias pra cá, mas eu achei que era apenas uma fase mais animada; não é não. Você mudou definitivamente! A Ailin de antes diria que não se importava em conseguir, que não precisa provar nada pra ninguém ou, pior ainda, estaria cheia de si. Eu gostava de você antes, agora gosto ainda mais! – disse cheio de orgulho e carinho.

Ainan não conseguia se unir ao seu haka ainda, mas não estava tão preocupado. Queria que isso surgisse naturalmente com o tempo, pois não queria se frustrar. Mas ver a situação de Ailin o deixou bem animado.

O dia seguiu normalmente e Ailin chegou até a esquecer do teste no outro dia. Chegando em casa, ao final da tarde, comeu ALGUMa COISA rapidinho e correu para o quarto com Bukie nos ombros.

– Bukie, amanhã é o nosso dia! – disse com um sorrisão no rosto.

Bukie a olhava ainda sem entender MUITO bem o que estavam esperando que ele fizesse. Ailin falou MUITO sobre o assunto. Disse que eles teriam que se unir na frente de pessoas desconhecidas e que disso dependeria a reputação de ambos e também dos seus tios. A pressão era grande. Se ele entendesse tudo perfeitamente, então, não entenderia outra COISA: por que Ailin parecia estar tão despreocupada.

Ailin pediu que ele subisse em seu pescoço e se unisse a ela, só para garantir que sabiam como fazer.

– Vamos lá, pode vir!

Bukie se lançou ao seu pescoço.

– Pronto? O que foi? Não senti nada ainda. – estranhou, pois na outra vez havia sentido várias fisgadas bem desconfortáveis que iam do pescoço até o meio das costas e também de ombro a ombro, além de ter sido um pouco dolorido e ter sentido uma náusea leve.

Ela pegou o haka e o ergueu de frente para o rosto, vendo se estava tudo bem e tentando encontrar ALGUMa informação fazendo uma leitura das expressões de Bukie. 

– Você está bem? Está MUITO cansado? Nós precisamos fazer isso, você sabe, não é? Tente de novo, ficamos assim só um pouco e depois podemos dormir. – ele ainda era MUITO novo para se comunicar por sons e MUITO tímido para tentar.

Ela mesma o colocou de volta no pescoço e podia sentir o haka tentando algo. Ele se mexia como se estivesse tentando encontrar uma posição mais confortável ou mais correta de fazer o que precisava, mas depois de alguns segundos ela o pegou novamente.

– Agora está me deixando preocupada!

Ela via na expressão de Bukie que ele estava tentando. O fato é que eles se uniram anteriormente por condições MUITO específicas: com o haka desesperado, com necessidades reais de se conectar e ela tranquila, concentrada, ainda que não fosse exatamente nisso. O desgaste daquele dia havia sido suficiente para que as substâncias que valiam a conexão para o haka exalassem de seu corpo tornando-as irresistíveis. Definitivamente, esse não era o caso agora.

Eles tentaram durante QUASE uma hora, até ficarem ambos MUITO aflitos e angustiados, ao ponto de se irritarem um com o outro. Mas sabiam que não tinham culpa, faltava algo que não sabiam o que era.

Ailin não contou ao seu tio, mas o haka de Oilavo ouviu tudo e “contou” a ele, que passou a noite sem sono, refletindo sobre sua culpa na história e decidindo o que faria no dia seguinte.

O despertar de um haka

Na manhã seguinte, o dia seco e frio combinava com os olhos tristes de Oilavo, que tivera que tomar uma decisão importante: desistir de sua ideia egoísta de levar Ailin ao conselho.

Oilavo foi até o quarto dela ainda pensando em ALGUMa desculpa que não evidenciasse sua frustração e MUITO menos transparecesse que soubesse o que havia acontecido na noite anterior. A última COISA que pretendia era deixá-la constrangida ou ainda mais frustrada.

Bateu na porta e Ailin não respondeu. Imaginou que ela estivesse temerosa, com medo, quem sabe até chorando no quarto.

– Ailin, não vai dar pra irmos ao conselho hoje, não estou me sentindo MUITO bem.

Estava ainda mais comovido e agora preocupado por ela não responder. Insistiu em sua fraca desculpa, deu mais ALGUMas explicações e falou ALGUMas COISAs que não fizeram MUITO sentido nem a ele mesmo, até que sua mulher o viu e perguntou:

– O que está tentando fazer? Ensaiando pra dizer algo a Ailin? Ela não está aí, saiu bem cedo do quarto. Comeu ALGUMas gomas e agora está lá fora brincando com Bukie te esperando pra ir ao conselho. Vá vê-la. Quando forem sair, me avise. – e voltou ao que estava fazendo.

Oilavo não disse uma palavra, apenas correu para fora a fim de ver como Ailin estava reagindo ao fracasso da noite anterior.

– Bom dia, filha! Dormiu bem? – investigava apreensivo.

– Bom dia! – respondeu soltando Bukie e ficando em pé. – Eu dormi bem, já a sua cara hoje não é das melhores! – brincou.

– Minha cara já não é das melhores desde que nasci! – zombou de si mesmo, rindo para esconder a tensão.

– Vai demorar ainda ou vamos lá agora mesmo? Estou ansiosa!

O sorriso de Ailin não demonstrava o menor indício do que o haka de Oilavo lhe contara. Ele olhou em volta para ver se o encontrava, esperando ALGUMa explicação, mas o haka ainda estava dormindo.

– Está bem, vou chamar Sane e já vamos. – ele não tinha ainda MUITA certeza disso, afinal, havia se preparado a noite inteira para uma situação totalmente oposta.

Entrou no quarto atrás de Fulgor – seu haka – e, empurrando a cauda com o pé, o chamou pelo nome.

– Fulgor! Ande, acorde!

– Grrrrrr… – resmungou o haka, ainda sonolento.

– Como explica Ailin lá fora feliz esperando ansiosa pra irmos até o conselho?

Fulgor levou alguns segundos até conseguir assimilar o que Oilavo insinuava. Os hakas não compreendem ideias MUITO complexas, nem decoram frases MUITO longas, e são melhor entendidos pelos seus hospedeiros do que por outras pessoas.

– Eu não minto. – resmungou o velho haka. E mentir não era algo natural para os hakas (tão diferentes das QaNai).

– Mas pelo jeito se confundiu e falou bobagem. Ela não parece preocupada. Você está velho demais pra essas COISAs, não acha? Levante daí e vamos andando.

Oilavo não entendeu bem o que houve, mas a aparente animação de Ailin o convenceu a desistir de sua decisão e esquecer a triste noite perdida.

Ao chegarem à sala do conselho, uma surpresa: além dos mestres, também se faziam presentes todos os tutores de Ailin, assim como as crianças que aprendiam junto com ela e seus pais, que, preocupados com seus filhos, convenceram o conselho a deixá-los presenciar o tal teste. Ailin só havia contato para Ainan, que por sua vez, ainda que sem nenhuma malícia e, na verdade, totalmente sem intenção, deixou escapar um “pensamento alto” sobre isso em casa, que foi o que seus pais ouviram e contaram aos demais.

Ainan estava presente e ficou MUITO envergonhado pelo que aconteceu. Ainda assim, acenou com uma cara que fez Ailin entender tudo.

A pressão já existia desde antes e ela poderia apenas ignorá-la por conta de serem poucos os mestres avaliadores, e até por não conhecê-los. Agora, porém, a pressão tinha outra proporção e seria impossível ignorar.

Tsarat explicou a Oilavo o que aquelas pessoas todas estava fazendo ali, enquanto Ailin aguardava quieta observando tudo.

– Ailin, alguém ficou sabendo e espalhou a notícia, por isso tem tanta gente aqui. Tem ALGUM problema pra você? Se quiser, podemos fazer isso outra hora, eu não dou a mínima! Você é quem manda. – explicou Oilavo, cheio de preocupação.

– Se eu falhar, você vai me achar uma inútil? Uma decepção? – perguntou, expondo seu único real temor.

– Claro que não, filha! Nós a amamos, você é nossa dádiva! É como atirar com arco e flecha: se não conseguir hoje, pode tentar outro dia. – a expressão de Oilavo passou confiança, mas escondia uma grande aflição.

– Então tudo bem, eu posso fazer. – disse olhando para os mestres.

Oilavo fez sinal positivo para o conselho.

– Bom dia a todos! – em voz alta, Tsarat iniciou formalmente a reunião. – Bom dia, pequena Ailin. Não há mistérios aqui hoje. Como é sabido de todos, este é apenas um processo improvisado que entendemos ser necessário e suficiente para que o hakiba desta menina seja reconhecido e possa ser iniciado imediatamente. Estamos apenas para testemunhar. – e, após uma pausa: – Quando quiser, Ailin.

Ailin olhou para Bukie e o chamou. Ele pulou do chão até seu pescoço, deu voltas e mais voltas e, como na noite anterior, tentava se acomodar ou encontrar a maneira adequada de se fazer aquilo. Parava uns instantes e recomeçava. De vez em quando, Ailin sentia uns cutucões que incomodavam BASTANTE.

Os segundos que se seguiram foram os mais tensos da vida de Ailin. Aliás, foram segundos MUITO tensos também para todos Oilavo e Sane, e para os mestres, arrependidos de causar todo o transtorno. De tensos, os instantes passaram a ser cada vez mais constrangedores.

Ailin começou a transpirar de forma descomunal por conta de tanto nervosismo. As crianças começaram a rir, com exceção de Ainan, que a cada segundo mais se amargurava pelo que tinha feito. Os pais das crianças começaram a cochichar entre si e notava-se o tom de zombaria ainda sutil que corria em suas faces. Foi com um grande nojo dessa atitude, somado à parte de culpa que lhe cabia, que Moren, o mestre que propôs o teste, se levantou esbravejando:

– Chega! – o brado ecoou trovejante pela sala do conselho e atravessou as portas, que fez os hakas – de todos da sala – que esperavam do lado de fora invadirem a reunião assustados, em defesa de seus respectivos hakais, sem imaginar o que aquele grito representava.

As risadas, os olhares altivos, o grito estrondoso de Moren e a entrada inusitada dos hakas à sala, compuseram o ambiente perfeito para que Ailin, já num nível alto de estresse, e Bukie, num instinto de defesa, se unissem majestosamente diante de todos.

– Vejam! – gritou Ainan, apontando para Ailin.

Os olhares de escárnio se tornaram olhares de respeito e, em alguns, de medo. Segundos se seguiram até que alguém quebrou o silêncio.

-Vesek Akruel! – alguém disse em voz alta e trêmula do meio da sala.

Ailin e Bukie haviam entrado em formação de combate, mas não de qualquer forma. Era a forma mais digna de um valente.

Todo hakiba se deriva fielmente de ALGUMa dessas duas formações: Malha e Cajado – ataque ou defesa – e cada um com uma peculiaridade e aparência um pouco diferentes.

Malha era a formação original, a mesma de Oferon Hakalam, ancestral dos hakais. Era uma formação de defesa que ganhou esse nome pela forma que o haka do patriarca assumia quando eles se uniam. O haka de Oferon se estendia por trás de suas costas como uma armadura MUITO rígida, mas que se moldava aos movimentos do seu corpo, como uma robusta vestimenta de guerra.

Cajado foi a formação que surgiu primeiro com Otsa, o primeiro profeta do clã. Antes dele, todos os hakais haviam apresentado formação de combate do tipo Malha, que era basicamente de defesa, mas com Otsa surgiu uma nova aparência e utilidade: uma formação de ataque, justo com o primeiro profeta do clã. Seu haka se estendia por trás de suas costas, de um braço a outro, fazendo sustentação para uma parte maior que sobressaía da mão direita, formando como que um cajado. Essa forma fez de Otsa um personagem fundamental na história do clã, pois além de profeta, fora um grande guerreiro e o primeiro a usar formação de ataque.

A formação de Ailin não era outra COISA. Conhecida dos contos, aquela forma havia se tornado lendária, pois não era vista havia MUITO tempo. Aquilo que todos admiravam não era nem Cajado, nem Malha, mas uma terceira formação, MUITO rara e não era vista desde o Dia de Sangue – o último dia do cerco dos hakais à cidade fortificada dos Cahur – quando Aodin, o último mestre que a usava, foi morto numa intervenção de Daxa. (Aodin – lendário Vesek Akruel, nome que, com o tempo, passou a soar muito feminino, por isso ninguém homenageava-o pondo nos filhos)

Vesek Akruel – ou ataque e defesa, em Teangô. Essa era a formação de Ailin e Bukie que todos boquiabertos admiravam, sem nenhum riso arrogante mais.

Os mestres espantados não deram uma só palavra e se aproximavam de Ailin passo a passo, esperançosos em pensamento que ela fosse uma resposta às preces dos poucos que ainda acreditavam e o cumprimento de ALGUMas profecias.

De repente, ouviu-se o aplauso solitário de Tsarat que, ainda atônito, via aquilo com um bom pressentimento. Logo, todos os presentes também aplaudiram, num misto de temor, vergonha e entusiasmo. O que se seguiu foram alguns pais ainda mais preocupados se dirigindo a alguns dos mestres, outros indo embora sem saber o que pensar e outros indo até Ailin e seus tios para pedir perdão pela maneira debochada de minutos antes.

Não demorou MUITO para que o conselho pedisse que todos se retirassem, ficando lá apenas Ailin, seus tios e os hakas deles três. A conversa levou mais de uma hora, foram MUITOs os teores e as decisões, pois eles sabiam que Ailin poderia se tornar a valente de maior efeito do clã. Uma das decisões foi justamente sobre a iniciação da menina como valente, que agora seria feita acompanhada de três tutores diferentes: Tsarat, o maior guerreiro Cajado; Elinon, o maior guerreiro Malha e o próprio Oilavo, antigo valente também Cajado, que jamais dispensaria essa felicidade e responsabilidade.

Todas as expectativas sobre Ailin mudaram e se converteram em grandes propósitos.

O treino de Overim

Distante de Ailin, para lá da Colina das Três Irmãs, Overim já havia iniciado sua nova rotina. O treinamento começou com Overim sendo analisado fisicamente para ver quais eram suas maiores deficiências e, então, supri-las. Antes de começar, QoNoxa lançou um feitiço sobre ele dizendo que aquilo o ajudaria na identificação. Também desenhou um selo em seu peito, sem explicar MUITO bem, que o menino nem entendeu direito do que se tratava.

– Se não quer que Jio se meta, não é mais fácil o chamarmos pra fora como antes? – perguntou o menino, com um olhar sem paciência, desfazendo da ideia do velho.

– Sem Jio, o que vamos fazer não terá nenhuma utilidade. – respondeu o sábio, com um olhar áspero. – Ele tem que ficar aí e continuar tentando te ajudar.

A primeira parte do treino era uma espécie de teste com COISAs simples. Overim revezava entre corridas lentas e longas, corridas curtas e explosivas, levantamento de pedras razoavelmente grandes, arremesso de pedras menores e saltos com objetivos verticais e horizontais. Passou toda tarde assim e já estava exausto. Não era um treinamento de preparo, mas uma maneira de estressar seus músculos e deixá-lo exausto.

– Eu não aguento mais. – Overim tentou falar num volume apenas suficiente para que QoNoxa ouvisse e desse o teste por encerrado.

– Você não pode parar agora, tem que continuar. Se é que dessa vez está mesmo no limite. – insinuou o velho.

– Como se você conseguisse fazer metade disso. – retrucou, meio sem medir as palavras.

– Como é? Então, acha que se eu nunca fui um combatente é porque nunca tive força física suficiente? – a cara amarrada do ancião deixou Overim desconfortável.

– Não quis dizer isso! Me desculpe! – respondeu todo sem jeito, esfregando a mão na nuca.

– Estou só brincando, nunca tive MUITA força física mesmo. Mas nunca precisei encostar em ninguém pra matar. – o sorriso que havia no começo da frase se fechou.

– Matar sem encostar? Eu diria que é fascinante, não fosse esse seu olhar. Está falando sério ou é só pra me assustar?

QoNoxa apenas assentiu com a cabeça e, depois de uns segundos sem ninguém dizer nada:

– Você precisa continuar até não poder mais, e tem que fazer isso agora.

Só aquele olhar, depois de uma informação daquelas, foi o suficiente para Overim continuar.

– Certo! Mas vai ter que me ensinar como fazer isso qualquer hora! – abriu lentamente um sorriso.

– Quem sabe um dia. Mostre primeiro que tem força de vontade.

– E como vai saber se estou no meu limite?

– Eu saberei, acredite.

Overim meneou com a cabeça, virou-se e prosseguiu com a pouca força e energia que ainda lhe restavam. Alguns minutos depois, Overim tombou QUASE sem forças.

– Continue! Vamos lá, levante. Quanto mais esforço, mais fácil será pra analisar os dados colhidos no meu feitiço. Seu treinamento vai ter um aproveitamento MUITO acima da média!

– Mal consigo erguer os braços!

– Está é fazendo corpo mole… levante!

– Ahhhhh! – deu um grito irado com a nova insinuação do curandeiro e, num último esforço saiu correndo numa explosão muscular que não durou 20 metros, até que tombasse definitivamente.

– Isso! – bradou o velho de longe, erguendo os braços sorrindo, olhando o menino caído.

Quando chegou mais perto viu que ele estava num estado de desmaio ou MUITO semelhante, justamente o que precisava para o feitiço funcionar.

Os Qafuga são os únicos que hospedam as QaNai. No entanto, não sabem MUITO sobre como tudo funciona, pois os poucos sábios do clã estão sempre preocupados com outras questões e, quando descobrem algo a respeito, guardam para si.

O que era sabido entre eles era o que chamavam de “Nai”, o modo de combate de um QaFuga, que é quando a QaNai assume o controle do corpo. Eles entendiam que toda manifestação externa atribuída ao parasita só acontecia nesse momento. Ou seja, achavam que apenas no Modo Nai é que havia algo acontecendo.

Entretanto, QoNoxa era quem tinha mais informações sobre o Modo Nai e sabia que as QaNai podiam alterar ou ajustar o funcionamento de um órgão ou membro do corpo suprindo a necessidade do hospedeiro mesmo sem precisar tomar o controle do sistema nervoso. QoNoxa sabia que as QaNai também agiam no corpo em tempo integral de outras formas, pois ainda que não assumissem o controle do hospedeiro, quando houvesse necessidades físicas, tentariam corrigi-las.

Em proporções de menor estresse, como no caso do treino de Overim, a QaNai não precisaria tomar o controle. Ela apenas analisaria as áreas do corpo afetadas e as supriria com melhoras na circulação sanguínea, oxigenação ou com reposição de sangue, água, adrenalina e energia. Isso, porém, atrapalharia o rendimento do treino; daí o motivo do feitiço e o selo.

O feitiço era para proibir a conexão da QaNai com o sistema nervoso do hospedeiro. A intenção não era anular a ação da QaNai, mas obrigá-la a agir sem deixá-la assumir o controle. A ação do Modo Nai é iniciada no cérebro, mas sendo impedida, faria a QaNai agir em defesa do hospedeiro. O selo no peito de Overim, esse sim, inibia completamente a ação da QaNai.

O que ajudaria o velho a mapear o corpo do menino não seria nem o selo, nem o feitiço, mas sua experiência. Tanto o selo quanto o feitiço eram apenas elementos que faziam parte de sua estratégia.

O desmaio de um hospedeiro era uma situação que fazia a QaNai se desesperar e tentar com mais insistência manifestar o Modo Nai. Foi o que aconteceu no momento do desmaio de Overim. Assim que ele desmaiou, QoNoxa foi correndo até ele e rompeu o selo de seu peito, fazendo a QaNai lançar de uma vez só toda sua força furiosa nas áreas que já havia tentado suprir. Assim, foi possível ver com nitidez quais eram as áreas do corpo onde a QaNai havia tentado proteger de ALGUMa forma. A leitura foi MUITO fácil, saltava à vista. Cada parte do corpo onde a QaNai agia se mexia, mudando de textura e consistência.

QoNoxa anotou o que precisava e foi dormir.

– Estamos aqui ainda? – perguntou Overim na manhã do outro dia, enquanto ainda tentava abrir os olhos.

– Sim, você dormiu na relva. – respondeu rindo, mas focado ainda em suas anotações.

– O que houve ontem? Não lembro de MUITA COISA, só sinto MUITA dor no corpo inteiro!

– Fique aí. – disse quando o menino tentou se levantar. – Está MUITO fraco ainda. Eu já comi, mas não é bom que você coma agora. Sua QaNai ainda está um pouco agitada e não vai aceitar bem comida nenhuma.

O feitiço já havia sido desfeito, pois a QaNai de Overim não sentia necessidade de intervir depois de ALGUMas horas consertando o que podia no corpo.

– E por ele estar agitado eu vou precisar passar fome? – contestou o menino com um riso breve e uma sobrancelha erguida. Queria uma explicação.

– Isso mesmo, você…

– É sério? E não vai nem me explicar? – interrompeu.

– Espere. Eu ia dizer: isso mesmo, você tem que questionar. Não faça o que te mandam apenas por confiar. Faça, mas saiba o motivo. Não quero treinar mais um tolo que não pensa por si só e não analisa as COISAs.

Overim deu um risinho.

– Entendi, vou ficar atento! E o que você tem aí? O que comeu? – olhava em volta tentando descobrir o que o velho havia comido.

– Já disse, você não vai comer. Sossegue.

– Mas o que…? De novo? Certo. Pode me dizer o que tem a ver a agitação da QaNai e a fome? – perguntou, dando com os ombros.

– Nada. – respondeu. – só não tem mais comida mesmo. Comi tudo, estava morrendo de fome. – QoNoxa conseguiu nem sequer riu do que disse.

– Hein? Só o que falta! Tô com fome mesmo! Você comeu toda minha comida?

– Não. Comi toda a minha comida. Você, pelo que me lembro, não trouxe nada. Além do mais, não reclame, estou velho demais pra lembrar de tanta COISA.

Overim só não riu porque a fome era MUITA mesmo. Mas que figura esse velho!

Poucos minutos depois, QoNoxa e Overim foram para casa descansar enquanto calculava o desenrolar do treinamento.

QoNoxa não pegaria leve nos treinos e exigiria o máximo do tempo que passassem juntos, mas ele viu que o tempo que teriam para treinar às escondidas não seria suficiente. Então, foi até a casa de Naité, o pai de Overim. Lá, teve uma longa conversa que resultou num acordo entre os dois para que o menino pudesse ser treinado pelo ancião nos horários que escolhesse.

– Estamos combinados, farei o que me pediu. Amanhã, venho cedo buscar Overim. – finalizou a negociação e manteve os termos em segredo.

– Agora sim, será um prazer. – completou Naité, com um sorriso sombrio.

Para QoNoxa, o que importava era treinar Overim. Todo o mais era secundário, pois as imagens da visão que ele teve verdadeiramente o assombravam.

No dia seguinte, QoNoxa bateu na janela do menino, que ainda estava dormindo. Era ainda MUITO cedo e a luz mal começava a raiar no horizonte.

– Ah, não! – disse Overim, QUASE sem acreditar quando abriu a janela.

– Sou eu mesmo. Já conversei com seu pai, depois te conto. Se arrume e saia. Seus desjejuns agora serão lá em casa, quando não no rio.

QoNoxa havia mapeado todos os pontos fortes e fracos do corpo do menino, assim como todas as áreas de maior e menor uso, elasticidade, contato, etc. O ancião era um treinador MUITO engenhoso e MUITO meticuloso. Um gênio da COISA.

Agora, a missão era fazer com que o jovem QaFuga desenvolvesse massa muscular e uma resistência rapidamente, sem que a QaNai atrapalhasse e sem precisar usar o selo.

– Você precisa se concentrar e explicar ao Jio o que estamos fazendo. – orientou o velho.

– Vou tentar.

Depois de alguns minutos de interação entre o menino e sua QaNai, a resposta foi positiva: a QaNai foi convencida.

QoNoxa programou o treinamento levando em conta a ansiedade que notava crescer em Overim. Sabia que devia usar essa energia em prol do treinamento ou não seria nada fácil controlar o Modo Nai. Mas o fundamental era que o treino físico deixasse o corpo do menino cada vez preparado, de forma que não exigisse energia da QaNai fora do modo de combate.

O despertar de uma QaNai

Dia após dia, o treinamento seguia duro. Desde o segundo dia, já houve evolução clara, mas QoNoxa exigia sempre mais; e conseguia.

Passadas ALGUMas semanas, o menino estava cada vez mais concentrado. Não manifestava o Modo Nai fazia tempo, tanto de forma inconsciente (como com as hienas), quanto consciente (como nas varadas que levou, quando inclusive manteve o controle).

Se ao menos Overim soubesse que podia ter partes do corpo enrijecidas sem precisar entrar completamente em Modo Nai e, principalmente, sem perder o controle, seria um recurso MUITO valioso. QoNoxa sempre soube das possibilidades, mas nunca expôs ao clã, pois não queria de forma ALGUMa ser visto ou cobrado como combatente, assim como não queria ver o alcance daquele poder subindo à cabeça dos QaFuga.

QoNoxa não se preocupava tanto em esconder o que sabia, pois só saber como funcionava não era o suficiente. Na verdade, mesmo as QaNai mais ligadas afetivamente aos seus hospedeiros tinham um certo orgulho que escondiam. Todo QaFuga sabia que podia contar com o Modo Nai em situação de risco, mas que, apesar dessa certeza, a confiança era baseada exclusivamente na disposição das QaNai, que escolhiam colocar ou não o hospedeiro em proteção. Ou seja, ainda que todas as vezes funcionasse e as QaNai os socorressem, eles teriam sempre a real possibilidade de não serem atendidos.

O que mais garantia o apoio imediato ao hospedeiro nas horas de risco era a segurança da própria QaNai posta em risco. Tanto no ato de ajudar, quanto no de se defender, estão os instintos de egoísmo e orgulho dessas criaturas. Eram poucos os Qafuga com intimidade ou autoridade suficiente para alcançar o favor de suas QaNai em qualquer momento que quisessem, sendo atendidos imediatamente. O velho desajeitado, QoNoxa, era um desses.

Nos treinos, Overim superava facilmente as metas estipuladas, uma após a outra. Para um QaFuga comum, isso podia significar que só entraria em Modo Nai tarde demais, mas para Overim isso era bom, pois dessa forma a expectativa dele em batalha também seria otimista e a QaNai só agiria se fosse convidadoa e aceitasse o convite.

A cruel ansiedade ainda vinha crescendo sem parar dentro de Overim, mas o apreço do menino pelo velho também crescia, assim como a cumplicidade e compreensão entre ele e Jio. QoNoxa sabia que só forçar os treinos e direcionar a energia de Overim não era suficiente para acalmar sua ansiedade, por isso, dia sim e dia não, os dois faziam ALGUMa atividade inusitada escolhida pelo ancião. E assim foi durante um bom tempo.

Passaram-se dias, semanas, meses, anos. O coração de Overim jamais deixara de sentir falta daquilo que não sabia o que era. 

O treino incessante era cada vez mais extremo, sempre acompanhado pelas atividades que QoNoxa planejava. Já haviam feito MUITA COISA juntos: pescaram, caçaram, nadaram, pintaram alguns quadros (além de uma rocha enorme na colina), colheram ervas medicinais para o clã todo, prepararam comidas exóticas feitas com as iguarias que o velho usava no preparo de poções, etc.

Desde o início do treino, a estratégia de QoNoxa era a mesma: fazer com que a QaNai do menino obedecesse aos chamados dele. Antes de tudo, era preciso que hospedeiro e parasita tivessem uma boa relação, estivessem em harmonia. Além disso, a QaNai naturalmente preferiria trabalhar e conviver com um hospedeiro que tivesse disposição, resistência e massa muscular suficientes para se proteger sozinho. Essas duas COISAs já eram uma realidade.

Certo dia, QoNoxa sugeriu que fossem a cavalo até um vilarejo que ficava cerca de dois dias dali, isso se o trajeto fosse feito com cavalos carregados. Esse vilarejo era conhecido por suas feiras que tinham praticamente de tudo.

QoNoxa fez uma lista de COISAs que supostamente o clã precisava e mostrou a Overim. Eles subiram em seus cavalos e partiram. Na estrada, não encontraram nada demais, foi tudo tranquilo. A viagem levou pouco mais de um dia inteiro.

– E agora, pra onde vamos? – perguntou o menino, olhando perdido para um mundaréu de gente andando para todo lado – Tem ideia de onde encontrar essas COISAs?

– Sim, claro! Venha atrás de mim e fique de olho pra não se perder. – respondeu, em tom de gozação.

– Esse velho me subestima… – resmungou.

– Eu sou velho, mas não estou surdo ainda, rapazinho!

Andaram pela cidade por alguns minutos e QoNoxa, de repente, parou e desceu do cavalo.

– Desça. – ele parecia um pouco tenso. – É por aqui. Amarre os cavalos ali. – apontou e foi saindo.

Depois de amarrar os cavalos, Overim olhou para onde QoNoxa estava e não o viu. Deu uma corrida no meio do povo em direção ao lugar em que ele estava para não ficar MUITO atrás, mas continuou sem avistá-lo. Ficou parado um pouco esperando que o velho percebesse e voltasse até ele, mas depois de alguns segundos achou que seria pior e saiu andando por entre a multidão.

Os gritos dos feirantes negociando todos ao mesmo tempo era irritante. Como ele parecia ser a única criança por ali, também ficava difícil andar sem empurrões e conseguir se desviar das cotoveladas e pisões a todo instante.

Overim encontrou um dos artigos que lembrou da lista: pó de canela. Ele só não tinha como negociar sozinho. Resolveu ficar um pouco por ali e esperar que o velho o encontrasse quando fosse atrás daquele item. O mesmo feirante vendia também artesanato feito com canela. Ao lado dele, havia um outro feirante vendendo objetos cortantes: facas, punhais, facões, machados e espadas de MUITOs tipos, com ALGUMas peças bem impressionantes. Overim ficou ali olhando, achando tão impressionante que nem viu o tempo passar.

Estava entretido quando ouviu que o barulho de um tumulto que crescia a ALGUMas dezenas de metros dali. A curiosidade de criança falou mais alto e ele foi rápido pelos cantos até lá ver o que estava acontecendo. Quando chegou, eis a surpresa: QoNoxa havia se metido em confusão.

Três homens faziam a maior gritaria, insultando o velho, e só não o tinham espancado porque um grupo maior, com cerca de 15 homens, tentava impedi-los. Mas QoNoxa os provocava ainda mais. Overim, ao ver aquilo ficou perplexo.

– Vô, o que aconteceu? – perguntou assustado olhando em volta.

– Nada de mais. Esses insolentes acham que podem se meter com qualquer um, mas por quê? A prepotência será que vem desse fedor todo? – enquanto falou, ergueu uma das mãos na direção deles segurando um bracelete.

– Seu velho sujo! Sabe MUITO bem que esse bracelete não lhe pertence! Vai mesmo esperar que nós levantemos nossas espadas aqui? – disse Alano, o mais controlado dos três amigos. Sem a presença do qual uma desgraça já teria acontecido.

O homem tinha um sotaque engraçado, não pronunciava direito ALGUMas palavras. Provavelmente, era de ALGUM povoado de idioma variante do Sandira.

– Eu não preciso de nada nas mãos pra esmagar a cabeça deles. – disse um dos outros dois. – Se você não pegar seu bracelete logo, eu mesmo vou pegar! – empurrou o ombro de Alano.

Enquanto eles discutiam, Overim tentava sair dali com o velho, ainda sem entender a acusação. O ancição, porém, insistia em continuar a briga e até lançou o bracelete com força na cabeça daquele que aparentava ser o mais nervoso dos três, apesar de ser o menor.

– Toma aí! – disse, assim que o bracelete o atingiu. – Isso é pra aprender não se meter com um QaFuga!

– Ora, ora! Então, terei o prazer de espancar um QaFuga hoje? Já está decidido! – todos por ali sabiam que aqueles homens eram brigões, mal educados e de pouca inteligência, mas quando colocavam uma ideia na cabeça, não era fácil fazê-los desistir.

Ele apontou a espada para a multidão, que se afastou, ficando só o velho e o menino próximos dos três. Alano tentou dizer algo, ainda querendo só pegar o bracelete e ir embora, mas seu companheiro estava cego de raiva e o ignorou.

– Filho, é sua chance de mostrar o que está treinando todos esses dias, mas você não vai aguentar com os três sozinho. – disse QoNoxa, com a mão no ombro de Overim.

– Quer que eu brigue com esses homens mesmo? Eu não! Vamos dar o fora daqui! – Overim ainda estava MUITO calmo e não podia aceitar brigar sem mais nem menos por algo que nem sequer havia entendido, ainda mais com três homens de uma vez, com espadas nas mãos e aparentemente dispostos a matar por tão pouco.

Enquanto conversavam, o homem deu com a sola do pé na boca de QoNoxa, que caiu de uma vez no chão. Overim mal podia acreditar naquilo. Ele rapidamente se abaixou perto do rosto do velho que, olhando fixamente para ele, disse:

– Agora é por sua conta, pegue-os!

O olhar de raiva de QoNoxa QUASE convenceu o menino, mas havia MUITOs fatores contrários.

– O senhor mesmo disse que sozinho eu não poderia!

– Sim! E um QaFuga ALGUMa vez está sozinho? – bradou o velho, deixando surgir um sorriso leve, com a boca ensanguentada.

Overim entendeu o recado. Ele virou-se pouco antes de outro chute que vinha, agora em sua direção. Se esquivou e empurrou com força a perna do homem, que caiu desengonçado. Outro deles veio para cima tentando golpeá-lo no rosto, mas os esquives de Overim eram perfeitos.

Enquanto se desviava, chamou sua QaNai. Ele passou a acompanhar tudo com atenção, mas não via nenhuma necessidade ainda de agir, pois além da calma de Overim, os três homens não pareciam estar suficientemente sóbrios, MUITO menos para abatê-lo. Eram homens comuns e de estatura mediana, sem nenhuma intimidade com a arte refinada de lutar. Ainda assim, Overim achava que não aguentaria e foi aí que propôs a Jio uma ajuda sob condições diferentes das normais.

Overim apelou com honestidade para a integridade física de QoNoxa que sangrava no chão. Que adiantava ter poder se não pudesse ajudar um grande amigo numa hora como essa? Como poderia retribuir todo esforço e empenho de uma amizade com egoísmo? Orgulho tolo deveria mesmo ser um critério de impedimento ao ajudar o próximo? Foram questões como essa que hospedeiro e parasita trataram durante a luta que, agora sim, começava a ficar perigosa.

Ao ver que os golpes não pegavam no menino, um dos homens, já totalmente descontrolado, tentou atingi-lo com a espada; ele esquivou novamente, mas o golpe triscou o rosto de QoNoxa, que ainda não havia levantado. Quando viu o rosto do velho com aquele corte, perdeu a atenção e levou um chute com MUITA força nas costas, a ponto de cair no chão, ao lado do ancião. Ficou imóvel por alguns segundos e os homens se aproximaram de QoNoxa devagar.

ALGUMas pessoas se colocaram corajosamente entre eles, mas antes que precisassem intervir, puderam presenciar a fúria do despertar de um QaFuga. A QaNai ainda não achava necessário assumir o controle, mas ao sentir a angústia de Overim pelo sofrimento do velho, não teve como resistir mais e atendeu ao chamado de forma gloriosa.

A pele de todo o corpo de Overim inchou e enrijeceu, ficando com um aspecto petrificado, MUITO áspero e bem estriado. A simbiose finalmente havia despertado. Ele se levantou de uma forma estranha, como se não precisasse se apoiar no chão. Virou-se lentamente para os homens com uma aparência sombria e soltou um rosnado baixo, até que os três homens entenderam o que era aquilo e trataram de empunhar corretamente suas espadas.

Um deles tomou coragem e o atacou com toda velocidade e força que pôde. Dessa vez, não se esquivou. Ficou parado e esperou a pancada, mas o golpe não teve efeito ALGUM em sua pele, que agora parecia estar mais dura que o metal da espada. Os outros dois homens também foram em cima dele desferindo golpes, dos quais via-se até ALGUMas faíscas saindo.

Os golpes se seguiram até que Overim deu um salto fazendo um movimento rápido com as mãos, tomando as três espadas de uma vez. Antes de voltar ao chão, as espadas caíram todas tortas. Quando pôs os pés no chão novamente, a pancadaria real começou.

Não há MUITO o que narrar. Tudo se resolveu rápido demais. Os três homens apanharam o suficiente, e a vergonha de levar uma surra daquelas de um menino tão jovem só não era tão ruim quanto a própria surra. Overim os fez repensar no que sabiam sobre os QaFuga. Em seguida, ajudou o velho a se levantar e foram pegar os cavalos para ir embora sem os artigos da tal lista.

– Me desculpe por isso – disse QoNoxa, assim que subiram nos cavalos.

– Mas o que foi aquilo? – ainda perplexo.

– O rapaz achou que eu tinha roubado um bracelete. É um idiota.

– Mas então o que fazia com o bracelete? – indagou, coçando a cabeça.

– Só peguei emprestado, oras! Foi a única ideia que eu tive pra fazê-los virem pra cima de mim. – o velho começou a rir e tossir sem parar, uma risada meio sem fôlego, com aquele som de garganta raspando. Enfim, risada de velho.

– Como assim? Vai me explicar por que está rindo? – Overim não entendeu nada.

– Por que acha que eu mesmo não entrei em Modo Nai? Acha que minha QaNai está MUITO velha pra despertar? – ria agora descontrolado. – Você está meio lento hoje, não?

Overim levou uns segundos para entender completamente.

– Minha QaNai acha você idiota. – disse o menino, sem demonstrar nenhuma expressão facial.

– Você é MUITO novo, mas sei que já entende as COISAs.

A volta para casa pareceu bem mais longa por conta do silêncio entre os dois. Aquele silêncio todo por horas fez o menino sentir forte a velha angústia que não sabia de onde vinha. Passou por alguns lugares que pareceram familiares, apesar de não ter lembranças de ter passado outras vezes por ali, a não ser no percurso de ida até lá. Quanto mais próximo de casa, maior era a sensação; uma vontade de virar o cavalo e correr para qualquer outro lado.

A angústia permaneceu longo tempo, invadiu os dias e as semanas seguintes. Apesar disso, Overim continuou se desenvolvendo bem. Estava mais seguro de si, mais confiante, se expressando melhor. Ele se sentia mais independente, mais disposto fisicamente, com mais massa muscular, mais forte e ágil. Estava também empolgado com a relação com sua QaNai e com as habilidades vindas do Modo Nai. Eram tantas as boas mudanças, mas não parecia ser o suficiente. Tudo aquilo ocupava uma boa parte de seus pensamentos, mas havia também uma outra parte bem definida, um vazio escuro cujo espaço ocupado essas COISAs não podiam alcançar. QoNoxa estava atento a isso, sabia que cedo ou tarde o menino tentaria algo, ou então surtaria.

O caminho e a solidão de Ailin

Os últimos anos haviam passado como num piscar de olhos. Foram MUITAs as atividades às quais Ailin fora submetida. Os valentes não eram apenas combatentes, eles faziam serviços para o conselho, que era também a liderança administrativa do clã.

Depois que a notícia da Vesek Akruel de Ailin se espalhou pelo clã – o que levou só um dia ou dois após o teste – MUITOs homens e mulheres foram até o conselho com medo de que Ailin se descontrolasse ferindo alguém no planalto ou que, por causa dela, se originassem guerras com outros povos. Foi por esse medo e pressão do povo que o conselho entendeu que deveria fazer Ailin não só ter treino físico pesado como também participar de missões com questões diplomáticas que lhe dessem experiência de liderança e a despertassem para as questões do seu povo.

Os valentes iniciados não faziam missões MUITO longe do planalto, mas Ailin, em poucos meses, começou a ser enviada a lugares distantes em missões que tinham objetivos aparentemente normais, mas que eram MUITAs vezes forjados para testá-la e fazê-la crescer, tal como foi a missão em Duvala.

Houve um problema nas relações entre dois povos – duvas e sirans – dos quais apenas os duvas tinham contrato de proteção com os hakais. Os duvas recorreram à força da aliança (não foi nessa hora, foi depois) quando um grupo foi hostilizado no caminho entre Duvala e Koama, dois povoados não MUITO distantes do Planalto Hakal.

O chamado dizia que uma caravana dos duvas havia superado uma emboscada na estrada. Poucas horas após terem chegado na cidade, teria aparecido um grupo de sirans reclamando o que supostamente lhes havia sido roubado. Ambos os grupos alegavam serem donos da mercadoria que a caravana trazia, mas alguns dos duvas reconheceram um dos homens da estrada dentre os do grupo siram, o que complicou ainda mais a situação.

Para toda missão que enviavam Ailin, designava-se um mestre, que nesse caso era Elinon, totalizando seis hakais contando com ela. O objetivo era aparentemente simples: pressionar os sirans com os termos do contrato feito entre hakais e duvas, intermediar um acordo razoável entre as partes e aproveitar a situação para sugerir um acordo comercial entre sirans e hakais.

Os sirans, assim como os hakais, tinham uma espécie de conselho que, apesar de desorganizado e com princípios diferentes, mantinha a ordem em seus quatro vilarejos. Eles eram como qualquer outro povo, com guerreiros honrados e MUITOs homens bondosos, mas por causa de um grupo pequeno de salteadores, tinham fama de serem desequilibrados e de quebrar acordos entre os clãs. Uma das COISAs que Ailin não sabia era que os sirans envolvidos no problema com os duvas eram especificamente o grupo de onde a má fama advinha. 

Elinon havia explicado a Ailin ALGUMas possibilidades mediante as informações que tinha sobre a situação que encontrariam. Pretendia que Ailin, mesmo sendo apenas uma criança, falasse como porta-voz de Tsarat. Como crianças raramente se veem como crianças, ela não fez objeção.

Ao se aproximarem da entrada da cidade, se apressaram, pois viram ao longe o alvoroço. Quando chegaram próximos o suficiente, os quatro hakais que foram com Elinon e Ailin saltaram de seus cavalos já em formação de combate; eram todos do tipo Cajado. A simples entrada nada sutil bastou para que todos se aquietassem olhando receosos.

– A confusão acabou! – gritou Sadi, o Cajado mais forte dos quatro. – Vamos resolver isso aqui de uma vez. – depois de dizer, bateu no chão a extensão do haka, que tinha o aspecto de um machado rústico.

– E com que direito você se intromete em nossos negócios? – perguntou Ôner, com seu sotaque arrastado, o menos sonoro e mais desagradável dentre os povos que usavam a língua Teangô. Ôner era o líder daquele grupo siram.

– Meu nome é Elinon, da Família Hakal. Os duvas são nossos aliados e, como vocês se propuseram a vir até aqui em um número tão grande sob alegação de roubo de mercadoria, viemos auxiliar para que não haja exaltação. Queremos ajudar a promover um julgamento limpo. – disse Elinon, com seu jeito formal, ainda sobre o cavalo.

– Então, acham que são mais justos que nós? – respondeu Ôner, passando a mão em sua espada. Já um pouco nervoso por não ter entendido tudo.

– Nós quem? Não lhe conheço. Conheço apenas seu povo, embora o que pensamos sobre vocês não venha ao caso. – respondeu Elinon, erguendo as sobrancelhas.

– Sou Ôner, filho de Altair, a fera! E não me importo com o que vocês pensam sobre nós. Viemos aqui por um motivo e não sairemos daqui de mãos vazias!

Elinon era MUITO ponderado, mas o tom de Ôner o desconcertava. Fez sinal para que Ailin começasse sua fala.

– Senhor, nós viemos apenas ajudar. Queremos garantir que ninguém faça nada precipitado. – disse a menina, olhando séria para Ôner.

Alguns homens que estavam mais à frente, perto de Ôner, riram e outros apenas não conseguiram ouvir ou entender o que ela disse.

– Como é? – Ôner foi o único que ouviu bem e não riu, ao contrário, manifestou indignação. – Meu povo não subestima o seu povo, então fale diretamente comigo, não peça ao seu rato que fale. – olhava sem piscar para Elinon.

Os demais sirans riam e gritavam, provavelmente confiando demais na reputação que os hakais tinham de serem pacientes e não se ofenderem facilmente. De fato, os hakais não confundiam ofensa com agressão e, aliás, entendiam a infantilidade que há em escolher ofender-se. Afinal, ninguém pode ser ofendido se não quiser. Não que eles tivessem sangue de barata. A questão era simples: a honra não pode tocada por palavras sem honra. Além do mais, a calma é a marca dos poderosos. Na verdade, era apenas isso que mantinha os sirans em segurança nesse momento, pois apesar de toda cena que os hakais fizeram ao chegar, as ordens eram claras e não envolviam hostilidade desnecessária.

– Meça suas palavras, Ailin responde pela família Hakal. – disse Elinon, sem desviar o olhar de Ôner.

Ôner soltou um riso baixo. Mas ainda estava nervoso.

– Diga logo, sem rodeios. O que vieram fazer aqui afinal? Vocês não têm como ajudar neste empasse. – ressaltou um outro siram, ainda rindo, mas com um olhar assustado fitado no machado de Sadi.

Ôner empunhou baixo a espada.

– Essas pessoas roubaram mercadoria nossa na estrada e vamos levá-la de volta! – esbravejou Ôner, apontando a espada para uma carroça perto deles.

Elinon olhou para Ailin, que entendeu o recado.

– Como responde à acusação de ter em seu grupo um dos homens que atacaram a caravana duva? – questionou Ailin.

– Vejam só! Agora tenho que responder a insanidade desses miseráveis a uma menina que mal saiu dos peitos da mãe? – Ôner soltou uma gargalhada alta olhando em volta escondendo a indignação e raiva que se acumulava dentro de si.

Sadi, se aproximando de Ôner, sussurrou com sua voz rouca arrastando o machado pelo chão enquanto se movia: – Responda à menina.

Ôner o encarou temeroso tentando pensar em algo que pudesse dizer. Seu orgulho não era mais denso que aquele machado vivo ao chão.

– É apenas a palavra deles contra a nossa. – argumentou.

– Nenhum duva se manifesta? – gritou Ailin, olhando para o aglomerado de gente que estava atrás.

– Esse homem estava no bando que nos atacou na estrada! Nós o vimos, não há dúvidas! – alegou um dos duvas, despertando a manifestação de alguns outros que agora assentiam aos gritos. Eles apontavam para um dos homens do bando de Ôner.

– Silêncio! – Sadi deu uma pancada no chão que fez todos ali se calarem.

– Por que tanta certeza de que este é o mesmo homem da estrada? – inquiriu Ailin, com sinceras dúvidas.

– É impossível não reconhecer a voz desse homem! Peça que ele fale algo e verá! – explicou.

– Além disso, ele fede a urina de gato! – gritou alguém do meio dos duvas.

– Qual seu nome? – Ailin se aproximou com o cavalo na direção do acusado.

– Se avançar mais seu cavalo vai perder as pernas! – gritou o homem, empunhando uma espada com as duas mãos.

O homem tinha mesmo uma voz MUITO particular. Era grave como trovão e rouca. Ailin pôde sentir também um cheiro forte que vinha dele. Ôner deu passos rápidos em direção a esse homem ficando entre ele e o cavalo de Ailin. Baixou a espada com a mão e sussurrou algo em seu ouvido.

– Sua mudez está contra você, Ôner. Responda-me uma única pergunta: como pode provar que a mercadoria pertence a você? – a pergunta de Ailin fez Ôner se sentir encurralado.

Mudou rápido de estratégia e agora planejava pegar a menina de refém e assim negociar. Antes, respondeu:

– Podemos provar mostrando que os mesmos tipos de frutas e de artesanato da carroça são os que estão nas bolsas de nossos cavalos! Desça daí e olhe você mesma! – Ôner esperava que ela chegasse perto o suficiente para poder agarrá-la.

Bukie, cujo tamanho não botava medo em ninguém, pulou até o chão e foi em direção a um dos duvas, dono da carroça.

Ailin desceu do cavalo e, numa velocidade espantosa, suficiente para confundir a visão dos sirans mais próximos, sacou e lançou um punhal. A lâmina tocou levemente a lateral de uma das bolsas do cavalo que parecia ser o de Ôner, rasgando-a de fora a fora. Caíram nêsperas, morangos e mirtilos ao chão. Um dos hakais correu até a carroça e comprovou que eram as mesmas frutas. Avisou também que havia alguns objetos feitos com madeira vermelha, que não eram MUITO comuns da região.

Ôner se surpreendeu com o punhal lançado, mas não entendeu bem o que havia acontecido e fez pouco caso.

– Há outras bolsas, fique à vontade pra olhar. Vai encontrar objetos iguais aos deles. – alegou Ôner, ainda na expectativa de que Ailin se aproximasse o suficiente.

Bukie subiu em seu ombro e sussurrou algo enquanto dois sirans arrumavam as frutas em outras bolsas.

– Não é necessário. Ouça minha proposta.

Enquanto Ailin falava, Ôner bufava de raiva. Elinon observava cada detalhe e podia matá-lo no segundo em que desejasse.

– Nós compramos de seu bando as frutas pelo dobro do valor que elas têm. Isso cobrirá o prejuízo que tiveram e poderão ainda negociar as frutas que estão na carroça com os duvas. Esquecemos o mal entendido e começamos uma nova fase entres os três povos. A proposta de Ailin foi uma surpresa até para Elinon. 

Ninguém soube bem o que pensar sobre a semelhança entre os objetos na carroça dos duvas e nas bolsas dos sirans, mas ainda assim era uma oferta que parecia irrecusável. Além do mais, era evidente que o bando de Ôner estava envolvido na emboscada, embora ainda não fosse possível provar. Todo o bando – cerca de quinze sirans – se reuniu próximo de Ôner, que se virou para ouvi-los e decidir o que fazer.

A conversa entre eles demorou alguns segundos e deu tempo de Ailin ir até Elinon se explicar.

– Me desculpe, Elinon. Mas você me pediu pra pensar em algo. Se viemos aqui pra eliminar o perigo de uma matança e pra tentar fazer um acordo entre nosso povo e o dele, não consigo pensar em outra forma melhor de mostrar os benefícios de um acordo conosco do que começar com ALGUMa generosidade. Agi mal?

– Foi perfeito! Honestamente, ainda não tinha conseguido pensar em nenhuma solução. Estava tenso desde o início com o tom e o sotaque desse infeliz. – respondeu baixinho, sorrindo e sem descuidar de Ôner.

– Está feito! – bradou Ôner, mostrando um ar de desânimo, mas extremamente aliviado.

Ailin foi até Ôner e estendeu a mão. O acordo devia ser selado com demonstração pública de honra das duas partes entre si. O líder siram já havia sido convencido pelos demais a desistir da empreitada contra os duvas e aceitar a proposta, mas os sirans eram um povo de cultura grosseira, que não aceitava as mulheres como iguais aos homens em dignidade e honra. Ailin ter lhes dirigido a palavra desde o início já era vergonhoso o suficiente para esgotar sua cota de humilhação. Fechar um acordo de honra com uma menina era repugnante para seu povo, que não havia agido com maior desrespeito até então apenas por medo. Selar um acordo de paz e honradez apertando a mão de uma criança diante de outros do seu povo era a situação mais embaraçosa que um siram poderia pensar. Todos do bando se constrangeram, mas ninguém deu nenhum pio sequer.

Ôner, com o orgulho extremamente ferido, foi levantando a mão trêmula.

Um homem, duva, que sabia de todos esses detalhes, começou a rir com deboche até precisar levar uma das mãos à barriga, mas o fez fora do campo de visão de Ailin, que não notou nada.

Ailin esperava com a mão estendida sorrindo para Ôner, que começou tremer de raiva e, em seguida, bufar. A risada do duva feria seu orgulho frágil. E não era de se espantar, pois, como alguém já disse, “a sabedoria do homem lhe dá paciência; sua glória é ignorar as ofensas”, e sabedoria era algo que Ôner sem dúvida não tinha.

Seu olhar tornou-se aterrorizador, como se quisesse devorá-la de uma vez.

– Não preciso do seu favor. – Ôner bateu na mão de Ailin sem MUITA força. Só a empurrou de sua frente numa velocidade rápida, mas que não parecesse especificamente uma agressão. Temia que ao invés de um acordo, ganhasse inimigos novos e poderosos, mas não podia evitar o deboche sofrido.

Aqueles sirans nunca tinham visto hakais lutando. Só sabiam da fama e, por mais que Sadi e os outros três hakais estivessem portando armas medonhas que pareciam extensões de si – seus próprios hakas – pensavam neles ainda como homens comuns, enquanto o que temiam na realidade era uma possível, mas incerta, retaliação do clã Hakal caso os matassem ali.

Depois do tapa na mão, Ailin olhou para Elinon, que deu com os ombros admirado.

– Então, não temos um acordo? – perguntou confusa.

– Não farei acordo com você e é melhor não me dirigir mais a palavra. – respondeu com voz baixa e sombria, já de costas.

Ôner e seus homens subiram nos cavalos quietos e se preparavam para partir. Haviam curiosamente desistido da investida. Ailin foi até Elinon sem entender nada e pediu que a explicasse. O mestre explicou o que sabia sobre eles, assim como sobre a provocação infantil que ela não tinha visto.

– Então, não tenho honra suficiente pra apertar a mão de um ser asqueroso como ele? – perguntou indignada. – Como será que eles tratam suas mães e esposas?

Elinon ficou sem jeito, mas riu da situação.

Ailin não ficou satisfeita. Ao contrário, sabia que deixar algo tão inacabado daquela maneira seria o mesmo que adiar um problema maior.

Os sirans perderam um bom negócio ali no momento e um ótimo negócio a longo prazo por não aceitarem uma política de honra, COISA que sequer lhes parecia ter ALGUM valor. O orgulho havia usurpado os usurpadores.

– Nossa missão falhou?

– Não! Fizemos o que fomos enviados a fazer: cumprir os termos de nossa aliança, impedir mortes desnecessárias e tentar ALGUM acordo com os sirans. Você foi ótima, se saiu MUITO bem! Missão cumprida!

– Obrigada!

Quando tudo parecia já ter passado, eles ouviram ao longe Ôner gritar que o assunto não estava resolvido. A exclamação foi seguida de urros dos outros sirans.

Uma mulher ao lado de Ailin, com um bebê no colo, não pôde deixar de comentar:

– Vocês vão deixar as COISAs assim? Você sabe o que vai acontecer quando eles voltarem?

Ailin entendeu perfeitamente o que precisava fazer e perguntou a Elinon:

– Agora será que eu posso fazer o que acho que devo fazer? – disse com a voz trêmula, olhando Elinon com a fronte abaixada.

Como Elinon sabia que aquele bando não representava os líderes sirans, ele assentiu. Ailin subiu no cavalo e saiu correndo na direção do bando. Os cinco hakais a seguiram, mas sob ordem de Elinon mantiveram uma distância razoável dela para assistir o que se sucederia. Todos estavam curiosos.

A ideia de Ailin era simples. Ela sabia que os sirans precisavam de um bom motivo para não pensar mais em dar problemas.

– Pare aí! – esbravejou Ailin.

Ôner deu um assovio parando imediatamente o bando. Ailin desceu do cavalo sem MUITA pressa e sem fazer contato visual, enquanto Bukie foi enviado por ela a dizer aos outros hakais que mantivessem posição distante. Ela foi de cabeça baixa até Ôner, que estava ainda mais cheio de raiva, prestes a explodir em fúria para cima da menina.

– Quer dizer que o líder dos macacos bárbaros baixou a espada, se calou, tremeu, bufou e teve que dar meia volta de Duvala por causa de uma menina inofensiva?

Ailin não fez contato visual.

QUASE todos do bando sacaram suas espadas e desceram de seus cavalos. Ôner respirou fundo e não precisava esperar mais nada para desferir um golpe certeiro na cabeça da menina.

– Vocês não têm honra, mas em nome da minha, eu prometo que nenhum hakal virá em meu favor, nem meu clã será envolvido no que acontecer aqui agora.

Ôner se satisfez com o que ela disse e a atacou subitamente com um golpe na diagonal que não teve a menor chance de acertar, tamanha foi a velocidade com que ela se afastou para trás.

– Sua mãe tem ALGUMa honra? E sua avó? E sua mulher? – provocou. – Quem foi que tirou a honra das mulheres da sua casa? Foi você mesmo? – isso foi afrontoso demais, ela mesma sentiu-se constrangida com o insulto das insinuantes perguntas.

– Ahhhh!

Ôner saltou sobre ela enquanto outros do bando vinham em sua direção.

Os golpes dele não estavam nem perto de alcançar aquela pequena menina. Eram fortes, mas desengonçados, sem treino, nem concentração ou precisão ALGUMa. Era pura brutalidade, nenhuma destreza, só ódio e estupidez. Mal percebia que podia ser atingido por ela após qualquer um daqueles ataques.

Elinon ficou assustado, pois não conseguia ver se Bukie já havia chegado até Ailin. Ainda assim, honrou-a mantendo a posição.

Já os demais sirans foram todos para cima dela com suas espadas, até que um dos golpes desajustados tocou o braço de Ailin, fazendo um pequeno corte. Atenta ao perigo, Ailin deu um salto já com Bukie nos pescoço e lhes apresentou a Vesek Akruel.

O espetáculo visual era aterrorizante. Se até para os próprios hakais essa visão trazia receio, para os sirans aquilo era como um demônio devorador de espíritos vindo em sua direção. Acertá-la não parecia possível; fugir, tampouco. Ailin corria, saltava e girava sobre eles, golpeando-os com força, mas sem causar ferimentos letais. Elinon e os outros hakais já haviam esquecido do motivo que os levara até lá e agora admiravam a maior arma de combate do clã em ação, apesar de ainda MUITO inferior a todos os Valentes do clã.

Após ferir todos os sirans e senti-los transpirando humilhação, Bukie soltou um gemido estridente que causou calafrios até mesmo nos hakais.

Ailin esperou que eles conseguissem subir em seus cavalos e fugissem, para só então se separar de Bukie e voltar até perto de Elinon.

– Incrível! Que bom que a menininha é do nosso time! – brincou Sadi, empolgado e assustado.

Os hakais voltaram à vila silenciosos, mas entusiasmados, com exceção de Ailin que estava só aliviada por ter dado uma lição naqueles homens e não tinha total noção do que fizera e do espanto que aquilo causava.

Mesmo as emoções mais fortes eram extremamente passageiras. Ela havia trilhado um caminho intenso depois de seu hakiba, mas nos poucos momentos que não estava treinando, ou cansada demais para pensar, só conseguia pensar naquele dia: o dia que havia sumido de suas lembranças. Algo queimava em seu peito e sentia constantemente o desejo ardente de voltar até o Vale das Preces, mas não sabia o motivo, não sabia o que iria fazer lá ou, aliás, o que é que tanto precisava fazer lá novamente. E, assim como foi com Overim e QoNoxa no caminho longo de volta para casa, os companheiros de Ailin conversavam, riam e faziam previsões para o futuro do clã, enquanto para Ailin era um caminho de silêncio e solidão.

Ao chegarem na vila, os valentes se dirigiram à sala do conselho, como fazia todo grupo que voltava de uma missão, mas Ailin foi dispensada antes, com a desculpa do horário já avançado. Elinon havia decidido contar cada detalhe e sua opinião sobre tudo que viu aos demais mestres do conselho sem a presença da menina.

Ailin foi para casa andando lentamente com Bukie. A sensação de que lhe faltava algo era MUITO forte e a cada passo em direção oposta ao vale parecia pedir uma espiadela, mesmo que nada no horizonte mudasse. E cada espiada era um novo convite. Os anos longe do Silêncio apenas trouxeram mais ocupações aos seus dias, mas não puderam trazer quietude ao coração.

(chegamos no texto do início /// terminar aqui fazendo referência à lua?).

A volta ao Silêncio

Ao invés do tempo ter decididamente afastado Overim e Ailin, eles pareciam cada vez mais perto de tomar uma atitude e seguir o chamado dentro do peito.

Ailin sabia aonde ir e olhava constantemente em direção ao vale esperando que o grito aflito entalado na garganta fosse apenas uma necessidade infantil de sanar a curiosidade que mantinha desde que foi até lá com Bukie na última vez. Para Overim era diferente, pois ele não compreendia que aquela ansiedade prestes a enlouquecê-lo tinha relação com sua falta de memória //// mas qonoxa não contou???. Os fatos para ele eram mais confusos.

Tudo havia melhorado na vida de Overim, mas a escuridão em sua memória era como um espinho que, por menor que fosse, o incomodaria até que fosse retirado. Como da primeira vez, ele só precisava de uma oportunidade e largaria tudo para ir na direção daquilo que lhe estava impedindo de saborear as conquistas diárias.

O tempo havia chegado. Houve um momento oportuno em QeMua. No dia da celebração pela lua vermelha, Overim disse ter se desgastado treinando exaustivamente na Garganta de Maltam – desfiladeiro a meio dia de cavalo da vila – e não festejaria. Seu pai não se importou e QoNoxa não ficou sabendo.

Overim passara treinando no desfiladeiro desde o dia anterior, num treinamento rigoroso, mas não estava desgastado como disse, pois já havia adquirido mais resistência e força física. O descanso que ele queria era para a mente e festejar talvez o tivesse ajudado nos outros anos, mas não mais. Via as festas agora como uma maneira tola e fingida de distrair a mente. Ele não tinha mais aquela disposição para desviar sua mente em COISAs tão superficiais.

Ficar parado breves minutos na quietude de sua casa disparou algo em si que talvez seu cérebro, ou Jio, tenha relacionado com o tempo fascinante passado ao lado de Ailin. Algo havia tomado suas memórias, mas não pôde esconder de seu corpo as melhores sensações que já havia sentido. Restava ainda aquele desejo por algo que não sabia mais como era.

– É agora! – pensou. Precisava extravasar sua ansiedade, encarar aquele percurso feito antes do ataque das hienas e investigar a perda de memória. Não havia momento melhor do que num dia em que a vila toda estaria despreocupada e passaria a noite inteira bebendo, uma manhã inteira dormindo e uma tarde toda lamentando as dores de cabeça.

Saltou da cama e foi correndo até a casa de QoNoxa. Lá, pôde pegar um dos cavalos que sempre usava. Foi fácil: não viu ninguém perto da casa, só pegou o cavalo e saiu. Teve pressa, mas não sabia exatamente para onde ir, MUITO menos o que procurar. Foi na mesma direção da outra vez e esperava ter a sorte de ser bem guiado por aquela COISA queimando dentro de si.

Saiu da vila sem nenhum receio e cavalgando rápido, pois pretendia aproveitar bem o tempo que tinha antes que alguém se preocupasse com sua falta. Seus pais não seriam problema, já que pela manhã imaginariam que ele estivesse com QoNoxa. O problema maior era o próprio QoNoxa, mas contava com o bom senso do velho quando fosse buscá-lo pela manhã, levando em conta que também passaria a celebração toda sem vê-lo por lá.

Para Overim, tão maior do que antes, o caminho até o monumento pareceu mais rápido do que deveria ser. MUITAs COISAs passavam em sua cabeça e mal prestava atenção no caminho que estava fazendo. Em um ponto, precisou parar porque não podia atravessar a cavalo o rio. Teve que andar mais um pouco, prestando BASTANTE atenção para não passar da trilha do outro lado – que era QUASE irrastreável por conta do tempo em desuso. Achou um ponto raso no rio, atravessou e, alguns minutos depois, encontrou a antiga trilha que, da outra vez, só havia usado na volta para casa.

Na primeira vez, ele não havia usado nenhuma referência a partir do rio, só andou em qualquer direção até chegar à montanha. Dessa vez, estava indo até lá consciente, e quanto mais se aproximava, mais ficava atento. (mas ele não sabia dos hakais?????)

A trilha o levou até a estrada principal dos hakais. Ele precisava ser cauteloso. Diferente de todo o percurso anterior, ali ele sabia com certeza que não estava abandonado; pelo contrário, os sinais na estrada mostravam marcas MUITO recentes. Era preciso MUITA atenção.

Foi andando lentamente até perceber que, ao longe do pé da montanha, a estrada sumia para dentro do vale. Viu que, para seguir adiante pela estrada, era necessário subir a encosta da montanha e atravessar uma ponte até a outra montanha. Aquele parecia o trajeto mais óbvio, mas ele certamente não teria subido até lá da outra vez. Afinal, tratava-se do Planalto Hakal. Ele não pensou duas vezes, decidiu mudar o percurso indo até o vale, esperando que pudesse atravessá-lo.

Quando voltou ao cavalo, escutou o som distante de uma conversa que parecia vir do lado oposto da estrada vindo em sua direção. Aquilo apressou as COISAs. Overim montou o cavalo e foi em direção à entrada do vale, e sabia que teria que adentrar MUITO o lugar até chegar a um ponto seguro para não ser notado. Então, atravessou rapidamente toda a dimensão do vale até o outro lado e parou. Entretanto, o mato estava alto e havia espinhos que inquietavam o cavalo. Foi preciso adentrar ainda mais, pelo menos o quanto acreditasse ser suficiente para não ser visto por quem usasse a ponte.

Não prestou atenção nos primeiros metros que passou, mas depois de alguns instantes parado, sentiu um cheiro forte de cominho. Não é uma planta comum aos QaFuga, mas aquele cheiro ele sabia já ter sentido e, por um momento, pensou ter sido nos condimentos do velho QoNoxa. Como não tinha como sair dali, esperou o barulho das conversas passar, à medida que tentava se lembrar do nome de cada iguaria que o curandeiro lhe havia ensinado.

(este é o ponto crucial pra saber o que fazer e pular o que já está no início do capítulo 1) Enquanto isso, Overim não podia imaginar que, na entrada do planalto, olhando para a entrada do vale com uma ardente sensação que não podia explicar, estava Ailin. Mais bela, mais forte, mais responsável e ainda menina.

[…]

(parágrafo arrumado!) Foi assim que Ailin pôde ver movimentos que imaginou serem de algum cavalo que tivesse escapado. Varreu o entorno com seus olhos na expectativa de que alguém pudesse avisar um dos adestradores para descer e buscar o animal, mas naquele horário não havia movimento. Contudo, naquela hora silenciosa, nenhum sinal de atividade se revelava. A tentação de descer ela mesma foi logo embora quando lhe ocorreu que deixar o posto vazio por um motivo desses poderia se tornar mais uma grande dor de cabeça.

Enquanto decidia se arriscava ou não descer, viu que alguns moradores da vila se aproximavam da ponte. Seria mais fácil esperá-los e ver se um deles podia confirmar se era um cavalo lá embaixo. Estavam ainda na entrada da ponte quanto ela gritou do outro lado:

– Oi! – acenava com as mãos. – Aquilo lá embaixo é um cavalo?

De longe, eles não entenderam. Chegando mais perto, ela insistiu:

– Vocês viram um cavalo lá embaixo?

– Eu não vi nada lá, alguém viu? – respondeu um dos homens que trazia feno no lombo de uma jumenta.

Ela explicou a eles, mas ninguém tinha visto.

Assim que o barulho se afastou junto com os homens, Ailin escutou um som que pensou ser de um cavalo novamente; então, se inclinou um pouco mais para tentar não perder nada de vista. Ela se assustou quando viu que havia mesmo um cavalo; porém, com uma pessoa em cima. Aquilo não estava certo.

Era difícil enxergar o vale daquela distância dependendo da iluminação da lua. Acordou Bukie jogando-o sem a delicadeza de sempre para cima de seu ombro e correu em direção ao atalho que não usava fazia muito tempo.

Lá embaixo estava Overim, tentando dar a volta por dentro do vale para não precisar atravessar a entrada novamente até a estrada. Ele estava já no meio do caminho, bem para dentro do vale, quando ouviu algo vindo rápido pela montanha em sua direção. Conseguia ver uma poeira se levantando na encosta do monte, o que o fez correr para dentro do vale. Havia tempo que Overim não temia qualquer coisa, mas não queria ter problemas, ou sua aventura se tornaria um infortúnio.

Overim não sabia nada sobre o vale, tampouco que terminava num beco sem saída. Continuou correndo para dentro. O caminho era tortuoso, difícil para o cavalo, mas não podia deixá-lo para trás e teve que reduzir a velocidade. Avançou até que, de repente, a iluminação mudou.

Uma sensação começou tomá-lo, como se pressentisse que não corria mais riscos. À medida que avançava, sentia-se relaxado, com os pensamentos menos embaralhados ou confusos. Percebeu que ainda estava sendo perseguido; aproveitou a iluminação e o fato de que o terreno se tornara regular para prosseguir com maior velocidade. Algo mais aconteceu: um zumbido lhe invadiu os ouvidos e parecia cobrir todo o restante dos sons.

Ao perceber que, ao longe, o caminho acabaria, desceu do cavalo e correu em direção à cachoeira, que desguava num tanque sem aparente escoação. Foi lá que se jogou.

O zumbido desapareceu, e com ele, todos os outros sons. Assustado, emergiu e deu de cara com Bukie aos pés de Ailin.

A aparência jovial foi um grande alívio para os dois e contribuiu para não se sentirem tão ameaçados um pelo outro. A primeira reação de Overim foi tentar se explicar, mas quando tentou falar, ficou assustado e agitado: não emitia som algum. Saiu da água rapidamente colocando as mãos no pescoço e nos ouvidos, o que assustou Ailin, que tentou gritar para que ficasse parado, mas também foi atortoada com o mesmo problema.

Bukie, percebendo sua agitação, se lançou sobre ela tentando a conexão. Mas havia algo de errado além da completa falta de som; a conexão não foi possível. Foi como se nunca tivessem feito aquilo ou como se simplesmente conectar-se ali não fizesse sentido. O pânico também fez Overim tentar entrar em Modo Nai, mas ao tentar despertar Jio, viu que ele parecia não estar mais de prontidão. Aliás, não parecia sequer estar ali.

Mas o desespero durou pouco. Algo fantástico aconteceu em seguida. Os dois pararam de se debater ao receberem, em alguns instantes, todas as lembranças que haviam perdido.

Olhavam-se fitados, pasmos, enquanto suas mentes assimilavam o que estava acontecendo. Até que uma paz os invadiu e um sorriso meigo nasceu no rosto de Ailin, enquanto o riso tímido, que não se via por MUITO tempo na face de Overim, também começava a se mostrar.

Como da outra vez, Ailin tentou perguntar algo a Overim, que não entendeu bem e respondeu algo que Ailin também não teve certeza. Os dois riram de si mesmos alguns segundos até ela abraçá-lo forte.

Tudo então fez sentido! Toda ansiedade, aflição, angústia… a solidão; toda dor no íntimo, o ardor vigoroso que desejava o desconhecido, o desejo que queimava dentro do peito e os impulsionava ao encontro. As lembranças trouxeram de imediato um carinho indescritível, sem a malícia ou receio; só a necessidade de constantemente olhar no olho, sentir o cheiro suave da pele, o calor da mão, a cumplicidade, a quietude da entrega.

Tanta COISA havia mudado, tanto tempo havia ficado para trás. Por tanto tempo a alegria os havia deixado, dando lugar a meras boas sensações diárias que não permaneciam, que não eram suficientes. Mas agora estavam juntos novamente, as lembranças voltaram e, com elas, a alegria.

Bukie ficou atônito com tanta COISA estranha que não entendia acontecendo ao mesmo tempo. E, em meio àquela felicidade toda, foi se enfiando entre eles e se enrolou na perna de Ailin. 

Ailin e Overim ainda tentavam assimilar tudo aquilo – a perda de memória, as sensações, as lembranças, as mudanças, a felicidade – e enquanto se olhavam pensando nisso, se deram conta de que talvez se saíssem novamente daquele lugar as lembranças iriam embora outra vez.

O silêncio não era apenas no local, mas sobre o local. O mesmo silêncio que os calava no beco do vale, os calava fora dele, tirando suas memórias de lá; suas melhores memórias.

Overim segurou firme os ombros de Ailin fazendo-a olhar firmemente para ele para que pudesse contar o que havia acontecido. Sabia das dificuldades, já que não podia fazê-la ouvir sua voz. Assim que começou explicar, ela teve dificuldade em entender os movimentos de seus lábios, mas, de ALGUMa forma, podia compreendê-lo.

Ailin esperou até que ele terminasse e fez o mesmo, explicando que havia passado por algo MUITO semelhante – perda de memória, ansiedade, etc. Contou também que havia passado por um treinamento MUITO duro depois daquele dia e que estava mais forte. Ela sabia que, de ALGUMa forma, ter ido àquele lugar foi o que tornou tudo isso possível. A identificação entre eles já tinha sido grande no primeiro encontro, mas dessa vez a sintonia era descomunal. Nem mesmo um lugar tão mágico como aquele poderia ser responsável por tanta harmonia entre dois seres. 

Overim entendia bem o que Ailin tentava dizer, mas também notava que seus lábios pareciam não combinar com aquilo que ela, sem dúvida, estaria comunicando. Ele a contou sobre isso e ela respondeu que também percebia. Então, Overim deduziu o óbvio: seus idiomas eram diferentes.

O Silêncio impedia completamente todo e qualquer som, mas facilitava e acelerava os pensamentos, desenvolvia os reflexos, instintos e sentidos, ampliando também sentimentos e sensações. Lá, eles podiam se sentir mais inteligentes e mais ágeis. E de fato estavam, mas não era só isso. A cumplicidade e harmonia entre eles, somada a tantos benefícios do lugar, concedia-lhes compreensão entre si parecida com a união dela com Bukie e dele com Jio. Era realmete um tipo de intuição apuradíssima.

Eles se sentaram à beira da cachoeira, como da outra vez, e olhavam sua imagem no espelho d’água. Para ele, aquela imagem era tão forte que não pôde se conter e chorou emocionado, profundamente tocado ao entender o significado daquela imagem que tantas e tantas vezes veio à sua mente sem que pudesse compreender. Overim sentiu que era necessário contar logo a ela de que povo ele era. Enquanto Overim respirava fundo para contar, Ailin se adiantou e contou que ela era uma hakal, temendo o mesmo que ele. Foi um choque.

Enquanto ele olhava para Bukie, inúmeras histórias lhe vinham rapidamente à mente.

O último confronto entre os clãs tinha acontecido havia MUITO tempo. Ele nunca tinha visto um hakal em toda a sua vida. Até então, tinha visto apenas desenhos dos hakais unidos aos seus hakas, o que deformava-os BASTANTE, ao ponto dele não ter associado as imagens a Bukie.

Overim ficou de pé e deu um passo atrás com os olhos arregalados. Ele não pôde conter as lágrimas. Não temia Ailin, tampouco temia perder sua simpatia, mas sabia o quão difícil seria que essa amizade persistisse fora do Silêncio e sob o conhecimento de suas famílias e clãs.

Ailin se levantou rapidamente e, colocando as mãos em seus ombros, perguntou insistentemente o que o afligia. Olhar para o sofrimento silencioso de Overim também lhe causava tristeza real, apesar de não saber o motivo. Até que ele, com as mãos no rosto dela e um olhar profundo, sem precisar mover os lábios, a fez entender: – Eu sou um sanguessuga. – os QaFuga detestavam a forma pejorativa como os hakais os chamavam, por isso, escolheu esse exato termo.

Seus olhos também se encheram d’água e inúmeros pensamentos lhe vieram à mente. Pôde entender perfeitamente o breve choro de profunda significância no rosto de Overim.

Ela o abraçou, como que perdoando toda dor que seu povo a havia feito padecer. Ele imediatamente entendeu e compartilhou daquela dor que dela jorrava, agora sendo extirpada com força e violência para fora naquele abraço apertado. Ao olhar nos olhos dela, pôde ver que se tratava da morte de seus pais. 

Quão terrível conhecimento adquirira sobre a menina! Chorou ao repensar naquele abraço e o ódio sendo posto para fora sabendo agora do que carregava em si o sangue dos culpados. Apenas uma das incontáveis histórias tristes entre hakais e QaFuga.

O choro se converteu em admiração por tamanho sofrimento e amargura abandonados tão às pressas em nome do que havia entre eles. Ailin enxugou as lágrimas de Overim, que a abraço perto da margem do tanque criado pela cachoeira. Viu que estava MUITO perto do tanque, mas não quis se afastar. Permitiu-se ser levado pelo embalo e cair na água com ela. Lá permaneceram por vários minutos.

O Silêncio passava uma sensação constante da melhor hora do dia, ao fim da tarde, num clima ameno entre o frio e o calor, que os fez esquecer que já era noite quando ali chegaram. Aproveitaram cada segundo, contaram suas histórias, seus segredos, suas conquistas… e o tempo foi passando.

Bukie também estava contagiado com a felicidade dos dois e sentia também os efeitos do local. Ao invés de se entediar, tentava entender, com sua mente não MUITO complexa, qual era a probabilidade de tudo aquilo ter se repetido. Ele levou essa questão a Ailin e o casal ponderou.

Teria sido apenas mera coincidência terem ido ao mesmo lugar no mesmo dia depois de tanto tempo? O que fazer se a memória desaparecesse também nessa segunda vez? Como reverter o quadro de amnésia? Como eles poderiam aproveitar a velocidade e fluência dos pensamentos e ideias tão acelerados? Outra COISA: que história contariam por terem sumido?

Horas já haviam se passado e eles sabiam que partir era necessário. Antes, era preciso encontrar uma forma para que se lembrassem um do outro lá fora, a fim de poderem voltar a se ver novamente fora dali.

Com uma pedra, Overim começou imediatamente a escrever tudo que podia no pequeno espaço da parte interna do látego na sela de seu cavalo. Enquanto isso, Ailin encontrou um pedaço de madeira e fez o mesmo. Cada um escreveu o que achava ser o suficiente para que se lembrassem e pudessem se encontrar no local que já haviam escolhido: o monumento ao acsi, na margem do rio Igon Sanza (nome que o rio recebia apenas dos hakais e significava “peixes amargos”).

Terminando de escrever, Overim foi arrumando a sela enquanto Ailin guardava a madeira. Eles se abraçaram tanto quanto puderam. Mas, infelizmente, chegara a hora da despedida. Overim deu um abraço diferente em Ailin; um abraço que significou MUITA COISA para ambos. A felicidade que sentiam não deixou que fossem sucumbidos pelo medo do partir. Pelo contrário, a esperança do reencontro assegurava o longo ânimo que os acompanharia.

Bukie teve que ser um pouco desagradável e puxar Ailin pela perna. Ela sabia que precisava sair antes de Overim para que não corresse o risco de ser visto por ALGUM outro hakal que porventura estivesse em procura dela.

Ailin jogou Bukie nos ombros e saiu correndo de volta ao seu posto. Demorou um pouco para subir, pois precisava de algo para acompanhar o argumento que havia plenejado. Ao chegar à ponte, pôde avistar Moren cobrindo seu posto.

– Qual sua explicação? – perguntou a ela, com uma mão na cintura e outra empunhando uma lança, sua marca registrada.

– Você viu o cavalo, não é? Eu QUASE o peguei! – disse Ailin, tentando dissuadi-lo.

– Cavalo? Que cavalo? – coçou a cabeça, surpreso pela desculpa. – Bem, sabemos que não é esse o motivo, pois o relatório do seu sumiço chegou até mim faz horas.

– Me desculpe! É que pensei ter visto alguém perambulando lá embaixo e desci correndo pela encosta pra confirmar, mas era só um cavalo. Pensei que pudesse ter fugido daqui porque tinha até marcas de selagem. No começo, tentei trazê-lo pra cima, mas não era um cavalo bem domado e desisti. Como estava lá embaixo, aproveitei pra colher amoras. Ah! Aproveitei e colhi cominho também. – disse sorrindo, enfiando a mão num saco onde tinha posto amoras e cominho, onde também estava a tábua escrita.

– Quer dizer que passou horas atrás de um cavalo e pegando amoras? – indagou Moren, rindo desconfiado.

– Fiz outras COISAs enquanto estava lá embaixo, mas duvido que queira saber detalhes sobre minhas necessidades. Acho que fiquei com dor de barriga por causa das amoras. – disse Ailin, erguendo as sobrancelhas e fazendo uma careta insinuante pressionando os lábios e arregalando os olhos.

Moren era o mestre mais interessado em acalmar o povo e atenuar todo tipo de problema. Era essa a sua principal característica; era como ele procedia em tudo. Teve receio da atitude de Ailin, mas não quis se aprofundar nas falhas daquela desculpa.

– Sabe que o que fez foi errado, não é? Sabe que preciso relatar, não é mesmo? Cobrir seu posto me fez parar outras atividades que não sei quando e como arrumarei tempo pra botar em ordem.

– Entendo!

– Está com fome? Cansada?

– Não, senhor!

– Então, volte ao seu posto, cubra o horário da ronda seguinte e se apresente na sala do conselho antes do meu desjejum. – disse já dando as costas, indo em direção à vila.

– Tudo bem! Boa noite! – respirou aliviada.

Não era bem o que Ailin esperava, mas não foi tão ruim. Esperou que ele tomasse certa distância e lançou uma pedra pelo desfiladeiro, dando sinal a Overim que partisse em segurança. Em seguida, pegou a tábua do saco a fim de limpá-la da sujeira das amoras. Não conseguia ler nada por causa da falta de iluminação. Agora, ela precisava era descansar, isso se ninguém a visse dormindo no posto.

Enquanto isso, Overim saiu de mansinho com seu cavalo rente à montanha que dava acesso do chão à ponte. Não podia assoviar, nem fazer qualquer outro sinal e sabia disso. Se policiou ao máximo para sua presença não ser notada.

O sorriso intenso parecia ultrapassar os limites da face. Foi a cavalgada mais emocionante de sua vida. Fez o caminho de volta sem nenhum contratempo e conseguiu chegar a QeMua ao raiar do dia. Deixou o cavalo na casa de QoNoxa e foi em silêncio para casa. O instinto de menino o fez crer que seria mais inteligente entrar discretamente pela janela de seu quarto.

– Bom dia, foguinho! – disse QoNoxa, que o estava esperando dentro de seu quarto.

– Que susto! – disse baixinho. – Eu não sou foguinho! – era o apelido que mais detestava.

– Pegue comida e vamos treinar. Hoje você vai a pé, o cavalo deve estar cansado. Esteja na colina antes de mim, senão pode ser que não consiga me avistar no horizonte. – deu um sorriso e se foi.

QoNoxa estava insinuando que ele estava sem energia e, se não estivesse na colina quando o velho passasse por lá, não teria pique para acompanhar o resto do percurso até o lugar escolhido para o treino do dia. Ele não teve nenhum tempo de descanso, mas não precisava, pois não se sentia cansado ou sem energia. Só estava um pouco zonzo.

A rotina havia recomeçado.

De volta aos treinos

Overim saiu apressado em direção à colina, mas tinha tempo suficiente, já que QoNoxa fora pegar o cavalo em casa. No percurso, se deu conta de que não tinha ideia de onde havia ido ou como tinha chegado até a vila. Desta vez, o lapso na memória foi maior e mais rápido, fazendo Overim esquecer de tudo que passou já no percurso de lá até o rio.

O que ele sabia era que tinha saído da vila atrás de resolver justamente aquelas questões. Tinha até a imagem do monumento ao acsi na mente, mas a partir dali sentia um desgaste ao tentar se lembrar e ficava rapidamente enjoado. A ansiedade tomou conta de si e sentiu medo. Precisava se lembrar do que havia acontecido. Ele insistiu o quanto pôde, tentando pensar em seus próximos passos depois do rio. 

Quando QoNoxa chegou à colina, Overim estava desmaiado caído na grama. Colocou o menino sobre o cavalo e o levou até o rio. O treinamento seria ali, e não por coincidência. QoNoxa estava em casa no dia anterior quando Overim pegou seu cavalo às escondidas, mas ele se escondeu quando o viu e lançou um feitiço no cavalo para enxergar através de seus olhos quando voltasse. Ao sair da casa de Overim pela manhã, voltou para casa antes de ir para colina e foi até o cavalo com o feitiço para ler as imagens da viagem em sua mente. Ficou espantado ao ver que a memória do cavalo também havia sumido e a escuridão começava logo após a imagem do rio.

Pareceu sensato começar sua investigação pelo próprio rio, que ele sabia ter MUITOs mistérios. Para o sábio QoNoxa, eram apenas mais segredos já bem revelados que ele mantinha consigo. 

Aquele rio existia havia poucas décadas. Poucos homens vivos se lembravam do seu verdadeiro significado. Todos sabiam que aquela água tinha sabor levemente amargo, mas só alguns sabiam que era venenosa a qualquer homem que não tivesse em seu sangue uma QaNai, podendo matar se fosse ingerida grande quantidade. Os QaFuga nem sequer tinham um nome para aquele rio que, na verdade, pois antigamente nem sequer era visto como um rio.

Tratava-se de um desvio feito por um acsi que ajudou o povo QaFuga na Guerra das Noites. Foi criado com propósito de demarcar e proteger todo o território de QeMua. Naqueles dias, o território já não era mais protegido por aquele recurso, que aparentemente só funcionava quando um acsi o ativava, o que não acontecia fazia MUITO tempo. Teoricamente, como o mecanismo do rio não era apenas místico, mas tecnológico, podia ser acionado por qualquer um que tivesse energia e força suficientes.

O monumento ao acsi Zarath à beira do rio aparentava ser apenas uma grande escultura de uma rocha especial. Porém, o entalhe não era um mero memorial, mas um disfarce para a arma que usa a maior força de contenção do Universo, aquela que aquece o centro do planeta, criada pelo próprio Nuhat, manipulada com essa ferramenta de forma magnífica pela genialidade do acsi.

Era um monumento grande, como uma espécie de pequeno templo, mas que não se podia adentrar, pois era maciço. Em seu centro, indo da base visível até o topo, foi esculpida a imagem de Zarath com o tamanho que ele costumava a se apresentar – aproximadamente três metros de altura – com uma argola em cada extremidade.

MUITO tempo atrás, Zarath construiu, com ajuda de outros de sua espécie, um método defensivo completamente intransponível. O mecanismo foi projetado e executado de forma magistral. Primeiro, Zarath fendeu o chão até as profundezas do planeta e enterrou uma estaca gigantesca, impedindo que o magma jorrasse por ali. A estaca gigantesca tinha sua extremidade tocando o limite cônico de uma câmara de magma, que se formou justamente com a investida brutal do acsi em direção às profundezas da Terra. Por fora, tudo o que se via era o monumento esculpido: a estátua, o templo e as argolas. O monumento era apenas a ponta externa da estaca fincada fundo no chão.

Quando QoNoxa chegou até o rio, tirou Overim do cavalo e notou que ele estava apenas dormindo. Ele preferiu esperar que ele acordasse por conta própria para só então explicar sobre o monumento e o treino.

– Que aconteceu? – perguntou assustado assim que acordou.

– Você não estava MUITO disposto quando cheguei na colina – respondeu, com um olhar irônico.

– Minha cabeça está doendo. Eu desmaiei, não foi?

– Fique calmo. – interrompeu. – Faça como tem feito até agora, não deixe isso te abater. – disse com a mão na cabeça do menino.

– Como posso ficar calmo? Tenho certeza que saí para ALGUM lugar longe daqui, pois era nisso que eu pensava antes de pegar o cavalo, mas só me lembro de ter vindo até aqui! – Overim, pasmo, esfregava as mãos na cabeça e no rosto. – Perdi mais memória do que da outra vez!

– Filho, o cavalo também perdeu a memória. Então…

QoNoxa esfregava forte o dente da hiena em seu pescoço com os dedos. Parecia um pouco tenso, mas logo tratou de disfarçar.

– Como sabe? – interrompeu.

– Ah, nem pergunte. Mas ele perdeu. Significa que o problema não é com você. Pelo menos disso agora temos certeza! – disse QoNoxa, virando-se e indo até a argola à direita da estátua.

– Por que estamos aqui?

– Pois é! Já perdemos tempo demais com a sua soneca. – virou-se para Overim rindo e fez sinal com a mão – Venha cá!

O velho pegou Overim pelo braço e o fez tocar a argola.

– Agora, estique o outro braço e pegue a outra. – apontando para a argola do outro lado.

Mesmo para um homem adulto, era necessário abrir bem os braços para segurar as duas argolas. Overim, com o rosto encostado na rocha, mal as tocava com os dedos. De jeito nenhum conseguiria segurá-las com força.

– Não dá! Só se eu crescer mais!

– Não importa. Encostar é o suficiente. Consegue sentir a energia?

 – Só sinto que a rocha é mais quente que as argolas. É isso? – a rocha (a estaca) estava sempre numa temperatura MUITO mais alta, mas não era isso.

– Não, não é isso. Mas não se incomode, não por enquanto, porque esse é nosso primeiro objetivo vindo até aqui: fazer você ganhar uma sensibilidade acima dos outros homens; uma sensibilidade acima da nossa natureza. E eu vou mostrar como.

Não era um assunto que QoNoxa saberia explicar MUITO bem, mas ele com certeza percebia que os sentidos naturais dos homens eram MUITO limitados, ainda mais se comparando aos de outros animais. Nem um dos sentidos que o homem possui é o melhor das espécies. O cachorro tem um olfato melhor, a águia uma visão melhor e assim por diante. Mas também há outros sentidos que os homens naturalmente não fazem ideia de como seria tê-los – como o morcego, que localiza objetos emitindo ondas no ar; os peixes que detectam o movimento ao redor; ou o tubarão, que pode sentir e diferenciar o campo elétrico e magnético que todas as COISAs produzem. Os longos anos de experiências diversas aguçaram os sentidos de QoNoxa, que acreditava ser possível acontecer o mesmo a Overim. No entanto, pretendia conseguir o resultado num tempo mais curto.

– Como está se sentindo? – perguntou o velho, olhando o entorno da estaca dentro do rio.

– Estou bem. – respondeu. – Só um pouco zonzo. – sacudiu a cabeça.

– Ótimo! – abaixou-se e tocou a água.

– O que está olhando aí?

Sem desconfiar de nada, aproximou-se do velho, à beira do rio.

– A água está boa – disse o velho, colocando o braço ao redor de Overim.

Pelo olhar do velho já dava para entender qual era a intenção. Overim não quis esperar um empurrão e se jogou na água.

– Fale logo! – gritou, enquanto tirava a água dos olhos. – Quer que eu medite embaixo d’água ou algo assim? – perguntou rindo.

– Isso mesmo.

– Mas… o quê? Sério?

– Veja bem, você nem sequer consegue sentir o fluxo de energia aumentar nas argolas de Zarath. Na parte fácil, você está evoluindo MUITO rápido, mas vamos ver como se sai com a parte difícil. – disse o velho. – Afunde!

– Parte difícil? – resmungou.

– Sim! Afunde!

– Como meditar pode ser mais difícil que quebrar rochas?

– Continue pensando assim. Meditar irá levá-lo à sensibilidade que precisamos e, mais à frente, ao respeito e confiança totais do sua QaNai. Agora, afunde! – insistiu QUASE gritando.

– Não entendi nada! Mas está bem, vou afundar e ficar o quanto puder.

O rio – na verdade um desvio do rio – circundava o território de QeMua e estava milimetricamente sobre a fenda que dividia o chão até um ponto profundo do solo. A fenda chegava às proximidades da contenção de Rohä, de onde vinha a energia que as águas emanavam. A energia emanada não era da contenção, mas do que ela mantinha detida e neutralizada em seu interior. A energia que de lá emana é expelida por todo solo do planeta desde tempos remotos e pode até ser absorvida e utilizada, apesar de chegar bem enfraquecida e dispersa à superfície. Era nessa energia que Zarath estava pensando quando fez abrir a profunda fenda em torno do território. (meto um spoiler assim???)

QoNoxa sentia que aquela energia que fluía do rio era parecida com a das argolas e MUITO parecida com a que sentia fluir de Ranald, o mais famoso guerreiro QaFuga, treinado também por QoNoxa, morto em uma batalha contra os hakais.

A maior parte dos treinos de Ranald foi conduzida por QoNoxa no entorno do rio. As habilidades sensoriais do guerreiro se tornaram assombrosas. Na época, o velho já suspeitava que fosse algo do próprio rio, mas só pôde ter a confirmação após anos treinando e auxiliando no treino de outros guerreiros, comparando os que eram treinados no rio aos que não eram. A sua própria percepção sobre essa energia havia aumentado exponencialmente e estava claro que o motivo era o próprio contato dele com o rio ao longo dos anos.

Meditar não ajudaria Overim com a absorção da energia, mas quanto mais tempo Overim passasse mergulhado o mais fundo possível, mais rápido sua percepção aumentaria.

Nos primeiros minutos embaixo d’água, a única COISA que ele fez foi tentar se comunicar com Jio, que não respondeu. Assim como da outra vez, parecia estar inconsciente.

O treino durou ALGUMas horas. Overim conseguiu tempos bem longos sob a água só com o ar dos pulmões e, como toda evolução, aquilo o instigava. Esqueceu por um instante toda aflição que passara antes de chegar ali e não tocaram mais no assunto até o dia seguinte.

Ao despertar na manhã do outro dia, Overim não sentia mais a zonzeira e nem a dor de cabeça fraca que o atormentou durante o dia anterior. Preparou sua comida e saiu ainda antes do ancião chegar.

– Olha só! Está animado hoje? – perguntou QoNoxa, surpreso ao encontrá-lo na metade do caminho até sua casa.

– Vai ver aquela água é relaxante! – disse Overim, com um sorriso sutil que escondia sua empolgação. Subiu no cavalo que QoNoxa trouxe consigo e ambos partiram para o rio.

O treino era um misto de várias atividades, assim como antes, mas agora faziam tudo que fosse possível no rio ou em suas margens. Garantir que a sensibilidade de Overim aumentasse era mais uma tentativa de prevenir que aquilo que o tinha atingido, já duas vezes, fosse ao menos detectado se houvesse uma próxima vez.

Ao menos, a aventura de Overim não o tinha metido em nenhuma confusão com seu clã, pois para Ailin a COISA tinha apertado.

*****

Ailin ficou no posto até o amanhecer. Pela manhã, conforme os minutos foram passando, ela sentiu MUITA tontura tentando se lembrar porque exatamente havia amoras e cominho ali, já que detestava cominho. Além do mais, o motivo de ter descido do planalto era claro: ela investigava alguém perambulando na entrada do vale, só não se lembrava do desfecho.

Quando foi jogar fora o saco com as amoras, impregnadas com o cheiro do cominho, viu a tábua na qual havia feito suas anotações sobre o Silêncio. Ela olhou atentamente, mas não sabia do que se tratava e não entendeu o que eram aqueles rabiscos. Não reconheceu as inscrições feitas por ela mesma.

No Silêncio, sua mente estava a todo poder, como se tivesse sido descontaminada dos efeitos de sua corrupção natural. O Silêncio a havia reconectado inteiramente com a natureza e, em especial, com a linguagem da criação, que agora não podia mais compreender.

O aspecto velho da tábua, a sujeira de amora e o cheiro de cominho fizeram com que não desse nenhuma importância para aquilo, de forma que sequer notou que se tratasse de informações ali anotadas. Seu trunfo havia se perdido.

Saindo dali, foi até a sala do conselho, onde estavam Moren e Elinon de prontidão esperando sua chegada. Ailin deixou Bukie esperando do lado de fora e entrou devagar, sem saber ainda o que iria dizer, mas não queria esconder nada.

– Oi! Eu preciso contar uma COISA! – disse olhando para eles.

– Eu sei, você abandonou seu posto e deu uma desculpa nada convincente. – interrompeu Elinon, como se não ligasse MUITO.

Moren desandou a falar:

– Ora, Elinon! Abandonar o posto foi MUITO irresponsável e você sabe disso. Foi necessário que eu largasse o que estava fazendo e ficasse lá até ela voltar. E não foi só isso. O motivo que a levou a sair de lá ainda é obscuro e a mim não fez sentido. Conte a ele, Ailin. – explanou Moren, constrangido com o aparente desleixo de Elinon.

Aquilo não passava de encenação. Elinon entendera MUITO bem a gravidade da situação, não pelo abandono do posto – que poderia ter sido um grande problema no caso de uma invasão – mas porque entendeu que Ailin estava escondendo algo e não era compreensivo que ela agisse assim a não ser que fosse algo MUITO problemático. Entretanto, ele sabia que Moren só queria dar uma bronca em Ailin para não deixar o incidente passar em branco e se dissesse o que pensava, Moren não os deixaria a sós tão fácil.

– Eu não sei o que houve, não sei por que eu desci! Eu vi alguém lá embaixo, mas não sei por que demorei tanto pra voltar! Não queria ter sido um risco!

– Viu só? – disse Moren, dando com os ombros olhando para Elinon.

– Vai montar guarda em lugares menos preocupantes e mais chatos agora então, uma pena. – comentou Elinon, com um sorriso que mal escondia seu receio.

– Bem, isso aí é com você. Não precisa ser MUITO duro com ela desta vez, mas é algo que não pode mais acontecer.

– Tem razão, Moren. O que me diz, Ailin?

– Aceito qualquer punição. Não vai mais acontecer!

– Preciso comer algo, meu estômago está queimando! – comentou Moren, virando-se para a saída da sala. – Até mais.

– Até logo. Cuide desse estômago!

Elinon não sabia bem o que perguntar, pois uma primeira pergunta mal colocada podia colocar Ailin ainda mais na defensiva.

– Ailin, você confia em mim?

– Claro que sim! É o mestre em quem mais confio!

– Se eu precisasse guardar um segredo sobre algo ruim seria MUITO fácil, pois não tenho MUITAs pessoas de confiança, pessoas que eu possa falar com franqueza sobre qualquer COISA, mas isso me faria sofrer. Você entende?

– Nem mesmo Moren e Tsarat? – indagou Ailin, impressionada.

– Talvez a um deles, dependendo do assunto. Se eu pudesse mesmo, seria um grande alívio. Compartilhar nossa alegria é maravilhoso, mas quando não compartilhamos nossas dores e sofrimentos também é. Senão, só podemos esperar que nos tornemos amargos e desagradáveis ou cada vez mais frágeis.

– Mas isso não é mostrar fraqueza?

– Qual o problema de mostrar sua fraqueza a um amigo que pode te ajudar? Mesmo quando é um problema sem solução, se torna mais fácil aguentar quando você compartilha com um amigo. – explicou Elinon, sorrindo com a mão no ombro de Ailin.

Ailin aproveitou o ensejo:

– Posso te contar uma COISA? – perguntou, olhando tímida.

– Sim, querida. Sinta-se à vontade.

– Eu não sei mesmo o que houve lá embaixo ontem. Tenho certeza que havia alguém lá. Eu não fui só conferir, fui investigar quem era e o motivo de estar lá. Mas não sei o que fiz depois que desci a montanha!

– Tudo bem, Ailin. – interrompeu Elinon, achando que Ailin estava apenas reafirmando sua desculpa.

– Não! Você não entendeu! Isso já me aconteceu antes. Eu não lembro de nada que fiz quando desci, mesmo tendo ficado lá MUITAs horas! Quando tento me lembrar, minha cabeça dói. Depois de descer, a primeira memória que tenho é de explicar ao mestre Moren o porquê de ter saído do posto. Parece que eu trouxe cominho lá debaixo, mas eu odeio cominho! Não sei por que peguei isso. Quando tento lembrar o que fiz antes de passar a ponte, é como se o que as memórias que eu procuro não fizessem sentido, como se fosse uma história que nunca aconteceu!

Elinon percebeu que Ailin estava sendo sincera e ficou apreensivo. Embora ele não estivesse ouvindo uma história tão preocupante como a que QoNoxa ouviu de Overim, teve receio de que fosse um problema maior do que parecia.

– Quando foi a primeira vez que aconteceu?

– Foi há alguns anos. Aconteceu também depois que desci pelo meu atalho até o Vale das Preces, depois de sair de uma aula chata. – contou Ailin, começando a sentir novamente toda aquela ansiedade de sempre – Eu desci correndo e fui até o vale num lugar que já tinha ido várias vezes com Bukie. Eu estava ansiosa pelo hakiba e nós tentamos várias vezes, sempre lá no vale, longe de todos. Aquele dia, desci sem ele e só me lembro de ter chegado em casa feliz, dizendo que queria contar algo ao meu tio, mas não deu pra contar. Depois, saí pra procurar Bukie e ele estava na casa do mestre Bran.

– Então foi pouco antes do seu hakiba?

– Sim!

Elinon fez MUITAs perguntas tentando ver se juntava ALGUMas peças, mas nada parecia ter vínculo. Conversaram MUITOs minutos, até que a fome dos dois falou mais alto. Ailin foi para casa, mas havia combinado um treino com Elinon ainda naquel manhã.

Chegando em casa, Ailin foi explicar a Oilavo o motivo da demora, mas alguém já o havia informado de que o turno dela tinha mudado. Só teve tempo de comer com pressa e sair em direção ao local de treino escolhido por Elinon: o Campo dos Lamentos.

O lugar era um pouco longe do planalto e ficava em uma das saídas da cidade de Cahur. Tinha esse nome por que ao longo dos anos várias guerras foram travadas ali, onde também MUITOs hakais caíram. O campo era um espaço amplo com dezenas, talvez centenas de cupinzeiros que atrapalhavam a travessia de grupos grandes.

O que Elinon queria mesmo era mostrar a Ailin as marcas da Vesek Akruel do valente Aodin, em sua última batalha.

Em uma parte do campo, havia uma pedra cravada no chão com a largura de dez cavalos e a altura de dois homens, cheia de inscrições de homenagens a vários homens que morreram ali. A rocha, que antigamente era uma peça única, agora estava fendida de fora a fora. Na parte de cima dela, havia um buraco que cabia seis homens em pé um ao lado do outro. Não era difícil subir até o topo da pedra, mas como se tratava de um memorial de honra para o povo de Cahur, ninguém tentava isso. Ainda assim, todos sabiam desse buraco no topo, pois era possível vê-lo do alto das torres de vigia da cidade. Uma atração para as crianças.

O buraco era a marca do único golpe que Aodin conseguiu desferir na direção de Daxa, depois de tê-lo atraído para esse lado do campo, cujos cupinzeiros são do tamanho de homens. Durante o cerco daquele dia, MUITO antes de imaginar que o Vapor de Ferro fosse surgir, viu pela última vez os cupinzeiros atrapalhando o desempenho dos seus oponentes. Essa era a ideia por trás do uso daquele lugar por tantas vezes. 

No caso da disputa entre Daxa e Aodin, lutar em um terreno que favorecesse o hakal foi a única forma de atingir, ao menos uma única vez, o poderoso e temível acsi que, apesar de ter recebido todo o impacto da fúria de Aodin, o matou em seguida, estraçalhando seu corpo ainda em cima da pedra. Ailin já conhecia a história, mas nunca tinha ido até tão perto da pedra.

Elinon e Ailin subiram na pedra e se sentaram nela, admirando o buraco. Olhando de perto, era mais fácil ter uma noção da dimensão da força do valente Aodin. Um guerreiro espantoso, mas que ainda assim não tinha sido um adversário à altura do acsi.

– Então, o golpe que acertou o Vapor de Ferro fez isso tudo na pedra? – perguntou Ailin, impressionada ao ver tamanho estrago.

– Não é fantástico? Mesmo com ele levando a pancada. Imagine se tivesse acertado diretamente a pedra!

– Uau! E o que aconteceu?

– Com o Vapor de Ferro? Ele destroçou Aodin aqui mesmo, apenas alguns instantes depois.

– Assustador! Você estava aqui com os valentes?

– Não, não. Eu era mais novo que você e estava em casa. Mas quem é daquela época jamais vai se esquecer dos detalhes que eram contados.

– Num campo tão grande, por que o golpe foi aqui? – perguntou curiosa.

– Dizem que Aodin havia se adaptado MUITO bem lutando em meio aos cupinzeiros. Quando Daxa apareceu, ele estava daquele lado – apontou para um ponto no campo onde havia menos cupinzeiros – mas então correu para cá e o atraiu. Ele tentou dar vários golpes, mas Daxa apenas se desviava e gargalhava alto com uma risada que amedrontava a todos, mas não Aodin. O valente se afastou pra tomar fôlego e Daxa pulou em cima da pedra, como se quisesse mostrar que era maior que tudo isso e que os cupinzeiros não significavam nada.

– Mas e então? O que Aodin fez? – perguntou Ailin, apressando a história.

– Pois então, essa é a parte mais incrível. – Elinon ficou em pé sobre a pedra.

– Me diz! – Ailin também se colocou em pé.

– Aodin estava lá embaixo e a criatura aqui. Como você imagina que Aodin tenha feito para golpeá-lo aqui em cima? – perguntou, sorrindo com as mãos na cintura.

– Nem imagino! É MUITO alto pra subir tão depressa!

– Exatamente. Aquela Vesek Akruel era gloriosa! Seu haka era como um dragão! – enquanto ele falava, Ailin e Bukie o ouviam boquiabertos com olhos arregalados – Eles simplesmente saltaram de lá até aqui, como se pudessem voar! O golpe não foi desferido do solo, mas do ar. Pense nisso. Eles estavam no alto, alto o suficiente para que pudessem fazer um ataque com toda força que tinham.

A descrição feita por Elinon não era baseada só na tradição oral, mas no relato escrito de Almiro – um profeta da época – onde ficou registrado também o cumprimento de uma profecia do Livro dos Sábios, um livro com visões e profecias de vários profetas e videntes.

– Ah, isso! Dizem que ele podia voar! – exclamou Ailin.

– É, dizem. Mas são só lendas. Pelo menos na minha época não aconteceu. Se bem que ele já estava velho.

– Ele era velho quando fez esse buraco aqui? – perguntou ainda mais impressionada.

– Sim. Imagine só.

Nos segundos seguintes, Elinon notou a preocupação crescer no semblante de Ailin. 

– Por que está com essa cara?

– Não é óbvio? Eu nunca vou ser como ele e as pessoas não entendem!

– As duas COISAs são verdade. Mas você está se preocupando cedo demais.

– E você não está nem um pouco preocupado? Eu tenho a Vesek Akruel! Por que eu? Como eu descubro o que preciso fazer? Como eu sei qual é o propósito da minha vida nisso tudo?

Elinon foi pego de surpresa pelas perguntas tão difíceis. Ele refletiu por vários instantes até quebrar o silêncio:

– Hoje havia uma colmeia no chão. Eu vi as formigas levando o mel. Uma pessoa se perguntaria como a colmeia teria caído ali. Mas as formigas só pegaram o que puderam e foram embora. Entende o que eu digo?

Ailin sorriu.

– Acho que sim. Obrigada! Me conte mais sobre Aodin.

Elinon prosseguiu, matando a curiosidade da menina. Havia MUITA COISA a ser dita sobre o famoso guerreiro hakal.

Aodin era uma pessoa MUITO quieta, um homem MUITO reservado com um perfil parecido com o de Overim. Ele tinha poucos amigos, fazia treinos solitários e não se gabava dos seus feitos, assim como não mostrava o limite de suas façanhas, como os breves voos que podia fazer quando em formação de combate. Seu haka havia desenvolvido asas e podia mesmo voar. Isso todos sabiam e não era algo assim tão incomum para os hakas. Porém, incorporar isso à Vesek Akruel e voar junto com o hospedeiro era sem precedentes. Como replicar aquilo? A morte de Aodin levou consigo esse grande mistério.

– Eu vou conseguir fazer isso? – perguntou animada, mas não menos ansiosa.

– Não sei, mas você pode tentar. Eu te trouxe aqui para você ver aonde pode chegar com os treinos se se esforçar. O seu treino precisa ser diferente. Mas não quero substituir o que estamos fazendo, quero acrescentar um treino a mais. O que acha?

– Combinado!

– Não é bem assim. – soltou um risadinha. – Temos que conversar com Oilavo e ver também o que ele diz.

 – Ele vai deixar, sim!

Ailin estava MUITO animada e não via a hora de começar esse treino novo, fosse o que fosse.

Voltaram para a vila e foram direto para a casa de Ailin. Enquanto ela foi procurar o que comer, Elinon contou onde foram e a ideia do treino extra a Oilavo.

– Por que está tão disposto, Elinon? – perguntou Oilavo, um tanto desconfiado.

– Ailin precisa de mais motivos pra sorrir, não acha? Esse treino vai motivá-la. Vai ser duro, mas vai tirá-la da rotina cansativa e burocrática que já foi imposta a ela.

– É, eu entendo. Você tem razão. Obrigado por esse cuidado. Também estava pensando numa forma de aliviar essa tensão que ela finge não estar sobre ela.

– Do que estão falando? – se intrometeu Ailin, trazendo gomas. Sempre as gomas.

– Sobre seu treino… seu tio deixou.

– Obrigado, tio!

A intenção de Elinon com esse treino era poder passar mais tempo com Ailin, esperando ganhar sua confiança. Queria ser visto por ela como um amigo com quem ela pudesse compartilhar COISAs que não contava a ninguém. Ailin, ainda tão jovem, já era uma valente à altura de vários do clã, mas mesmo que não fosse, ela valia sua atenção.

Ailin ficou tão entusiasmada com as possibilidades ao ver o buraco na pedra que nem se perguntou o que esse treino teria de diferente. Ela já treinava resistência e força com Oilavo e Elinon, treinava luta corporal e uso de armas com Tsarat. Além disso, estava tendo seu raciocínio preparado indo nas missões que Elinon liderava, pois era sempre posta à prova por ele. Normalmente, os treinos eram conduzidos de forma que o hakal tivesse habilidade e força suficientes para não precisar se conectar ao seu haka por qualquer motivo, enquanto desenvolvia e aprimorava sozinho os benefícios físicos da conexão. Elinon, porém, pretendia treinar Ailin em tudo que se referia à sua formação de combate, desde concentração e interação com seu haka, até o uso inteligente das utilidades de sua Vesek Akruel.

As missões e os treinos continuaram e a cada dia a concentração e habilidades físicas de Ailin aumentavam. O clã dividia opiniões sobre ela: enquanto alguns a viam como cumprimento de profecias ou enxergavam nela o futuro da vila, outros a temiam e criticavam o conselho por facilitar o desenvolvimento da menina. De qualquer forma, havia certo sossego. Isso até o dia do presságio.

Dia de pressagista

Poucos dias depois, Tsaron, o pressagista, começou a espalhar que havia tido um mau presságio sobre o tratado de paz com o povo QaFuga. Ele não teve visões ou sonhos, nem precisava tê-los, pois tinha seus escritos proféticos. Textos antigos falavam sobre uma súbita e inevitável guerra em meio à paz. Ao ler e meditar nesses textos, os quais havia ALGUM tempo que não visitava, pressentiu que se tratava de algo próximo. Deduziu que fosse sobre os QaFuga, mas não tinha como explicar, pois não havia nenhuma confirmação direta. Os mestres conselheiros e diplomatas do clã ficaram sabendo rápido e foram até ele na casa das preces.

– Teve um presságio? O que viu? – perguntou Gotsen, o mestre a quem a informação chegara primeiro.

– Não vi nada, Gotsen. No entanto, tenho certeza do que estou falando! Não fosse o abandono do nosso povo aos ensinamentos antigos, teríamos como perguntar a Nuhat, não é? – respondeu o pressagista, apertando as têmporas com os dedos, mostrando-se preocupado.

– Já comuniquei Tsarat. Ele deve chegar a qualquer momento. Mas você precisa ser mais específico que isso. Sabe que desse jeito só vai causar medo e discórdia entre o povo.

– Eu já ia falar com ele. Estava pronto pra ir à sala do conselho quando você chegou. Não pra explicar melhor ou dar mais informações do que isso, mas sim por conta do rumor que iniciei sem intenção. Fui irresponsável.

A partir dali, Tsaron começou a explicar que teve uma sensação de guerra enquanto lia documentos antigos na Tasca de Thakon – uma taverna ao lado de sua casa – e não se segurou, sussurrando a previsão bem audivelmente aos que lá estavam.

– Esqueça isso, já foi. Agora nós precisamos saber o quão próximos estamos do motivo do presságio e se é motivo de alarde real para tomarmos as devidas providências. Me conte melhor o que viu.

– Eu não vi, já disse. Foi um pressentimento vago…

– Tsaron! Sempre polêmico. – exclamou Tsarat, adentrando o local. – O que disse? Um pressentimento vago causando esse burburinho todo? – sorriu, demonstrando despreocupação, que refletia um pouco de seu ceticismo.

– Não foi minha intenção! Não calculei o volume das minhas palavras, apenas por um instante, e agora esse constrangimento. Mas não posso esconder de vocês o que sei e vocês não podem esconder da família. Podemos conversar em um lugar mais reservado?

– Vamos até a sala do conselho, bravos amigos? – perguntou Gotsen.

– Está maluco? Se nos virem andando com ele até lá, isso só irá aumentar a preocupação e o falatório. Prefiro ficar aqui mesmo. – disse Tsarat.

– Está certo. – consentiu o pressagista. – Mas aqui não. Vou para a tasca, onde comecei isso, e vocês me encontram lá. Lá não tem problema. Conversaremos no tom que acharem mais conveniente. O que acham?

– Vá até lá então, daqui a pouco iremos. – disse Tsarat, sentando-se despreocupado num banco.

Tsaron não disse mais nada, só saiu pela porta em direção à tasca.

– Pode dizer que não acredita em nada disso, mas posso ver em seu olhar que esconde receio. – observou Gotsen, virando-se de costas com as mãos no cinto.

– MUITO se engana!

– Claro que você diria isso. – riu Gotsen, voltando-se para ele.

– Creio nos relatos antigos e nas profecias, mas creio também que o afastamento dos rituais do clã é para o bem. Contudo, nada justifica o esquecimento de tanto que já nos aconteceu no passado. Essa cegueira tornará o nosso povo ou quente, até que se queime, ou frio, até que congele. – disse Tsarat, baixando a cabeça. – nossa ignorância é nossa ruína. – acrescentou.

– E de onde vem essa preocupação que vejo? – indagou Gotsen, com uma sobrancelha erguida.

– A preocupação não é com o presságio, mas com o que esse tumulto pode gerar no seio de nossa família. – respondeu, pondo-se em pé.

Gotsen cruzou os braços pensativo:

– Preocupa-se mais com o tumulto do que com o motivo do tumulto?

– Sim. Somos poucos, mas um povo forte. Quem é como nós? Se não podemos fugir de uma profecia, temos que enfrentá-la do jeito que sabemos fazer melhor: lutando bravamente! – exclamou, erguendo o braço dobrado com o punho cerrado.

Gotsen achou um pouco constrangedor, mas assentiu com a cabeça e ficou convencido. Segundos depois, ALGUMas pessoas entraram ali mostrando preocupação, cochichando sobre o presságio. Viram que era hora de seguir até Tsaron.

Quando chegaram lá, um homem já discutia com o pressagista:

– Você não é Otsa, nem como ele! Se fosse, já saberíamos o que fazer! – dizia o homem em voz alta. – Ele teria nos conduzido sem essa sua insegurança. Que tempos estes!

– “Que tempos estes”? “Que costumes”, eu diria! Amigo, também aprecio o trabalho de Otsa, mas ele também sofria com a descrença em sua época. Aliás, se não há respostas, o problema não está em mim, mas no povo. – o olhar sarcástico de Tsaron irritou o homem, que continuou:

– Consegue prever que sua cara vai amanhecer inchada? – e foi para cima dele com um copo grande de metal.

Tsaron se tornava BASTANTE ágil no hakiba, mas como era costume que os hakas ficassem do lado de fora dos estabelecimentos de terceiros, não teve chance contra a pancada na testa. Caiu no chão enquanto Thakon, o dono da tasca, pulava sobre o balcão pondo-se entre os dois.

– Chega! Acho que você deu goles demais no seu suquinho. Vá pra casa antes que eu tire você daqui. – disse Thakon, olhando bem de pertinho no rosto do agressor.

– Que interessante. Um seguidor de Otsa com birra de Tsaron? Sabe o quanto isso é contraditório? – disse Gotsen, olhando para Tsarat.

Tsarat chegou bem perto do agressor, o encarou por alguns instantes e olhou para Tsaron, que já se levantava do chão.

– Deixe-o ir. Não faz diferença! – esbravejou. – Quem sabe essa fúria toda o coloque na primeira leva de mortos quando meu presságio se mostrar verdadeiro!

– Quieto, não está ajudando – sussurrou Tsarat, empurrando o agressor com uma das mãos para fora da tasca.

Simultaneamente, com a frase sinistra de Tsaron, Gotsen se sentiu obrigado a gargalhar com intenção de distrair os presentes.

– MUITO bem. Meu cinismo não faria melhor. – sussurrou baixinho Tsarat.

– Perdão. Perdi o controle e não resisti à tentação de amedrontá-lo da forma que melhor podia – explicou Tsaron, olhando em volta.

Tsaron e os dois mestres escolheram uma mesa mais afastada e lá ficaram. Gotsen pediu uma bebida forte, esperando que isso promovesse um ar menos sombrio aos três ali sentados.

– Explique logo o que viu – pressionou Tsarat.

– Ele não viu foi nada… – murmurou Gotsen, olhando para o balcão enquanto sua bebida não chegava.

– Como é?

– Sim, não vi nada. Foi uma certeza que me veio enquanto buscava orientação, mas sem nenhuma visão ou sonho – explicou o pressagista, desviando o olhar.

– Ah! E como tem certeza que não é apenas algo de sua cabeça? – questionou Tsarat, batendo levemente as palmas das mãos sobre a mesa, se segurando para não transparecer irritado.

– Já teve uma visão? Já teve um sonho? Como sabe que não são vidências? Como sabe que a voz na sua cabeça não seja meramente sua consciência e instinto ao invés de um aviso de Nuhat? Se não sabe como isso funciona, não pode saber a diferença. Eu não sou profeta, nem vidente, sou apenas um pressagista e você sabe disso.

 Ao dizer isso, deixou Tsarat sem respostas.

– Certo, me pegou. Mas sobre o que exatamente foi o tal pressentimento? – perguntou Tsarat, com olhar firme.

Thakon deixou a bebida na mesa, deu uma boa olhada nos três, meneou com a cabeça e voltou para trás do balcão.

– Vocês se lembram do Poema Mordaz? – Tsaron sussurrou a pergunta baixando a cabeça, QUASE encostando o queiro na mesa. 

– Claro que não. Ninguém lembra do “Poema Mordaz”, aliás, que raio é isso? – perguntou Gotsen, antes de dar uma golada na bebida.

– O problema não era o meu ceticismo? – ironizou Tsarat. – Poema Mordaz é uma profecia antiga em forma poética. Está no Livro dos Sábios, mas a autoria é incerta.

– Exatamente. Quem diria! – o pressagista confirmou impressionado. – Lembra-se da parte que fala sobre a “chama escura”? – Ao perceber que Tsarat conhecia o poema, parecia agora mais interessado em explicar detalhadamente.

– Não exagere… claro que não me lembro. – disse rindo. – O que essa parte diz?

– Diz que uma chama viria sem fazer barulho e, usando aquilo que tem dentro de si, que a dá força, traria assolação aos hakais.

Gotsen baixou a caneca à mesa, tentando se lembrar dessa profecia, que não sabia se já tinha ouvido. Nunca fora tão esforçado ou interessado nesses assuntos, apesar do temor. Tsarat baixou a fronte tentando entender o que isso significava. Depois de alguns instantes:

– Mas isso é MUITO vago. Sabe como exatamente está escrito? – perguntou, coçando a cabeça.

– Claro! Li dezenas de vezes! Mas pra não errar, está aqui – ele puxou um pequeno rolo com escritos. – vou ler devagar. 

Tsaron começou a ler o texto compassadamente, precisando repetir ALGUMas frases que acabava atropelando pela afobação. O texto dizia:

“Por meses, clamam atrevidos,

Aguardam insolentes por anos!

Mas virá o dia do alarido.

Como não veem? Insanos!

Dias com a Vida, dias com o Grande

Já se passaram, não voltam mais!

O júbilo outrora tão ressonante

Importa agora, se só restam Ais?

Não enxergarão o terror,

Por quanto só paz haverá.

E assim também o calor

Da chama escura arderá!

Pela força que brota da alegria

E da alegria que brota de dentro,

Uma dor que jamais saberia

Pudera sorrir inda um momento.

Recusam o que dentro dela

É motivo de MUITA alegria,

Antes tivessem cautela,

Pois só isso já bastaria.

Chama quieta, que assim se espalha,

Que de repente estanca a revolta.

Arde de dentro, como fornalha,

Até que um último suspiro solta.”

O texto foi repetido ALGUMas vezes e teve ALGUMas estrofes e versos mais enfatizados. Os três passaram alguns longos minutos analisando e refletindo sobre a profecia que já tinha uma interpretação antiga, indo MUITO além do que Tsaron havia entendido.

O tempo de insolência parecia ser sobre o tempo de apatia do povo, que seria punido. Aparentemente, os tempos antigos, de glória e fé, ainda faziam parte da cultura de uma maneira MUITO forte, mas o poema estava dizendo MUITO claramente que a história, apenas como um item decorativo, de nada servia. Além disso, ALGUM momento de paz específico estava sendo comparado a uma venda nos olhos, que cegava propositalmente o povo para a iminência de um problema.

Toda a parte sobre algo “de dentro” e sobre a chama parecia MUITO confusa.

– Mas se a chama não é Daxa, ela é quem? – perguntou Gotsen, ainda confuso.

– A chama não precisa ser alguém específico, pode ser uma alegoria a todo o povo QaFuga. – Explicou Tsarat, que já tinha captado a ideia.

– Isso! – atestou Tsaron, sacudindo o dedo. – Acredito na interpretação de Otsa, mas acho que seja uma profecia de dupla referência! Não sei o que ele pensava ser essa COISA dentro da chama que nós supostamente recusaríamos, mas no caso do povo QaFuga obviamente é sobre as QaNai. Aliás, MUITAs descrições proféticas descrevem o ódio natural das pessoas como uma chama consumindo as pessoas por dentro, não é? Pra mim, isso se encaixa MUITO bem no descontrole típico daquela gente.

– Entendi. – disse Gotsen. – Até que faz sentido. Mas por que acha que isso é mesmo uma profecia? Parece apenas um poema melancólico – questionou.

– Não, Gorgen. Entenda: essa é só uma poesia das tantas que estão dentro do contexto do Poema Mordaz. ALGUMas partes são mais explicativas e mais diretas, falam a respeito de Nuhat, de suas vontades, do seu amor e juízo. O contexto todo é uma profecia, mas só o fato de estar no Livro, pra mim já é suficiente. Você também não acha?

Havia relativa paz entre os hakais e outros povos, principalmente os mais próximos, sem nenhuma guerra à vista. E os resquícios da última guerra já haviam desaparecido. O que acontecia, às vezes, eram ALGUMas batalhas distantes por causas MUITO peculiares, que geralmente não diziam respeito a uma nação inteira. Até mesmo problemas pontuais entre hakais e QaFuga eram resolvido diplomaticamente, sem alarde.

O receio de Tsaron, porém, era que a profecia parecia apontar especificamente para esse silêncio na história entre os dois povos. Além disso, o povo QaFuga não os contatava fazia ALGUM tempo.

– Existe a possibilidade de ser apenas um alerta em vez de uma profecia, Tsaron? – perguntou Gotsen.

– Qual seria a diferença?

– Se é de fato uma profecia afirmando que essa chama virá contra nós, então não há nada que possamos fazer. Por outro lado, se é um alerta, poderia ser justamente para que fizéssemos algo a respeito, não é? Como o texto diz “Antes tivessem cautela, pois só isso já bastaria”. – destacou Gotsen, temeroso, mas já meio confuso com as goladas da bebida.

– Temos que ter esperança nisso! – disse Tsarat.

A conversa seguiu durante ALGUMas horas. Enquanto isso, perto da casa das preces, uma discussão se iniciara, com alguns de um lado dizendo que Ailin salvaria a vila e outros dizendo que ela seria a culpada pela sua perdição.

Ailin estava com Elinon treinando nos limites do território hakal enquanto Moren e alguns outros mestres estavam em missões longe do planalto, restando apenas outros dois mestres presentes, fora Tsarat e Gotsen. MUITA gente que, de longe, viu a discussão de longe, foi até lá conferir, mas poucos se interessaram em levar ao conhecimento dos conselheiros.

Sane foi uma das que viu as pessoas se aglomerando e chegou perto para ver. Quando entendeu qual era o assunto, tentou sair dali sem que a percebessem, mas foi em vão.

– Aquela é a mãe dela! – gritou alguém já exaltado na multidão.

Alguns não sabiam, ou não se lembravam, de que Ailin perdera os pais e morava com os tios.

Sane era uma mulher forte, mas bem quieta e detestava confusão. Continuou andando na direção oposta à multidão até que alguém pegou-a pelo braço:

– Aonde vai? Responda as acusações!

– Não estou sendo acusada de nada. O que esse povo quer é sangue inocente! – sacudiu forte o braço e continuou andando.

Ouviu ALGUMas frases ofensivas, mas não deu importância, apesar do nervosismo. Suas pernas tremiam e suas mãos transpiravam. Certamente não pararia ali por causa de uma agitação descabida daquelas, até que alguém gritou:

– Alguém tem que dar um fim nesse demônio antes que dê fim a nós!

Sane parou imediatamente. Virou-se lentamente e chamou seu haka, que mostrou sua disposição em resolver aquela conversa de outra forma. Uma espada linda, pontiaguda e brilhante, que parecia trançar em seu braço até parte do busto. A espada era uma especialização clássica da formação Malha, mas aquela parecia BASTANTE requintada.

Alguns calaram a boca, mas outros poucos insistiram nas ofensas:

– Acha que isso muda ALGUMa COISA? Você não vai nos impedir de…

– Impedir de que, amigo? – interrompeu Oilavo, de repente e já em hakiba.

Enfrentar Sane passou de algo aparentemente simples a algo completamente problemático. Eles podiam não se lembrar corretamente de Ailin, mas certamente se lembravam de Oilavo.

Havia uma lei entre hakais sobre não brigar entre si, que vez ou outra era desrespeitada. Mas lutar entre si usando seus hakas era algo mais complexo. Os hakas tentam ao máximo possível não entrar em combate uns contra os outros, pois para eles isso é instintivo e só muda se parecer MUITO necessário defender seu hospedeiro. Então, talvez Oilavo pretendesse apenas assustar e dispersar aquele povo, sem intenção ALGUMa de feri-los. Entretanto, ele e seu haka já haviam passado MUITA COISA juntos e tinham intimidade suficiente para que o haka concordasse em auxiliá-lo nessa situação sem titubear.

A visão daquela marreta bruta, que não se via desde MUITO tempo, foi o BASTANTE para desviar a atenção daquelas pessoas alteradas por ALGUM tempo. Oilavo pegou Sane pela mão e levou-a para casa sem maiores contratempos, enquanto a multidão de discordantes voltou a discutir.

A discórdia entre aqueles que estavam assustados com o presságio e aqueles com alta expectativa sobre Ailin levou-os a brigar. Os ânimos se alteraram tanto que um dos defensores de que Ailin seria o trunfo da vila levou uma pedrada na nuca e caiu desacordado; foi o suficiente para uma confusão mais grave.

Não eram guerreiros, eram só pessoas normais brigando entre si, e sem seus hakas. Socos feios, chutes desengonçados, terra nos olhos, puxões de cabelo. Enfim, MUITOs machucados sem gravidade, exceto pelo que recebeu a pedrada.

No meio dessa confusão, Gotsen e Tsarat foram avisados e correram para lá o mais rápido que puderam. Ao longe, Gotsen soltou um grito de alerta que interrompeu a maioria das brigas.

– Quem começou isso? – perguntou Gotsen, com olhos assustadores para cima do povo.

Os dois chegaram se metendo no meio da confusão, empurrando todos que puderam.

Antes que alguém tentasse explicar:

– Nós já sabemos o motivo dessa molecagem aqui. Só quero saber quem é o responsável pela baderna. – disse Tsarat, mostrando-se bem irritado.

– Quem começou a briga foi ela! – disse alguém, apontando para a mulher que atacou a pedra.

Alguns se intrometeram dizendo que era mentira, mas outros confirmaram. A maioria não tinha visto de onde a pedrada havia partido.

– Preferem ir todos a julgamento ou os responsáveis vão se entregar?

Um dos homens veio à frente:

– Eu me responsabilizo! Contanto que a menina seja afastada da vila!

– E com que motivo? – indagou Gotsen, pondo as mãos na cintura.

– Ela é um perigo para nossos filhos! – alguém gritou ao fundo, desencadeando outros manifestos e um burburinho QUASE facilmente perderia o controle.

– Calados! – gritou Tsarat. – Que besteira é essa? O fanatismo de alguns está finalmente conseguindo quebrar a Família Hakal ao meio! Como pessoas desta família, justo desta, podem ser um vexame tão grande até para os de fora? Ailin é uma criança como os filhos de vocês! Se vocês tivessem se esforçado ou enfrentado o medo, teríamos mais valentes valiosos como ela. Será que seus filhos terão utilidade à nossa família? Ou serão só mais carne para os futuros salteadores e as futuras guerras? O que vocês têm feito? Seus filhos têm aprendido sobre a nossa história, mas que efeito isso tem tido na prática? Os hakais não são apenas um clã, são uma família só. Mas quem de vocês pode dizer que a última geração criada por vocês sequer sabe o que é isso?

Alguém, sem pensar em nenhuma daquelas palavras, gritou:

– Mas ela é perigosa!

– Ela é nossa família! Ailin é hakal! – gritou Gotsen, tão enfurecido quanto Tsarat.

– Quem aqui já viu a Vesek Akruel da menina? – perguntou Tsarat.

– Eu já vi e garanto que nunca vi nada igual! Ela foi abençoada! – disse Genevi, o pai de Ainan, que tinha sido convencido não só pela visão na sala do conselho, mas pelo carinho e fé que o filho tinha em Ailin.

– Não, nós é que fomos abençoados com ela! – disse mais alguém lá do meio, e o alvoroço QUASE recomeçou.

– Silêncio! Quem se machucou? – perguntou Gotsen, preocupado olhando o homem sentado no chão com a mão na cabeça.

Enquanto Gotsen tentava dar ALGUMa atenção aos feridos, Tsarat apontou para um grupo:

– Vocês vão conosco para a sala do conselho.

– Como sabemos que podemos confiar na menina? – perguntou ainda alguém na multidão.

– Como eu sei que posso confiar em você e naqueles de sua casa? – questionou Tsarat, com olhos mais serenos desta vez.

A multidão já começava a se dispersar quando os outros dois mestres chegaram correndo e já se preocuparam em levar quatro daquelas pessoas até a sala do conselho para serem interrogadas.

Quando se afastaram o suficiente, as discussões recomeçaram, mas dessa vez não tão eufóricas. Houve ainda mais alarde por parte dos que temiam Ailin, pois alguém argumentou que os mestres estavam cegos e sendo irresponsáveis, de forma que se eles precisassem intervir, teriam que ir diretamente contra o conselho.

Enquanto os mestres presentes se ocupavam com o interrogatório, Tsaron chegou até onde o povo discutia para tentar remediar o que ele mesmo havia causado.

– Preciso que se acalmem e prestem atenção!

– Diga logo se a menina é um demônio!

– Demônio? Que bobagem! A menina não tem absolutamente nada a ver com o presságio que tive!

– E o que foi que viu? Conte-nos! – alguém perguntou com pressa.

– Não foi uma visão! Foi um agouro, um oráculo enquanto lia as profecias antigas. Não sei quando será, mas não é a menina, posso garantir.

– Seja mais claro!

– Fiquem calmos. Vocês precisam ser menos ansiosos. Não quero ainda afirmar quem será responsável pelo mal que virá sobre nós e também não posso afirmar exatamente quanto será, mas devemos estar preparados!

– Está escondendo algo de nós! – quando alguém gritou isso, a confusão recomeçou.

Houve MUITO empurra-empurra. O pressagista saiu do meio deles e alguém o acusou de estar fugindo. Assim, alguns foram rapidamente em sua direção para segurá-lo e outros foram tentar defendê-lo. Um dos que tentava segurá-lo não resistiu e empurrou com força o rosto de uma mulher que estava em sua frente. Aqui fez com que o irmão da mulher viesse correndo e lhe chutasse as costas na altura da cintura. Mais uma vez, houve mais brigas.

Nesse momento, Elinon entrava na vila com Ailin, indo em direção da sala do conselho. Ao longe, Ailin percebeu que estava Ainan à porta. Quanto Ainan a viu, se levantou depressa; ele olhava para dentro da sala fazendo alguns gestos que de longe não deu para entender. Ailin então avançou com mais velocidade em seu cavalo e, antes que chegasse, viu os mestres saindo com aquelas pessoas de dentro da sala.

– Ainan, o que foi? – perguntou, chegando perto do menino que vinha em sua direção.

– Estavam brigando por sua causa! MUITAs pessoas! Mas acho que já está tudo bem.

– Brigando? Por quê? – perguntou Elinon, descendo do cavalo, indo em direção aos outros mestres.

– Eles estão com medo dela – respondeu Ainan, virando a cabeça para Elinon e voltando-se novamente para ela. – Estão com medo de você, acredita? – ele riu, meio sem jeito, escondendo o nervosismo.

– Medo de mim? Por quê? – perguntou atônita.

– Tsaron teve um mau presságio e alguns bocós estão dizendo que é algo sobre você. – respondeu, coçando a cabeça.

– Onde foi isso?

– Perto da Tasca do Thakon, mas acho que não tem mais ninguém lá.

Apesar de Ainan estar dizendo o que sabia, Ailin não se convenceu e correu a cavalo até o lugar, esperando encontrar alguém que lhe explicasse sobre o presságio. Ao longe, Ailin conseguiu avistar um tumulto e percebeu que era algo sério, então, andou o mais rápido que pôde.

Um dos que defendiam Ailin perdeu completamente a noção das COISAs e se preparou para atacar um peso de ferro que encontrou em ALGUM lugar. Uma mulher, que corria no sentido oposto poucos segundos antes do peso ser arremessado, certamente teria sua nuca atingida em cheio, não fosse por Ailin. Ela saltou de sobre o cavalo, já em hakiba, colocando-se na frente do objeto, que a atingiu em cheio no peito.

– Oh, não! – gritou o homem que arremessou o peso. – Perdão! – correu em direção a ela, enquanto a maioria nem se movia, vendo-a caída no chão sem se mover.

– Uma resposta do alto! – bradou a própria mulher que havia sido salva, pois era do grupo contra a presença da menina no planalto. – Nuhat está olhando por nós!

– Cale a boca! Como pode ser cruel assim? É apenas uma criança! – o homem gritava.

Bukie já havia se desconectado de Ailin e lambia sua face no chão. A mulher não a olhava, só falava ao povo, e continuou até ser repreendida até mesmo pelos do seu grupo.

Alguns instantes depois, Aailin recuperou a consciência. Ela viu a mulher a quem havia defendido da pancada e instintivamente demonstrou preocupação, perguntando se ela estava bem para ter certeza de que havia conseguido protegê-la do objeto arremessado.

MUITOs ali caíram em si vendo bondade e ingenuidade na menina e não puderam continuar crendo que ela fosse uma ameaça ou, ainda que fosse, tentar algo contra alguém tão doce. No entanto, uma minoria insistiu naquele pensamento, incluindo a própria mulher salva do golpe, crendo que ela traria mal à família Hakal e, agora, com um sentimento de ódio e orgulho.

Elinon chegou alguns segundos depois com Genevi, que conduziu o cavalo que estava com Ailin até o estábulo, enquanto Elinon a colocou em seu cavalo para levá-la até sua casa.

Ailin mal entendeu o que havia acontecido, pois não tinha ouvido nenhuma palavra da mulher enquanto ficou desacordada no chão. Por outro lado, ela ainda estava preocupada com o que ouvira de Ainan sobre o presságio.

Sane e Oilavo se assustaram ao vê-la da forma que chegou, ofegante e respirando com dificuldade, com olhos confusos e um inchaço na cabeça. Ailin foi levada à sua cama por Oilavo, enquanto Sane tinha uma conversa franca com Elinon acerca dos boatos.

– O que você acha sobre isso tudo? Me diga sinceramente. – perguntou Sane, apertando forte uma mão na outra.

– Acho um absurdo! – respondeu abrindo os braços. – Por mais avançada que ela esteja nos treinamentos e em seu hakiba, Ailin é uma criança; uma criança amável!

– Não acho que aquelas pessoas deem importância pra isso. – observou Oilavo, que voltava do quarto.

– Eles só estão agitados por causa do presságio. Logo isso passa!

– Não, Elinon. Eu já havia percebido uma certa hostilidade MUITOs dias atrás, só não achei que chegaria a esse ponto. – acrescentou Oilavo.

 – Eles temem que a nossa Ailin chegue a ser mais forte do que os outros valentes possam controlar caso necessário, não é? Eu até ouvi um comentário desse tipo. Mas o que ela faria? – questionou Sane.

– O temor é de que ela se descontrole e seja forte demais para ser neutralizada se isso acontecer só daqui alguns anos. Porém, o presságio é sobre um mal que sobrevirá à vila, mas não sobre ela. Parece ser sobre os QaFuga. Ao menos foi o que Tsaron disse. Quando alguém cogitou que Ailin fosse o mal do presságio, mesmo sem nenhum argumento, outras pessoas foram convencidas pelo medo. Vocês sabem como isso funciona, é sempre a mesma COISA.

– Como a família conseguiu chegar a isso? – indagou Oilavo, esfregando os dedos numa pequena pedra entalhada que carregava pendurada ao redor do pescoço.

– Já tivemos melhores fases, não é? – disse Elinon, respirando fundo. – Uma pena que sempre seja preciso de terror e destruição pra abrirmos os olhos.

– E o que faremos? – perguntou Sane, preocupada com a segurança de Ailin.

– Por enquanto, o que podemos fazer é ficar com olhos e ouvidos atentos e esperar. Ailin sabe se virar. Eu passei COISAs com ela que vocês não imaginam. Pra começar, não é qualquer dos valente que pode detê-la hoje. É claro que MUITOs ainda poderem, além de todos os conselheiros, mas com a maioria nós não precisamos nos preocupar.

A conversa não foi MUITO longa. Não havia MUITO sobre o que se precaver. A saída era esperar, como Elinon sugeriu.

De qualquer forma, embora Ailin nem sequer soubesse de tudo que havia sido especulado sobre ela, dificilmente a vida no planalto seria a mesma.

Os dias no rio de Zarath

Os dias pareciam passar cada vez mais rápido. Overim tinha a sensação de que o tempo já não era como antes. E isso não era tudo. Por mais que evoluísse, parecia não ser o suficiente, como se ao final de cada dia não tivesse aproveitado nada e fosse apenas mais um dia que não voltaria.

Aquela sensação de sempre ainda queimava no peito e o instigava a agir, assim como da outra vez. O receio era maior quando pensava no fato de que Jio também não se lembrava de absolutamente nada. Até mesmo enquanto estava no Silêncio, com todas as suas memórias, Overim não entendeu o que estava acontecendo com Jio.

As QaNai não sabem ao certo tudo o que se passa com seus hospedeiros. Numa súbita ocasião de estresse elas, instintivamente, tomam o controle do corpo entrando em Modo Nai. E também é comum que a QaNai fique conectada ao sistema nervoso do hospedeiro, de onde recebe informações de todos os sentidos do corpo, incluindo a visão. Mas o motivo maior é saber se o hospedeiro está ferido ou algo assim, e não assistir sua vida.

Depois que voltou do Silêncio, Jio demorou alguns dias para ser notado consciente. Quando Overim perguntou sobre aquelas horas de escuridão em sua mente, teve como resposta apenas o receio da QaNai. Ao contrário do que Overim pensava, ele não assumiu o Modo Nai, nem teve um momento de estresse suficiente para que Jio fizesse questão de observar o que se passava naqueles momentos. Após pensar um pouco sobre o que Overim lhe dissera, Jio apenas percebeu que havia ficado um tempo inconsciente; tempo do qual não sentia falta ALGUMa.

Overim deduziu que, se não houve necessidade de entrar em Modo Nai, talvez não tivesse sido algo perigoso. Overim achou que devia contar sua teoria ao velho QoNoxa. 

– Você está superando em MUITO seus tempos embaixo d’água hoje, mas parece ser por MUITA distração e não por concentração. Desse jeito vai se afogar! – disse o sábio, chutando a água na direção do menino.

– Estou pensando numa COISA. – disse Overim saindo da água. – Se Jio não achou que precisasse me ajudar e nem se preocupou em ficar alerta, então minha jornada deve ter parecido bem tranquila, não é?

– Bem, talvez sim. Mas não creio.

– E se for ALGUM tipo de armadilha? Essa sensação que sinto pode ser um feitiço? – perguntou atencioso, com olhos bem abertos.

– Não conheço nenhum feitiço desse tipo. Sei de um feitiço que apaga memórias, mas o efeito não é tão forte e ainda é possível sondá-lo, além de ser possível também revertê-lo. – respondeu o velho, olhando para o rio.

– Mas então tente reverter isso como se fosse um feitiço! – disse Overim, levantando-se rápido do rio gesticulando com as mãos.

QoNoxa fez cara de tédio, erguendo as sobrancelhas.

– Já fiz isso na primeira vez. Aliás, já tentei de tudo. E no seu caso, seriam pelo menos dois feitiços: um para a memória e outro para essa tal sensação; o segundo nem imagino como funcionaria.

Overim sentia cada vez mais o apreço que QoNoxa tinha por ele, e quanto mais sabia das habilidades do velho, mais temia o poder daquilo que o havia atingido. Afinal, se nem o velho sabia explicar, era algo fora do comum.

O que podia fazer era treinar e esperar que estivesse preparado numa próxima vez.

Overim pensou um pouco e se jogou no rio novamente. Antes que afundasse completamente o velho disse:

– Mas a teoria da armadilha não é ruim!

– Então já é ALGUMa COISA… – disse erguendo a cabeça, preparando para submergir de vez.

– Só não está certa! – gritou o velho.

Overim ouviu a frase gritada do velho antes que a água atingisse seus ouvidos, então pegou impulso e subiu de novo.

– Como é? Por que acha isso?

– Por que não leva em conta alguns detalhes importantes. – respondeu QoNoxa, saindo da beirada do rio, indo em direção ao monumento.

Overim esperou um pouco e, como o velho não disse mais nada, saiu do rio e foi até ele.

– O que eu não levei em conta?

– O momento de escuridão em sua memória é MUITO amplo e é diferente da outra vez. É mais provável que a sua memória perdida seja não só a do momento exato do incidente, mas também de pouco antes e pouco depois, ou MUITO antes e MUITO depois. Assim, se Jio entrou em Modo Nai, ele não saberia também, pois se esqueceu.

Qonoxa tinha razão. Não era possível saber se ele havia ou não entrado em Modo Nai. O dia seguiu com MUITAs perguntas no ar, mas que não atrapalharam o treino. Overim estava conseguindo tratar separadamente a frustração, o medo e a ansiedade em sua na mente, sem deixar que prejudicar seus períodos de treino. Assim, eles puderam aumentar os treinos, mas o lazer também aumentou. 

QoNoxa via tudo aquilo como uma forma de terapia para Overim que, aos poucos, estava conseguindo incorporar tudo ao seu modo de vida.

– Você está pintando MUITO bem! – disse o velho, com um sorriso enorme naquele rosto enrugado.

– Tenho um bom mestre – comentou Overim, sem tirar os olhos da tela. – Ele só não sabe pintar!

– Ah! Posso concordar, mas só com a primeira parte!

– Está bom ou não? – perguntou sem jeito, quando notou o olhar do velho.

– Está sim, mas do que se trata?

– Ora, se não dá pra ver que é uma cachoeira e um espelho d’água, então não está tão bom! – Overim riu, mas entendeu a pergunta. – É só uma paisagem qualquer, mas está bom, não está? – ergueu a tela na altura do rosto mais à esquerda, de forma que QoNoxa pudesse vê-la também.

– Sim, MUITO bonita. Vamos combinar uma COISA: quem encontrar um lugar assim primeiro, conta para o outro. – disse o velho, dando com a mão no ombro do menino.

A paisagem retratada era uma visão obscura e nebulosa que MUITAs vezes aparecia em seus sonhos. 

Nessa primeira vez que retratou a cena, fez apenas a silhueta dos dois, a cachoeira e um reflexo trêmulo na água. Overim já havia sonhado várias vezes com essa imagem, não MUITO definida mesmo nos sonhos. ALGUMas vezes, acordou rindo, outras vezes, chorando. Nunca conseguia se concentrar bem no que havia sonhado e a única imagem que não esquecia completamente, apesar de um pouco deturpada, era a imagem deles refletida na água, em frente à cachoeira.

Overim achou que fosse apenas um sinal de que estava na hora de se relacionar melhor com os outros jovens do clã. Não conversava longamente com outras pessoas de sua idade desde que o treinamento começou, pois treinava o dia inteiro e à noite ceava com a família.

No dia seguinte ao que fez a pintura, ainda no meio do treino, abriu o jogo com QoNoxa:

– Vô, eu preciso de uma ajuda sua.

Overim desceu da árvore em que estava e se sentou no chão. QoNoxa não disse nada, apenas observou atencioso.

– O que os meninos da minha idade fazem?

– Como assim? Que pergunta difícil! – sentou-se ao lado dele.

– É que eu não faço nada além de treinar e sair com você. Eu gosto, mas só vou fazer isso? Até quando? Esse é mesmo meu destino? – indagou Overim, aumentando a intensidade do falar a cada palavra.

– Destino? O que existe é o que nós fazemos. Você pode fazer a COISA certa ou não. E quanto a treinar e passar todo o tempo comigo, que vida triste e horrível seria essa, não é mesmo? – QoNoxa riu, mas compreendeu perfeitamente. 

– Não é isso…

– Tudo bem, eu concordo! – interrompeu. – Vivo pensando nisso, mas não sei como resolver. O que você quer fazer?

– Bem, também não sei. Por isso perguntei o que é que se faz na minha idade. – disse Overim, cruzando os braços e olhando para cima pensativo.

– Oh, sim! Mas cada um faz COISAs diferentes. Seria também MUITO triste viver uma vida com base na dos outros, não acha?

– Talvez. Não tinha pensado nisso.

– Você já deve ter pensado em ALGUMa COISA. Diga o que quer fazer.

– Eu gostaria de ter mais amigos. – respondeu Overim, olhando nos olhos de QoNoxa.

– E o que te impede?

– Eu conversava com ALGUMas crianças, mas nunca tive amigos. Elas nunca gostaram de mim, só me importunavam, zombavam do meu cabelo e me batiam.

– Mas a vila é grande! Você conheceu apenas alguns poucos meninos malvados que hoje são mais fracos que você. Vamos fazer diferente hoje, vamos até o estanque do Baltoz papear.

– O que é isso? Onde fica?

– É o único lugar da vila que vende tabaco. Fica na saída da vila, mas lá do outro lado, pertinho do campo onde a molecada vai brincar. – QoNoxa, nessa momento, já até sentia o gostinho do seu velho cachimbo.

– Mas o que…?

– Não pergunte tanto, não se afobe. – interrompeu QoNoxa. – Vamos lá mais à tarde, não é? Aí você mesmo vê.

– Está certo!

Overim já tinha passado ALGUMas vezes por lá, mas não sabia nada sobre esse lugar.

– Daquele lado tem mais gente do que ali do lado onde você mora. Lá tem mais casas. – disse QoNoxa.

A casa de Overim ficava próxima de alguns estabelecimentos e também de ALGUMas pequenas chousas. Relmante, do outro lado da vila havia uma concentração maior de casas. Esse era um dos motivos por Overim não ter amigos, aparentemente fácil de resolver.

– Agora suba lá. – disse o velho, apontando para o topo da árvore onde o menino estava.

A manhã passou e eles comeram por ali mesmo, como geralmente faziam. Depois disso, pegaram seus cavalos e fizeram um caminho por fora da cidade até o estanque.

– Como vai, Baltoz? – perguntou QoNoxa, ainda antes de descer do cavalo.

Baltoz era um antigo guerreiro, já MUITO velho, companheiro de QoNoxa desde pequeno. Só haviam mesmo se afastado por conta dos compromissos que tinham, o MUITO trabalho, questões de família, enfim. Mas eram bons amigos.

– Olha só quem o vento trouxe! Faz dias que não aparece. Veio calibrar essa garganta velha? – Baltoz passou anos caçoando de QoNoxa, dizendo que aquela voz grave e imponente era apenas fruto de MUITO do seu tabaco.

– Que outro motivo eu teria? – disse QoNoxa, descendo do cavalo rindo.

– Esse é o menino de quem me falou? – QoNoxa já havia lhe contado MUITO sobre Overim; a maioria dos fatos no dia daquela celebração quando Overim sumiu.

– Sim! Ele mesmo. – disse o velho, fazendo uma espécie de cafuné esculhambado na cabeça do jovem.

O olhar confuso e constrangido de Overim não o faziam parecer nada com a descrição que QoNoxa havia feito ao estanqueiro.

– Olá, meu jovem! – disse Baltoz, praticamente gritando.

– Olá! Então vocês são MUITO amigos? – perguntou Overim, tentando perder a vergonha.

– Nem tanto! – disse o curandeiro, fazendo seu olhar irônico enquanto já tateava o alforje à procura do cachimbo.

Baltoz soltou uma risada alta sobre o comentário e logo percebeu que o velho amigo olhava para dentro do alforje atrás do presente, dado por ele talvez décadas antes.

– Não trouxe o cachimbo, não é? Mas MUITO me espanta que ainda use aquela tranqueira!

– Não diga isso… ele é o melhor! – disse QoNoxa, fechando de uma vez o alforje, convencido de que não estava lá dentro. – Não está mesmo aqui, então me empreste ALGUM.

– Vou te dar outro, aquele me dá arrepios. Entrem! – o estanqueiro deu as costas e foi para dentro.

– Se são tão amigos, e você até falou de mim pra ele, por que não falou dele pra mim? Quem é ele, afinal? – perguntou Overim, ainda um pouco incomodado com a situação.

 – Pretendia apresentá-los num certo dia, mas você sumiu – o velho deu uma piscadela.

Havia quatro ou cinco jovens no campo próximo dali que podiam ser vistos de onde Overim estava. Ele não tirava o olho de lá.

– Jovem, me ajude aqui com essa caixa. – pediu Baltoz, apontando para a alça do lado de uma caixa grande com tabaco. – Vamos colocá-la ali em cima. – explicou, mostrando o lugar.

– Que temos aqui? – perguntou QoNoxa, com olhos curiosos.

– Desse aqui você ainda não experimentou. É uma novidade! Trouxe de um povoado subindo o rio Sampta Lunga, bem antes das corredeiras. E já estou produzindo!

– Ah, sim! É território dos pinages. 

– Isso mesmo!

– Já ouvi ALGUMa COISA sobre eles. Dê-me aqui um pouco.

– Hostis e assustadores, mas de bom gosto.

Enquanto riam e conversavam, botaram tabaco em dois cachimbos e, por um instante, esqueceram da presença do menino.

– Ora! Que mal educado sou! Jovem…

– Nem pense nisso, velho safado. – interrompeu com pressa. – Overim não vai cair nessa desgraça que caímos.

– Uma desgraça deliciosa!

– De fato.

Riram ainda mais, embora QoNoxa estivesse falando sério.

– Eu não quero mesmo respirar fumaça. Vou lá pra fora. – resmungou Overim.

– Faz bem! – disse Baltoz, olhando para QoNoxa, esperando que ele dissesse algo.

QoNoxa deixou Overim sair e continuou a conversa com Baltoz, pois queria que Overim se sentisse totalmente livre e sem a sensação de estar sendo vigiado. Aquilo faria bem a ele.

No campo, três meninos rindo corriam um atrás do outro. Talvez fosse ALGUM jogo, mas era difícil saber. Havia também uma menina sentada em uma pedra próxima ao campo preparando uma bola de couro, e parecia bem concentrada.

Um dos meninos correu em sua direção desatento, trombando nela com força, fazendo-a derrubar a bola. O susto foi grande. Overim estava a apenas alguns passos e foi até lá.

– Está bem? – perguntou Overim.

– Sim, mas a bola abriu de novo. – respondeu a menina, antes de olhar para ele.

– Quem é você? – perguntou um dos meninos. Um dos QaFuga que desde pequeno já demonstrava uma arrogância tal como a da QaNai dentro de si.

A menina o olhou rapidamente curiosa, pois até então havia pensado que a voz fosse de um dos três que ali estavam. Os outros meninos continuaram correndo de um lado para outro sem dar qualquer atenção.

– Meu nome é Overim. Você não me conhece porque eu moro perto das chousas. – explicou. 

– Ah! Que legal! – exclamou a menina. 

O menino não se interessou e foi até onde estavam os outros dois.

– Veja aí, você se machucou, olhe o seu joelho. – disse Overim, mostrando a ela onde a pancada havia acertado.

– Ah, isso? Não está doendo, pelo menos não agora.

– E pra que serve isso? – perguntou, olhando a bola de couro.

– Servia, né? Agora vou demorar pra consertar. É só uma COISA que fiz pra me divertir com eles. – disse apontando para os meninos, que já não estavam tão pertos dali.

Jogos com bola não eram nada comuns na cultura de QeMua. Overim não pareceu entender bem do que se tratava e ela continuou:

– Dá pra fazer MUITAs COISAs. Mas não posso te mostrar, só depois de consertar.

A bola tinha duas camadas de couro grosso e continha um enchimento qualquer, que eles sempre mudavam. O couro de fora havia rasgado e a costura precisava ser MUITO forte e apertada, mas estava difícil fazer um lado do rasgo chegar ao outro.

– Deixe-me ver. – Overim pegou a bola da mão da menina. – Me dê isso aí. – e também a agulha grossa com o cordão.

A menina não disse nada e assistiu tudo apreciando o talento do estranho. Overim tinha MUITO jeito com as mãos e já havia feito ALGUMas costuras bem mais complicadas para QoNoxa.

– Pronto! Veja se está certo.

– Haraf! – exclamou a menina, usando uma expressão típica dos jovens QaFuga, uma referência ao maior mago do clã em todas as eras.

Overim não ouvia MUITO essa expressão, nem a entendia MUITO bem, mas sabia que era algo bom. Ele sorriu.

– Como conseguiu? Eu demoraria MUITO! – a menina deu um abraço rápido em Overim, que se assustou, se constrangeu, mas gostou.

– Não é nada demais! Agora me mostre o que fazer com isso. – disse isso querendo desviar logo a atenção de si.

– Qual é o seu nome? Levante-se.

– Overim. E o seu?

– Luanda. – abriu um sorriso lindo e o puxou pelo braço. – Aquele que estava aqui é o Alef, e ele é daquele jeito mesmo. Os outros dois são Alepo, irmão dele, e o Berim.

– Certo.

– Vamos lá. Não a deixe cair, mas não toque com as mãos!

Luanda jogou a bola para cima e a tocou com o joelho, jogando na direção de Overim que, instintivamente fez o mesmo.

– MUITO bom! Agora tente isso. – deixando a bola rolar até o pé, lançou-a ao ar com força e segurou novamente com o outro pé. Overim achou aquilo fácil, mas ao invés de dizer isso, fez um outro teste.

– Passe pra cá.

Depois de amparar a bola com o pé, lançou-a à altura da cabeça e levou a perna inteira para trás, preparando um chute forte. O chute fez a bola sumir no clarão do sol que não permitia ficar MUITO tempo de olhos abertos olhando para cima. O barulho do chute fez Luanda se assustar, que deu um breve grito e tampou a própria boca com as mãos.

Os três meninos pararam o que estavam fazendo ao ouvir o grito e, quando se deram conta de que haviam deixado Luanda com o desconhecido, correram em sua direção.

A bola desceu do alto e Overim deu mais um chute, fazendo-a sumir outra vez. Os meninos viram e ficaram impressionados. Berim se maravilhou, mas Alef não gostou da situação que de fato não entendeu. Antes que Overim pudesse dar uma outra pancada na bola, Alef o empurrou com força para trás.

– O que você fez? – perguntou Alef, gritando já em tom de ira.

Overim não soube como reagir, mas sabia onde a bola estava caindo e não era no chão. Ele não fez questão de alertar Alef, que levou uma bolada na cabeça e caiu no chão, mas rapidamente se levantou. E agora além de ira, vergonha.

Luanda se colocou entre os dois virada para Alef e disse:

– Pare, Alef! Qual seu problema?

– Esse, esse…! – não sabia o que dizer, mas apontava com a mão para o cabelo avermelhado de Overim, tentando pensar numa forma de insultá-lo.

– Pare!

– Deixe, Luanda. Está tudo bem. Desculpe por incomodar. – Overim sentiu novamente o desprezo que já sentira várias vezes antes e, enquanto virava de cabeça baixa, Alef pegou a bola nas mãos e a lançou sobre ele com toda força.

Jio estava alerta desde o empurrão e enrijeceu a nuca de Overim, que não sentiu nada além de um empurrão, mas voltou os passos que tinha dado, pegou a bola e deu nas mãos de Luanda, que se encantou com o gesto.

– Seu mole! – foi só o primeiro insulto que Alef gritou, enquanto Alepo e Berim tentavam entender o motivo de tanta agressividade. Alepo era o irmão mais novo e teve até que segurá-lo, percebendo que desejava ir na direção de Overim, que apenas entregou a bola e virou-se novamente para sair dali.

Overim ouviu que Alef estava tentando tomar a bola das mãos de Luanda, e isso foi decisivo. – Ei! – esbravejou de longe.

Os olhos de Overim continuavam seremos, mas atitude havia mudado.

– Não toque nela! – voltou correndo, mas não intimidou Alef.

– O que vai fazer? Vai chutar a bola pra cima e correr? – perguntou Alef, rindo e olhando seus amigos, que não retribuíram o riso.

– E se eu chutar outra COISA? – disse Overim, aproximando dele apenas a cabeça, com um olhar sombrio.

Alef deu um pulo para trás pegando de vez a bola de Luanda. Ele a jogou para cima e chutou com toda a força no rosto de Overim, que não se moveu nenhum milímetro e deixou a bola atingi-lo em cheio. Jio providenciou que ele não sentisse nada, mas em seguida assumiu o controle. O aspecto da pele mudou.

Ver alguém tão jovem em Modo Nai e com aspecto tão peculiar daquele jeito foi fantástico para Berim e Luanda, mas Alef ficou aterrorizado e Alepo temeu pelo irmão, puxando-o para trás. 

Overim parecia ter uma armadura por debaixo da pele. QUASE não se notava aspereza ou porosidade em sua pele. Jio deu tudo de si, apenas porque queria afugentar o covarde e dar ALGUMa moral ao seu hospedeiro. Overim apenas assistiu as reações dos quatro.

– Não encoste mais nela e não se meta comigo. – disse no tom mais calmo que pôde.

– Filho! – era QoNoxa chamando. Ele havia observado tudo desde o grito de Luanda, mas não quis interferir. Sabia que Overim precisava resolver essas COISAs sozinho.

– Estou indo! – respondeu Overim. – E me desculpe. – disse olhando para Luanda, antes de correr até o estanque sem olhar para trás.

Overim se sentiu péssimo e estava envergonhado, mas antes que pudesse dizer ALGUMa COISA a QoNoxa, o velho voltou ao assunto com Baltoz. Era só uma forma de deixar Overim em paz e não constrangê-lo ainda mais. Mas Baltoz, que já sabia de QUASE tudo acerca do menino e tinha acabado de presenciar também o que se passara, teve que dizer:

– Você tem um grande futuro, jovem! Não perca tempo com bobagens, você tem mesmo um grandioso futuro!

Um futuro solitário, pensou Overim.

Vários minutos se passaram. Ouvir a conversa dos dois velhos não foi cansativo. Baltoz tinha histórias interessantes e a maioria bem engraçadas, só não tão engraçadas como as risadas que ele mesmo dava.

– Olá! – ouviu-se uma voz lá de fora.

– Veja pra mim quem é, jovem. – pediu Baltoz, sentado, enfiando mais tabaco no cachimbo.

Era Luanda, esperando que pudesse se desculpar pelos amigos.

– Me desculpe! O Alef, às vezes, passa dos limites. Queria que você voltasse lá e jogasse conosco, pelo menos um pouco. O Alef já foi embora.

Overim não sabia o que pensar, mas, quando olhou para trás, viu QoNoxa assentindo com a cabeça. Então, só restava aceitar. E lá foi ele, bem sem jeito atrás da menina.

– Não chute tão forte, não é um jogo de força. – disse Luanda, percebendo que, pela cara ansiosa de Berim, ele iria tagarelar.

Overim mal se aproximou e Berim não se conteve:

– Você fez o que eu acho que fez? Como consegue? E aquele chute? Haraf!

– O chute? Besteira. Nada de mais. – o Modo Nai era um assunto que Overim não queria conversar.

– Mas como você…?

– Ei, Berim. – Luanda também queria saber, mas viu que Overim se sentiu desconfortável.

– Oi? – Berim sempre demorava um pouco. – Ah! Perdão. Vamos lançar? – Berim estava falando de um jogo que eles faziam, arremessando a bola em um buraco feito numa tábua que estava em pé afundada no chão.

– Lançar? Lançar o quê? – perguntou Overim.

– Eu primeiro! – Luanda pegou a bola de Berim, foi até uma marcação no chão, próxima da tábua e arremessou-a em direção ao buraco. Era ALGUM jogo inventado por eles.

– QUASE! – disse Alepo.

Alepo era mais calado, mas gostava de jogar qualquer COISA que fosse. Pegou a bola e arremessou.

– Ah! – lamentou Luanda, vendo a bola entrar direitinho e sem tocar a tábua. – Sua vez Berim!

Berim estava mais interessado em ver Overim tentar do que em mostrar o quão ruim era nesses arremessos.

– Tudo bem, minha vez. Já que não tem jeito.

Foi um arremesso cheio de gracinhas para desviar a atenção da vergonha. A bola não tocou nem a tábua, quanto mais o buraco.

– Uou! Cheguei mais perto, não? – Berim riu e foi correndo buscar a bola. – Sua vez, Overim. É só acertar o bu… – antes que terminasse a frase, Overim tocou a bola pelo lado com uma das mãos e, sem reposicioná-la, nem olhar para ela, a arremessou olhando diretamente para o buraco.

A bola foi direta para o buraco.

– Isso! – exclamou Luanda, erguendo os braços.

– Ora! Quando eu acerto você se lamenta, quando ele acerta você comemora? – disse Alepo, simulando uma cara zangada.

O jogo, BASTANTE bobo, continuou por vários minutos. Eles todos puderam se soltar e se conhecer um pouco melhor. Para Overim, aquilo era inútil, mas deliciosamente inútil. Diferente de sua rotina, ali não havia pressão interna ou externa nenhuma. Ele gostava de treinar, mas o treino não era mera diversão.

Ao contrário dele, os meninos ali raramente treinavam qualquer habilidade. Geralmente, passavam o tempo apenas se divertindo e não estavam preocupados com problemas entre os clãs nem nada disso. Alef era o único deles que já tinha entrado em Modo Nai antes, mas ele era apenas um jovem comum, sem intimidade ALGUMa com sua QaNai. Tinha o porte físico mais avantajado que Alepo, mas apenas por ser alguns anos mais velho. 

Alef era BASTANTE competitivo. Depois de alguns minutos vendo, ao longe, o jogo, resolveu dar as caras. Enquanto caminhava em direção a eles, Alepo o esperou no meio do caminho e contou sobre os arremessos de Overim. Sobre tudo, Alef se sentiu incomodado ao ver Overim sentado ao lado de Luanda.

– Então, o queixudinho voltou? – disse Alef, tomando a bola das mãos de Alepo.

“Queixudo” era um jeito de dizer “metido”.

– Sim, voltou e você está segurando a minha bola. – comentou Luanda, olhando para Berim, que riu instantaneamente.

Overim deixou escapar um riso sutil também e Alef lançou a bola em sua direção.

– Que foi isso? – perguntou Overim, ficando em pé após ter segurado firme a bola com apenas uma das mãos.

– Pare, Alef! – exclamou Luanda, preocupada. – Por que voltou? 

– Quer jogar? – Alef perguntou, virando-se para Overim.

– Eu não superei nem seu irmão, jogue com ele.

– Você já tinha jogado isso? – perguntou Berim, para tirar a dúvida.

– Eu não.

– Alef, isso ele nunca treinou, mas aposto que ninguém ganha dele nos chutes. Nos chutes ele está bem treinado! – exclamou Berim, com um ar provocativo.

– Você treina esses chutes? Com quem? Pra quê? – perguntou Alepo, um pouco constrangido com a situação pelo vexame do irmão.

– Eu não treino nenhum jogo. Treino outras COISAs no rio. Eu… – disse, meio sem pensar, se atrapalhando nas palavras. – Eu não brinco MUITO. – explicou.

– Treina no rio? Você nada e dá chutes embaixo d’água como louco? – disse Alef, tentando provocar risada nos demais caçoando de Overim, mas ninguém se interessou no que ele disse.

– Bem, é isso. – Overim viu que aquilo não fez MUITO sentido, mas não sabia o que dizer.

– Mostre ALGUMa COISA que você faz bem. – pediu Alepo.

– Sim! Aqueles chutes! – insistiu Berim, ficando também em pé.

Aquela parecia uma oportunidade de ganhar o respeito deles todos. Ele era ótimo correndo, saltando, nadando, arremessando, nadando e qualquer atividade simples que eles pudessem escolher. Porém, ele também percebeu que se fizesse isso, apenas estaria trazendo a vida que o entediava para dentro da vida que buscava. Ficou pensativo, tentando decidir o que fazer, até que Luanda interferiu.

– Que COISA chata! Parece até que estamos interrogando um espião!

Todos riram e isso quebrou um pouco o gelo, mas Alef ainda queria encrenca; queria provar que era ainda o maioral por ali.

– Não vai mesmo mostrar o que fica treinando no rio?

Overim não notou sarcasmo na insistência de Alef, mas viu de longe QoNoxa olhando para ele.

– Talvez amanhã. Tenho que ir.

– Já vai? – perguntou Luanda.

– Acho que sim. Estão me esperando. – disse, apontando para o estanque.

– Vai com o papai? – provocou Alef.

– QoNoxa não é meu pai. Amanhã nos vemos? – perguntou, olhando para o lado de Luanda e Berim.

– Sim!

Luanda respondeu aliviada por não ter que presenciar outra confusão. Overim foi depressa para perto de QoNoxa.

– Já ia te chamar. – disse o velho, colocando uma mão no ombro do menino.

– Estamos indo?

– Sim – respondeu QoNoxa. – Vai conseguir aquela COISA pra mim? – perguntou para Baltoz, com ar misterioso.

– Sem dúvida! – respondeu, com uma mão na cintura e outra apoiando o cachimbo na boca.

Dali, eles foram direto para a casa de QoNoxa.

– O que achou de hoje? – perguntou o velho, já em casa.

– Louco! 

– Como assim?

– Empolgante!

– Ah! Viu que não vão te tratar como antes? Você ainda é o mesmo menino, com o mesmo jeito, mas está mais forte, mais ágil e mais concentrado. Se fosse o Overim de antes, talvez teria até dado uma lição naquele rapazinho lá.

– O Alef? O que sabe dele?

– Reconheço de longe um encrenqueiro.

– E seria uma ideia tão ruim? – perguntou Overim em tom irônico.

– Como poderia? – o velho riu e empurrou o ombro de Overim.

– Eu disse a ela… a eles! …que voltaria lá amanhã. – ficou sem jeito ao dizer algo que mostrasse sua intenção.

– Sem problemas. Por que não faz um quadro pra aquela menina?

– Um quadro? Não é estranho? – perguntou confuso, mas no fundo gostou da ideia.

– Você tem MUITOs talentos, mas não vai querer impressioná-la dando saltos e quebrando pedras, não é? Que tal essa pintura da cachoeira? Ela vai adorar!

Overim gostou da ideia. QoNoxa incentivou que ele fizesse uma moldura e, como não tinham MUITO tempo, começou fazer no mesmo dia.

O problema foi que no meio da confecção, o MUITO olhar para aquela pintura o fez sentir algo ruim. Sentiu como se entregar aquela pintura a Luanda não fosse algo sincero, mas não sabia explicar a sensação.

– Eu preciso pintar outra COISA! – gritou Overim lá de traz da casa, onde mexia na madeira.

– Como é? – perguntou o velho, saindo para entender.

– Preciso pintar outra COISA. Não posso dar isso a ela. Não posso mesmo.

Via-se claramente a decisão em seu rosto, mas também a confusão.

– E o que vai pintar? Acho que não vai ter tempo.

– O que eu faço?

– Acho que o jeito mais rápido é você desenhar outra imagem dessas. Pode ser? Faça uma gravura com você e ela, vai ficar ótimo!

– Sim! Obrigado!

Overim ficou entusiasmado novamente e acelerou a confecção com a ajuda do velho. O desenho ficou um pouco diferente e ele fez questão de mudar detalhes peculiares, mas ainda se tratava de uma cachoeira, a silhueta de duas pessoas – sendo agora ele e Luanda – e um reflexo n’água. Já era tarde quando terminou e preferiu dormir ali mesmo.

Logo cego, foram até o rio. Era fácil notar quão longe estavam os pensamentos do menino naquela manhã. QoNoxa não o repreendeu, pois isso era bom de certa forma. Ao menos não estava pensando no problema de sempre.

Chegou a hora de ir até o estanque e Overim estava ansioso. QoNoxa, que havia percebido tudo que se passara, combinou com Baltoz que almoçariam juntos – o velho, o menino, Baltoz e dois sobrinhos dele. Overim só ficou sabendo em cima da hora.

Foram até a casa de Baltoz, que ficava nos fundos do estanque, e lá da frente puderam sentir o cheiro delicioso do assado de javali, QUASE no ponto. Reuniram-se os cinco e as histórias não pararam mais. Um dos sobrinhos de Baltoz era Siegam, conhecido como “o Filho do Vento”, um rapaz MUITO ágil e MUITO veloz, que havia sido treinado por QoNoxa anos antes.

Siegam não tinha filhos e era viúvo. Havia perdido a esposa na mesma guerra em que Ranald, famoso guerreiro treinado por QoNoxa, morreu – contra os hakais – e foi após esse triste fato que começou a ser treinado pelo sábio. Seu irmão, Zovan, era mais calmo e nunca se meteu a ser guerreiro, apesar de manifestar bem o Modo Nai e ter sido obrigado a lutar na dita guerra. Ele tinha um filho da idade de Overim que não estava presente, assim como a esposa, que não gostava dessas “conversas de homem”.

A conversa foi boa e todos falavam BASTANTE, exceto Overim, que se sentiu bem entre eles, mas estava com a cabeça naqueles quatro do dia anterior; ou não exatamente nos quatro. Assim que comeram e se saciaram, ele ficou sem jeito de dizer que precisava se retirar, mas QoNoxa sempre dava um jeito.

– Filho, não tem que ver seus amigos? Não os deixe esperando.

– Sim! Já vou. Mais tarde eu volto. – foi saindo sem esconder a pressa.

– O quadro! – lembrou o velho.

– Ah! Obrigado. – pegou o quadro e saiu ainda mais apressado dos fundos do estanque.

Ao chegar lá na frente, viu MUITA gente, mas deu uma boa olhada e não avistou nenhum dos quatro. Havia outras crianças menores correndo de um lado a outro, ALGUMas mães as cuidando, alguns anciãos do clã sentados à sombra e alguns outros jovens fazendo sabe-se lá o quê.

Overim se preocupou. Pensou que talvez tivesse sido desagradável de ALGUMa forma; MUITO sério, apático, áspero ou desinteressante mesmo. Isso começou a corroê-lo e parecia que tudo ia voltar a ser como era: sem ninguém para dividir as alegrias ou as dores, sem ninguém para se divertir ou apenas se distrair; sem amigos.

Depois de longos minutos parado ali já angustiado, sentou-se num banco de madeira por ali e colocou o quadro atrás dele. Pouco depois, sentiu que alguém se aproximou e parecia querer tocá-lo. Ele olhou rapidamente: era Luanda, com seus olhos enormes e esverdeados.

– Oi! – disse Luanda, baixando a mão que ia tocar no ombro de Overim.

– Você veio. – os olhos úmidos de Overim brilharam.

– Vim. Eu moro naquela casa. – apontou para um conjunto de casas todas parecidas que ficavam ao norte do estanque. – É aquela do meio, que tem um tronco na frente.

– Onde estão os outros?

– Acho que eles não vêm. – disse, baixando a cabeça.

– Foi algo que eu disse?

– Depois que você saiu, ficamos pensando no que você disse. Você disse que aquele homem era QoNoxa, não disse? – o olhar de Luanda era confuso, parecia impressionada e espantada.

– Disse, mas qual o problema? Vocês o conhecem? O que ele fez? – Overim ficou ainda mais confuso, mas esperava que tudo não passasse de um mal entendido.

O que ele não imaginava era que o nome de QoNoxa por aqueles lados era MUITO mais falado do que por perto de onde morava. QoNoxa não era apenas um ancião conselheiro e curandeiro do clã. O sábio era uma lenda QaFuga; uma lenda viva. Um dos pouco QaFuga bem vistos fora de seu território, mas também temido por seus feitos. Havia treinado alguns dos maiores nomes do clã. Como havia passado os últimos anos MUITO ocupado e sem andar MUITO pelo outro lado da aldeira, as crianças não o conheciam de vista, apenas pela fama, que era grande. Overim, por outro lado, estava MUITO acostumado com o velho e não tinha noção de sua fama. Antes de se isolar para os treinamentos, era novo demais para entender tudo o que QoNoxa representava.

– E quem não conhece esse nome? Só depois disso entendemos o que você queria dizer com “treinar”. Você treina com ele? É o curandeiro que está te treinando? – perguntou Luanda, já MUITO alterada.

Overim não entendeu por que era tão surpreendente ele treinar com QoNoxa. Afinal, não tinha noção do que isso representava.

– Sim. Eu treino com ele! Mas o que isso tem a ver?

– Isso significa que você pode ser perigoso! – disse Luanda, percebendo imediatamente que poderia ter usados palavras melhores. – Me desculpe, mas nós ficamos com medo. – sussurrou, desviando o olhar.

– Mas medo de quê? O que eu fiz?

QoNoxa era uma lenda. Mas ser treinado por ele poderia significar ALGUMas COISAs não MUITO boas.

– Se nós não estamos em guerra e você está sendo treinado por ele, eu só consigo pensar em dois motivos: ou o clã vê você como um problema e está contando com a ajuda do curandeiro pra te recuperar e disciplinar, ou alguém fez uma proposta MUITO boa pra ele te treinar por ALGUM motivo obscuro.

A partir dali, Luanda começou a explicar qual era a ideia que o povo daquele lado tinha sobre as pessoas dali que haviam sido treinadas pelo velho, apesar do respeito pelo ancião. Contar aquilo foi como um desabafo. 

Overim não soube o que dizer. Ficou paralisado. Percebeu que MUITO da dedução dela era o que ele também já tinha deduzido sobre si mesmo e sobre a vida que estava levando.

– Luanda…

Eles se olharam alguns segundos.

– Por que acha que eu apareci por aqui?

– Bem, sabemos que Baltoz é amigo de longa data do curandeiro, mas não sabíamos que aquele ancião era ele.

– Eu não vim por Baltoz, só o conheci ontem. Eu vim porque nunca tive amigos e não quero passar minha vida toda assim.

O olhar e o tom de voz de Overim tocaram fundo Luanda, que tocou sua faze com uma das mãos.

– Por que você não tem amigos?

– Estou treinando faz tempo e não vejo ninguém, só QoNoxa e minha família. Antes dos treinos eu via pouca gente da minha idade e eles não gostavam de mim. Acho que era por causa do meu cabelo. – explicou Overim, esfregando os dedos na cabeça.

– Mas seu cabelo é lindo. Deviam ter inveja! – Luanda riu, mas sabia o que o povo pensava também sobre quem tinha cabelos vermelhos.

Eles se olharam por mais alguns segundos em silêncio.

– Até o Alef ficou com medo?

– Ele jamais diria isso… na verdade, disse que não se importava. Mas ele quis dizer “alguém me ajude, eu o irritei”. – contou Luanda, dando risada. Overim também não teve como conter o riso.

Eles se sentaram e Overim pôde contar um pouco mais sobre sua vida antes e durante o treino. Contou até sobre o ataque das hienas, escondendo alguns detalhes, e contou sobre a ida até a cidade feirante e MUITAs outras COISAs. Ele só não disse nada sobre a perda de memória e suas duas saídas da vila às escondidas.

Depois da conversa, Luanda não temia mais Overim. Ela olhou várias vezes para o lado da casa de Berim, que ficava ao lado da sua, e o viu espiando. Disfarçou o incômodo até onde pôde.

– Berim está morrendo de vontade de vir aqui. A casa dele é a casa à direita da minha, se olhar agora vai ver só a cabeça dele.

Overim virou rápido e o viu tentando se esconder.

– Vamos até lá? – perguntou Luanda.

– Vamos!

Overim já estava mais animado e o desabafo foi um alívio. Foram até a frente da casa e Berim não estava mais lá; havia se enfiado para dentro quando percebeu que iam na direção dele.

– Berim! Pode vir! – gritou Luanda.

A mãe de Berim saiu pela porta da frente para ver quem era, mas, QUASE ao mesmo tempo, apareceu o gordinho vindo dos fundos, todo atrapalhado.

– É a Luanda! – disse Berim, olhando sua mãe, indo em direção à menina.

– Tudo bem, Berim? – perguntou Overim, rindo.

– Sim. E você? – Berim estava completamente constrangido.

Luanda puxou Berim para o lado e começou a explicar ALGUMas COISAs de forma resumida. Já tinha avisado Overim que faria isso enquanto caminhavam até ali. Overim voltou até o banco de madeira e os esperou. Berim compreendeu bem ALGUMas COISAs e outras nem tanto, mas foi aos poucos perdendo o receio. Os três conversaram durante boa parte da tarde até que QoNoxa o chamou com um assovio que ele reconheceu fácil.

– Ah! QUASE me esqueci. Eu trouxe algo pra você! – Overim estava falando do quadro. Luanda já tinha visto o quadro atrás do banco de madeira, mas apenas a parte de trás.

– Um quadro? – indagou Berim, achando inusitado.

– Uma pintura que eu fiz ontem.

Ele entregou o quadro a ela e se despediu dos dois brevemente sem dizer se voltaria no dia seguinte. Eram MUITAs COISAs na cabeça. Foi correndo até QoNoxa que segurava algo novo em suas mãos: um objeto com formato circular, como uma argola achatada, dentro de uma proteção de couro escuro. Na frente da casa só estavam Baltoz e Zovan.

– Obrigado, Baltoz! Não sei o que faria sem sua amizade. – disse QoNoxa, aparentemente se referindo às histórias que relembraram, mas era difícil dizer.

– Quê? Meu único favor foi ter te dado uma voz de homem! – brincou Baltoz.

– Então, acho que vou te dar alguns cachimbos dos grandes!

– Que folgado!

Saíram em seus cavalos lentamente. A sensação dos dois era parecida: alívio, satisfação e esperança.

– Não foram dias perdidos, mas vamos ter que recuperar esse tempo de folga. – disse o velho.

– Certo!

O fundo do rio, a lâmina e mais

O treino recomeçou mais puxado que nunca e Overim se mostrava MUITO mais animado. Fazia todas as atividades com um sorriso no rosto, que só desaparecia brevemente dando lugar às caretas de esforço. Alguns dias se passaram e a vontade de rever Luanda e Berim só aumentava.

Num dia, QoNoxa o fez correr no entorno do rio por todo o perímetro do território de QeMua. O velho o acompanhava a cavalo. Overim certamente levaria o dia todo para retornar ao ponto de partida. Bem antes de completar o percurso, quando passou perto da casa de Luanda, pediu para fazer uma pausa e foi até lá. Chamou-a, mas ninguém veio.

– Olá, Overim! Luanda não está em casa, saiu com seus pais. Foram para ValMare já faz uns dias e acho que voltam só amanhã. – disse Berim, gritando da casa ao lado.

– Ah! Certo!

– Sentimos sua falta. Por que demorou tanto pra voltar?

– O treino. Tive que recuperar o tempo. – Overim não demonstrava, mas estava emocionado com o que Berim havia acabado de afirmar.

– Vai me ensinar como dar aqueles chutes? – brincou (mas nem tanto).

– Hoje não. Só estou de passagem. QoNoxa está me esperando no rio. Mas vamos ver isso outro dia, com certeza, pode ser?

– Legal!

A mãe de Berim o chamou e ele teve que atender. Saiu todo empolgado para os fundos.

O que é aquele movimento estranho com as mãos quando ele está feliz? – pensou Overim, achando graça da afobação de Berim.

Overim não tinha MUITO jeito. Parecia rude. Mas era apenas por não saber como se expressar. 

Não querendo perder mais tempo, foi até o velho e continuaram o percurso. De volta à estaca de Zarath, QoNoxa finalmente iria testar o artefato que conseguira com ajuda de Baltoz.

– Vamos ver se isso ainda funciona! – exclamou o velho, retirando aquela argola estranha do alforje.

– Você trouxe isso da casa de Baltoz, não foi?

– Sim, ele conseguiu pra mim.

– E o que isso faz?

– Bem, se ainda funcionar, vai ser nosso medidor por enquanto. – respondeu QoNoxa, tentando tirar a argola de dentro da proteção de couro.

– Mas o que isso vai me…

– Isso! – interrompeu o velho, ao sentir mais uma vez em suas mãos a lâmina NeixaOin, uma das armas mais poderosas deixadas aos homens pelos Acsï.

Aparentemente, não podia-se usá-la mais. Ao menos, ninguém conseguia isso já fazia MUITO tempo. Mas ela tinha um outro propósito além de ferir.

– Filho, agora que gastou bem suas energias é um momento excelente para tocá-la. Pegue-a.

Naquela lâmina havia a essência dos Acsï em sua composição, embora ele não entendesse o que exatamente isso significava, nem cresse nisso. A energia que percorria aquela lâmina, outrora tão perigosa e destrutiva, agora serviria primeiramente para que o menino pudesse sentir e diferenciar com clareza um tipo específico de energia.

QoNoxa colocou a NeixaOin nas mãos de Overim. Com as forças tão baixas como estava, havia ficado MUITO mais sensível ao fluxo de energia da lâmina, que, agora, parecia gritar em suas mãos. Na verdade, só isso não era o suficiente para conseguir diferenciar e isolar aquele padrão de energia, pois havia algo além das determinações do mundo conhecido pelos os homens correndo ali dentro, e a essência só poderia se fazer conhecida a alguém que já tivesse seu corpo acostumado com aquela energia. Foi isso que tanto tempo dentro do rio – o qual também emanava o mesmo tipo de energia – permitiu a Overim.

Assim como foi com QoNoxa, logo que tocou a lâmina, Overim sentiu algo surpreendente. Era uma sensação de terror, um pavor súbito que entrou por seu braço e o fez de imediato querer lançá-la ao chão. Só não o fez por que QoNoxa ainda não tinha largado completamente a lâmina e estava segurando seu braço, ciente do efeito que ela causava.

– Resista! – bradou o velho.

Aquela sensação era oriunda de uma proteção contra seu uso pleno. Overim precisava lidar com a sensação, pois ela simplesmente não sumiria, nem se tornaria mais fraca ou mais fácil. Era preciso suprimir os instintos e os sentimentos para que apenas o corpo experimentasse e filtrasse aquele fluxo que o havia tomado por inteiro.

QoNoxa pretendia usar a NeixaOin para algo que ele mesmo havia conseguido obter no treino de um de seus discípulos, o Filho do Vento. Quanto mais aquelas sensações esvaíam as forças de Overim, mais a energia da lâmina se diferenciava e se destacava. Porém, ele não poderia isolá-la e defini-la se seus pensamentos continuassem a ser afligidos e distorcidos pelo terror que a NeixaOin lançava sobre ele. QoNoxa estava MUITO prevenido para essa ocasião e usou uma das mãos para lançar um feitiço sobre o menino, deixando-o mais calmo. Isso permitiu que ele aumentasse sua concentração.

– Está sentindo correr através de você? – perguntou o sábio, já um tanto desgastado (ou seria devastado?) pelo pavor da lâmina, que também segurava.

– Eu posso sentir! – confirmou Overim, abrindo bem os olhos, surpreso após começar a sentir os contornos da forma daquela energia. – O que eu faço agora?

– Você só tem que compreendê-la! Me diga quando não tiver mais dúvidas sobre como ela é!

Aquilo se seguiu mais alguns minutos que pareceram intermináveis aos dois, até que Overim estivesse convicto de que podia distinguir aquela energia de qualquer outra. Ele usou sua outra mão para afastar a mão de QoNoxa de seu braço e soltou a lâmina no chão.

– Vou guardar isso. – disse QoNoxa, respirando ofegante, zonzo e trêmulo.

– Haraf! – exclamou Overim, que fez o velho olhá-lo curioso.

– Desde quando fala isso? – perguntou rindo, enquanto ainda tentava guardar a arma circular. QUASE não teve condições de pôr a lâmina na proteção de couro novamente.

– Ah, esquece! Por que quis que eu sentisse isso? – deu uma sacudida na cabeça, como se tentasse afastar a terrível sensação; ou ao menos esconder a expressão que sabia ter no rosto.

– Não posso te falar ainda, porque pode atrapalhar amanhã, quando formos usar o que você aprendeu hoje. Por hoje, chega. Vamos pra casa. Preciso me deitar logo.

A noite seria dessas que parecem curtas demais, não fosse o fato de que Jio estava também evoluindo com esses treinos no rio. Com a ajuda de Jio e sua ótima condição física, Overim se recuperou em poucas horas e na manhã seguinte não sentia fadiga nem dores musculares. Estava apenas ainda um pouco indomocado emocionalmente com as sensações trazidas pela lâmina.

Fazia MUITOs dias que QoNoxa já não ia mais buscar Overim em casa. Ele o esperava na colina e só lá emprestava um dos cavalos; era com uma leve corrida que o menino começava o dia.

– Você parece MUITO bem. – disse o velho. – Que pena!

– Por que isso é ruim?

– Por que vamos ter que fazer algo tão desgastante como o que fizemos ontem, ou não poderemos continuar. O que sugere?

– E se eu correr com aquela COISA amarrada em mim? – se referindo à lâmina.

– Você quer mesmo fazer isso?

– Não. – respondeu sem enrolar e sem nenhuma expressão facial.

– Está certo. Vamos tentar isso, mas você não pode fazer o mesmo que fez ontem. Ou seja, não se concentre na energia, não preste atenção nela! Foque na corrida ou vai cair no meio do caminho.

A corrida começou e QoNoxa o acompanhou a cavalo.

Não foi algo fácil. A lâmina minava Overim de uma forma devastadora enquanto ele corria, mas o mais complicado era tentar não notar as gritantes nuances de energia fluindo em seu corpo. Quando pareceu a QoNoxa ser o suficiente, tirou a lâmina das costas de Overim e o fez correr de volta até o monumento.

– Pule na água! – gritou QoNoxa, apontando o caminho do rio.

Overim mal teve tempo de respirar, ou sequer de pensar no que fazer. O desgaste mental era tão grande quanto o sífico.

– Não enrole, vamos! – apressou o velho.

Ele apenas se deixou cair no rio fechando os olhos e tampando as narinas; o cansaço era MUITO. Não sabia exatamente o que precisava fazer, pois QoNoxa disse que não podia explicar para não atrapalhar. O primeiro mergulho não durou mais que alguns segundos. Ele precisou logo voltar para respirar. Ainda estava MUITO ofegante por conta da corrida. Esperou alguns segundos vendo se a respiração normalizava e afundou novamente. Dessa vez, por um longo momento.

Ele logo emergiu e mergulhou novamente. Fez isso repetidamente durante alguns minutos, até que QoNoxa o chamou.

– Filho! Espere, não mergulhe ainda. Eu estou cansado só de ficar te olhando. Já está um tédio isso aqui!

– Ajudaria se você me dissesse o que quer que eu faça. – disse Overim, dando com os ombros.

– Só queria saber se você consegue sentir a energia do rio, e pelo visto ainda é cedo. Mas não tem problema! – disse o velho.

– Está falando dessa sensação parecida com a que a lâmina também passa?

– Sim! Então você estava sentindo?

– Eu sinto, mas eu sinto isso faz MUITO tempo. Era só isso mesmo?

– E por que não me disse? – esbravejou o velho, entusiasmado e irritado, se sentindo um tolo, um tanto constrangido.

– Se você tivesse perguntado eu teria dito!

QoNoxa não tinha como saber desde quando exatamente Overim já identificava a energia do rio. Aparentemente, tinha sido MUITO antes do esperado. 

– Por que acha que a energia do rio é a mesma da lâmina? – inquiriu o velho.

A energia que fluía do rio era diluída. Além disso, não tinha aquele fator determinante que dificultava segurar a lâmina.

– Não sei… não sei ao certo. A do rio é MUITO difícil de sentir, MUITO fraca.

Um dos estudos inacabados do sábio era justamente sobre essa energia. Overim talvez pudesse ajudá-lo a concluir sua pesquisa e a entender como usá-la dali alguns anos, mas para isso era necessário que ele experimentasse ainda uma outra COISA.

– Preciso te mostrar uma COISA. Venha até aqui. – disse o velho, apontando para um ponto específico do rio, MUITO perto do monumento.

– O que quer que eu faça agora?

– Há um buraco por aqui. É difícil de encontrar. Não é tão apertado, dá pra mergulhar por ele sem dificuldades a partir de uma determinada profundidade, mas é escuro. É como um túnel. Não foi feito propositalmente pra se chegar a lugar ALGUM, um tipo de poço natural que se formou do lado da estaca. Se você encontrá-lo, pode ir MUITO fundo. E quanto mais fundo, mais fácil será de concluirmos o que começamos.

Overim ficou confuso. O velho explicou tudo novamente, em detalhes.

– Como exatamente é essa passagem? – perguntou Overim, mais por curiosidade do que por disposição.

– Eu já entrei uma vez… é por aqui. – fez um gesto tentando explicar – Tem que ir tateando o fundo, próximo à estaca, até encontrar uma parte mais saliente. Siegam tampou o buraco e eu não sei como ficou.

– Siegam? Siegam tampou? Mas por quê?

– Sim. É uma longa história, mas ele tampou por precaução. Alguém podia cair lá e ficar preso.

– E por que acha que eu não vou ficar preso?

– Por que você não é uma criança comum. Confio em você. Com Jio acho que você pode até mesmo criar um novo buraco pra subir se precisar. De qualquer forma, eu estou aqui, não estou?

– E por que quer que eu desça tão fundo?

QoNoxa não disse nada. Ficou calado olhando com um sorriso no rosto. Overim confiava o suficiente em QoNoxa para tentar esse mergulho, o único receio era sobre ter tão poucas informações sobre o que devia fazer. Ele hesitou por alguns segundos e depois mergulhou.

Sua hesitação não foi pela falta de informações, mas apenas por ter olhado seu reflexo n’água e ter sido brevemente tocado pela lembrança rápida da imagem obscura dele e Ailin sentados em frente à cachoeira do Silêncio, que não tinha ideia do que se tratava, mas sempre mexia com ele.

Por fim, fez como o velho orientou: foi tateando o fundo com uma das mãos e, como a água ficou turva, a outra mão encostava na estaca, servindo de orientação. Emergiu e imergiu ALGUMas vezes até que encontrou algo. Havia uma parte mais inclinada do chão, encostada na estaca. Assim que empurrou de cima dela a terra e as pedras menores, sentiu que era lisa, diferente de todo o resto. Siegam havia tampado o buraco com um escudo de madeira que havia encontrado por ali mesmo, no fundo do rio.

Ao remover o escudo, adentrou o buraco e notou que logo depois do começo a passagem se alargava conforme ele descia. Poucos metros abaixo já não podia nem sequer tocar as extremidades com os braços abertos. Voltou mais uma vez à superfície para pegar fôlego e desceu em rumo ao abismo.

Ele foi fundo, MUITO fundo, e não tinha ideia do quão longe estava. Preocupou-se demasiadamente com a falta de orientação, com a temperatura que parecia estar aumentando e com o fôlego. Mesmo assim, emergiu com olhos arregalados, aparentando ter percebido algo inusitado. Não disse nada, apenas submergiu outra vez.

Dessa vez não teve medo, desceu de uma vez o quanto pôde. A pressão era tão grande que começou atrapalhar seus movimentos. A cada metro o esforço parecia dobrar. Num determinado pouco, teve uma leve tontura. Jio, que já estava alerta, preferiu não esperar pelo pior e tomou o controle. Em Modo Nai, Overim pôde observar com mais calma tudo que acontecia ao redor e não teve dúvida: havia no rio uma energia sendo dissipada, uma energia semelhante à da NeixaOin. No momento que achou apropriado, Jio decidiu voltar, subindo com MUITA força, dando uma pancada na entrada do buraco. Eles QUASE pularam para fora do rio.

– Você está bem? – perguntou QoNoxa, assustado ao vê-lo em Modo Nai.

Overim reassumiu o controle instantes depois e saiu da água respirando rápido.

– Agora sim eu senti! – disse ele, engasgando e olhando para o velho sem conseguir ainda sorrir.

– Se acalme, tente respirar devagar, segure mais o ar.

QoNoxa esperou que ele se recuperasse e disse:

– Antes que você diga ALGUMa COISA sobre o que sentiu e tire conclusões precipitadas, toque a lâmina outra vez! – QoNoxa já havia tirado a lâmina do estojo de couro, então segurou uma das mãos de Overim e a pressionou contra ela.

Overim fechou os olhos com força. Ele apertava os dentes enquanto sentia outra vez o terror da NeixaOin.

– Consegue perceber que a energia e o pavor que está sentindo tem essências diferentes? Eles vêm do mesmo lugar, fluem de dentro da mesma lâmina, mas tem essências diferentes.

Quando percebeu nos olhos de Overim a expressão nítida de que havia compreendido do que se tratava a explicação, QoNoxa afastou a lâmina da mão dele e a embainhou novamente.

– Acha mesmo que essa energia do rio é a mesma da lâmina? – perguntou Overim, tentando assimilar o que sentiu.

Ele compreendeu que duas sensações diferentes fluíam da lâmina, e uma era MUITO semelhante à que sentia no rio. Mas precisava raciocinar.

– É isso que estou tentando descobrir há MUITO tempo! – disse o velho. – Na verdade, não posso afirmar que sejam a mesma energia, mas obviamente elas têm a mesma essência. – explicou.

– Tenho certeza disso! A da lâmina é mais difícil de entender, mas é mais intensa e mais pura. A do rio é suave, talvez por que esteja mais misturada, não é?

– Ótima análise, filho!

– Agora, vai me dizer o que é essa lâmina e tudo o que ainda não me contou?

– O nome dessa lâmina é NeixaOin. Adaptada da língua antiga, significa algo como “forjada longe”. Ela não pertence a homem ALGUM, porque ela não é para o homem e é por isso nunca iremos usá-la com seu real propósito. Simplesmente não é possível. Mas eu sabia que ela serviria bem pra te fazer perceber a energia que vem do rio.

– Mas pra quê eu preciso sentir a energia do rio?

– Não precisa… se bem que pode te servir no futuro. O fato é que se você consegue sentir a energia do rio quer dizer que sua sensibilidade aumentou, e se foi por causa do tempo que passou no rio, você já está se beneficiando dessa energia. Provavelmente Jio também.

De fato, Overim era excepcional. Porém, não só o rio, mas várias outras COISAs haviam favorecido que ele fosse como era, desde o ambiente familiar, o mal trato das outras crianças, seu temperamento, sua personalidade e, obviamente, sua passagem pelo Silêncio e tudo que isso envolveu.

Overim começou a se lembrar do primeiro dia de treino no rio. Lembrou-se que QoNoxa o havia feito segurar nas argolas e dito algo sobre o fluxo de energia das mesmas. Levantou-se correndo no meio de uma explicação do velho e foi até as argolas. Esticando bem os braços, e com o rosto na pedra, tocou as duas argolas.

– E as argolas? – perguntou Overim, enquanto as tocava.

QoNoxa estava tão focado pensando em seus estudos que se esqueceu das argolas.

– Era isso, não era? Aquele dia você queria saber se eu podia sentir a mesma energia!

– Está sentindo?

– Claro!

QoNoxa e Overim conversaram longamente sobre a energia da lâmina, do rio e das argolas, todas da mesma essência, mas levemente diferentes. QoNoxa sabia que a NeixaOin havia sido criada por um acsi, assim como as argolas. Ele só não compreendia a energia que vinha do rio.

Depois desse dia, todos os treinos passaram a ter uma seção de mergulho profundo, e essa não foi a única mudança. QoNoxa passou a levar Overim até o campo próximo à casa de Luanda ALGUMas vezes por semana. Ele também pretendia incluir Siegam aos treinos, mas não disse nada sobre isso.

Os dias iam passando e a amizade de Luanda e Berim se tornou essencial na vida de Overim, que encontrou neles não só alívio, mas também apoio. Berim conseguiu ter as dicas sobre aqueles chutes que sempre pedia e até convenceu Alepo a não temer Overim, que por sua vez convenceu Alef. Os dois irmãos, com o tempo, também se tornaram parte do cotidiano de Overim, já que não queriam se afastar de Luanda e Berim. 

Assim como Overim, a vida de Ailin precisava de ser repensada.

Novos rumos

Depois do episódio do presságio e o tumulto, Ailin não teve como deixar de notar alguns olhares insinuantes em sua direção. ALGUMas pessoas tentavam disfarçar, mas outras pareciam fazer questão de mostrar descontentamento com a presença dela. No entanto, os mestres começaram espalhar boas notícias pela vila sutilmente para que o medo do mau presságio fosse esquecido, já que era também um assunto com o qual o conselho já estava tentando lidar.

Detalhe: era impossível espalhar boas notícias sem ao menos pensar nas notícias sobre as missões de Ailin, que eram sempre um sucesso.

Havia uma notícia mal contada de que Ailin teria vencido um pequeno exército sozinha numa missão. Na verdade, o que houve foi que um valente espalhou de maneira exagerada uma situação verídica em que a menina afugentou um grande número de pessoas de um clã de MUITOs guerreiros, mas que naquela situação se tratava apenas de um bando de baderneiros que não respeitavam a propriedade alheia. De qualquer forma, essa notícia, assim como ALGUMas outras, fazia com que a confiança de alguns em Ailin crescesse e que o temor de outros aumentasse.

Essa vida agitada e com tantas responsabilidades era o que ela havia sonhado por MUITO tempo, mas agora via o quão difícil era lidar com aquela pressão toda, principalmente sem ter alguém que pudesse entendê-la. Ela sempre podia contar qualquer COISA a Elinon, que estava sempre disponível e era MUITO atencioso. Porém, por mais que tentasse, não se sentia melhor quando compartilhava os problemas com ele. Ailin precisava de Ainan, e não só dele: precisava de uma vida mais comum.

Voltando de uma longa cavalgada com Elinon, Ailin deixou escapar que se sentia sozinha e que estava começando a se cansar daquela vida. Elinon sugeriu que ela passasse mais tempo com os amigos, só não imaginou que Ailin tivesse tão poucos. Ainan era seu único amigo de verdade e havia se afastado aos poucos pela falta de atenção.

Bran, um dos tutores da vila, havia sugerido ao conselho que liberasse Ailin para uma atividade conjunta com os outros de sua idade para incentivá-los, mas até então essa ideia havia parecido perigosa por causa da objeção de alguns pais. Depois da conversa com Ailin, Elinon enxergou na ideia de Bran uma oportunidade para fazer a menina se aproximar de seus colegas e, quem sabe, ter parte de uma vida normal. Assim que chegaram ao planalto, Elinon foi ter com Bran.

– Olá, meu velho!

– Ora, se não é o bravo Elinon! Deve ser algo importante pra vir me procurar. Nunca tem tempo para os velhos amigos, não é?

– Não exagere. – riu Elinon. – Repensei sobre o que disse sobre Ailin interagir com a sua classe, mas preciso saber no que exatamente você pensou em fazer.

– Ah, então é sobre isso. Certo. Bem, eu pensei em ALGUMas COISAs, mas eram só pretextos, nenhum deles MUITO interessante. – explicou Gran, dando com os ombros. – Mas por que a mudança de planos agora?

– Ailin está fadigada da vida nova, talvez o contato com os antigos amigos a faça se sentir melhor, ou pelo menos uma boa lembrança da vida antiga a faça recuperar o ânimo.

– Entendo, Elinon. Mas você sabe que alguns pais ainda estão assustados e não param de comentar sobre o presságio de Tsaron, não é?

– Sei disso, por isso o que fizermos deve ser bem pensado, bem planejado.

– E não teve nenhuma ideia? – perguntou Gran, tentando também lembrar se ALGUMa das suas prestava.

– Na verdade, tive sim. 

Elinon explicou toda a ideia a Gran e eles passaram um tempo planejando o que fariam. Não seria algo fácil, eram MUITOs detalhes parar que saísse tudo como pretendiam. De qualquer maneira, eles estavam decididos a tentar.

Dias depois, Gran começou os preparativos e levou um plano de aula prática aos jovens.

– Alguém aqui sabe como tratar as feridas de um haka salmado?

Salma era uma doença que atacava os hakas, uma espécie de gripe que os fazia ficar um pouco pegajosos e que atrasava a cicatrização natural caso estivessem nesse estado quando se machucavam.

– Todos sabemos! – gritou um dos alunos.

– Você mesmo nos ensinou, não foi? – reforçou outro.

– E como se faz? – perguntou Gran, com uma mão na barriga e outra no queixo.

– Com erva roxa! – ALGUM deles disse.

– Parece fácil, não é mesmo? Mas alguém aqui já viu erva roxa?

– Minha mãe tem num pote em casa.

– A minha também!

– Mestre, acho que todos já vimos erva roxa. Qual o mistério?

– O mistério? Bem, aposto que vocês apenas viram pronta para uso, mas nenhum de vocês a viu crescendo no chão. – disse Gran, deixando os jovens pensativos e curiosos. – Já se perguntaram por que não temos erva roxa plantada aqui no planalto?

Ninguém soube responder. Houve apenas alguns resmungos.

– Aí está! Vocês nem sequer saberiam onde encontrá-la. É por isso que vamos fazer ALGUMas viagens e tornar nossas aulas mais eficientes.

Os alunos vibraram, pois aquela era sempre a aula mais entediante.

– Todos sabem cavalgar? – perguntou Gran.

Obviamente, todos sabiam, pois aprendiam essas COISAs com um outro tutor. Então, Gran providenciou cavalos para todos e partiram sem fazer questão de comunicar outros tutores ou sequer os pais.

– Para onde vamos? – perguntou Ainan, ansioso.

– Quando estivermos mais perto eu digo! – Gran fez suspense, o que motivou a todos, mas causou certo receio em um jovem ou outro.

Saíram pela estrada a oeste da vila e partiram em direção a um penhasco a cerca de uma hora de cavalgada do planalto. No meio do caminho, alguns já deduziam que estavam indo para lá, pois já tinham ouvido algo a respeito da erva roxa que lá crescia. Gran notara o cochicho entre eles, mas não se incomodou e seguiu conversando sobre QUASE tudo, menos sobre aonde iam. Por fim, chegaram à inclinação que precedia o penhasco.

– Quem sabe onde estamos? – perguntou o mestre, descendo do cavalo.

– Esse é o penhasco onde Jeú profetizou mil noites? – palpitou um dos jovens.

Jeú havia sido o último profeta hakal.

– Exatamente. Daqui vamos a pé, então amarrem seus cavalos ali – apontou para um tronco grande e firme caído. – Os hakas vão ficar aqui também.

Eles foram até perto da beira do penhasco, mas ainda não viram nenhuma erva roxa.

– Cadê a erva roxa? – perguntou Ainan.

– Quero que todos vejam, mas vocês devem fazer do jeito que eu orientar. Quem não seguir à risca vai descer até os cavalos e esperar. Estamos entendidos?

Todos concordaram.

Gran orientou que todos deitassem ao chão alguns metros antes da beirada do penhasco e se arrastassem até a margem, que era assustadora e costumava dar tonturas. Todos fizeram como ele pediu: deitaram-se ao chão e se arrastaram até lá.

– Podem ir mais um pouco pra frente, mas só até todos conseguirem ver a erva na parede do penhasco. Só não se arrisquem! Se passarem toda a cabeça e não enxergarem, voltem e esperem até que alguém ceda um lugar melhor.

Na parede do penhasco havia pouca erva, mas era fácil de enxergar. A cor forte brilhava BASTANTE com o sol e saltava à vista.

– Como é que faz pra pegar isso? – alguém perguntou, assustado com o perigo que havia em se tentar qualquer COISA além do que estavam fazendo.

– Pegar essa erva dali é bem difícil mesmo. – comentou Gran, sem responder a pergunta.

– Tem tanta erva na vila! Como nunca ouvimos ninguém dizer que se arriscou pra pegar?

– Essa é a parte mais interessante! – disse Gran. – Primeiro, voltem devagar até onde estávamos.

Parecia ter mais terra em suas roupas do que no chão. Eles se estapeavam tentando se limpar, enquanto Gran esperava sentado no chão segurando um ramo que havia pegado ali em cima mesmo.

– Diga, mestre! Vai nos matar de ansiedade desse jeito! – disse um dos jovens, enquanto Gran parecia completamente distraído observando o ramo que havia colhido.

– Pode se acalmar? – pediu Gran, olhando de canto de olho para o jovem. – Ei! Todos, por favor, sentem-se no chão um momento. – continuou concentrado olhando e baforando o ramo.

Eles todos se sentaram, alguns já inquietos, e passaram a observar curiosos o que Gran fazia. De repente, o ramo começou a mudar de cor, passou de verde a uma cor azulada até ficar completamente roxo diante de seus olhos. A cultura hakal aprendeu a temer a magia, então imaginaram que não podia ser isso, mas esperaram em silêncio até que Gran explicasse.

– Estão vendo? É isso. Com um pouco de conhecimento sabemos que não é necessário se pendurar perigosamente no penhasco pra colher erva roxa, pois ela está por todo o penhasco! – apontou para a vegetação que havia por todo o chão ali em volta.

– Mas tudo isso é a erva roxa? Por que ela não está roxa?

– É a mesma planta, mas as que nascem embrenhadas na rocha da parede do rochedo ficam com uma coloração roxa por causa de algo que acontece dentro delas quando são aquecidas levemente. E isso não é possível aqui onde estamos por que o chão é frio. Não sentiram suas barrigas gelarem?

Todos haviam sentido e se incomodado um pouco enquanto se arrastavam até a beira, mas ninguém questionou. Aquele solo era frio e isso Gran não sabia explicar, mas era o que mantinha a cor verde da erva.

– Vamos, tentem!

Os alunos colheram empolgados alguns ramos e baforavam sobre eles esperando a reação acontecer enquanto Gran foi para perto da beirada do penhasco e viu que um grupo se aproximava por aquele lado, perto já do penhasco, ainda distante dos seus cavalos.

Alguns alunos ainda não tinham conseguido ver a cor roxa no ramo que haviam colhido, mas foi preciso interromper:

– Precisamos descer. Já! – alertou Gran, se mostrando preocupado.

– O que houve? – perguntou Ainan, apreensivo.

– Tem um grupo vindo pelo outro lado do penhasco. Em menos de meia hora estarão perto dos nossos cavalos e daqui não temos como saber se são um grupo pacífico ou ladrões. Peguem suas COISAs e vamos descer agora!

A descida até os cavalos levou cerca de dez minutos até que todos conseguissem arrumar suas COISAs e montar os cavalos, mas antes que saíssem, avistaram o grupo à frente vindo rapidamente em sua direção.

– E agora, Gran? Eles vão nos alcançar!

– Vamos voltar pelo caminho que viemos, rápido! Eu fico atrás, vá na frente Ainan.

Correr não mudou o aparente objetivo do bando, que também rumou para o lado que eles haviam escolhido. O medo foi tomando conta dos jovens aos poucos. Alguns minutos depois de terem partido e próximo de serem alcançados, já com alguns deles chorando, um outro grupo de hakais apareceu ao longe no rastro do bando.

O bando desconhecido alcançou o grupo de Gran, que parou após um dos jovens ter se atrapalhado na cavalgada e parado pelo caminho.

– Continuem! Eu preciso voltar, mas não parem por nada! – gritou Gran, voltando até onde estava o jovem, que já estava cercado.

Ainan não aceitou a orientação e foi logo atrás de Gran, motivando todos os outros a fazerem o mesmo. Os alunos ficaram atrás de Gran, que desceu do cavalo já em hakiba. O bando parecia gritar palavras de ordem, mas em outro idioma, o que trouxe ainda mais confusão.

Rapidamente, o outro grupo de hakais os alcançou. Dentre eles estava Elinon e Ailin. Sadi saltou do cavalo em hakiba, exibindo seu machado, que por si só pôs fim à gritaria daquele bando. O bando não se entregou, apenas se intimidou.

Até então, ainda não era possível deduzir qual era o propósito do bando. Seu líder gritou algo que todos os valentes entenderam, mas não as crianças. Elinon conhecia o idioma do bando, mas a frase que o líder gritou era mais antiga. O homem havia invocado um código de honra conhecido que estabelecia que, para que nem todos precisassem se envolver em batalha, apenas um representante de cada grupo lutasse, mas sem armas e sozinho, o que descartava o hakiba.

Elinon traduziu o conclame do líder do bando e respondeu ao líder, dizendo depois aos hakais o que dissera:

– Eu disse a ele que a família Hakal é pacífica e preza pela justiça, mas que somos a pior gente pra se meter!

Os hakais vibraram junto com Elinon, que continuou:

– Eu disse que não queremos problemas e que ninguém precisa sair daqui humilhado, mas que o menor de nós é maior que qualquer um deles. Disse também que aceitamos que tudo se decida numa luta de um a um e que já escolhi nosso guerreiro.

Os jovens o olhavam temerosos sem entender o que ele pretendia. Na verdade, toda aquela situação parecia MUITO extravagante para estar acontecendo com eles. Aquilo certamente era o desfecho de algo anterior.

– O menor de nós contra o seu melhor homem! – gritou Elinon, com tanta confiança que até chegou a convencer os jovens. O problema era que “o menor” parecia querer dizer “qualquer um entre esses jovens”. Agora, cada um deles esperava que outro fosse escolhido.

Elinon apontou para Ailin, que sorrateiramente havia descido de seu cavalo e já estava entre os jovens. Ela foi saindo do meio deles, indo em direção ao líder, que riu nervoso. O riso expressava ódio e ao mesmo tempo vergonha. Um dos homens do bando veio com o cavalo à frente. O sujeito era enorme.

– É esse que vai pagar pelo bando? – perguntou Ailin, impondo respeito e mostrando confiança. Elinon traduziu ao bando, que ficou inquieto esperando que a menina fosse espancada.

Ailin esperou que ele descesse do cavalo dando as costas com os braços cruzados. O homenzarrão irritado desceu do cavalo todo atrapalhado de nervoso, esperando dar apenas um tapa na cabeça da pequena. Apesar de tudo, parecia errado agredir a pequena menina.

Ailin esperava por ALGUM golpe e ficou olhando para Bukie em sua frente, que fez um sinal quando ele desferiu o tapa. Ela se esquivou e empurrou o braço do guerreiro, que foi ao chão por conta da força que ele mesmo havia lançado o golpe. Ailin piscou em agradecimento ao seu pequeno companheiro.

A cena que se seguiu foi bizarra. Ailin subiu nas costas do homem e começou a gargalhar, pois o homem não conseguia golpeá-la. Ele apenas podia tentar tirá-la puxando com as mãos, mas teve um dos braços imobilizados e quando tentava mexer o outro, ela lhe apertava o primeiro. O líder do bando e Elinon conversavam à distância enquanto isso.

O líder do bando perguntou em tom áspero se a menina apenas faria gracinhas e esperaria o oponente se cansar dela. Elinon respondeu que ela também podia matá-lo se eles preferissem, mas que achava isso desnecessário e prefiria voltar para casa cedo. 

Segundos depois, com um sorriso provocante, Elinon perguntou se eles gostariam que a pequena acabasse logo com aquele vexame.

Ailin saiu das costas do grandalhão e parou em sua frente, se esquivando com facilidade dos golpes. O homem não resistiu e puxou uma faca da bota indo para cima dela. Isso infringia as regras da disputa. Elinon soltou um brado:

– Hakaaaais!

Todos saltaram de seus cavalos e quem podia já estava em hakiba prestes a derramar sangue, mas Ailin não deixou.

– Fiquem onde estão! – disse ela, se desviando das facadas, mas desta vez com um semblante sombrio.

No quinto ou sexto golpe, deixou que a faca passasse bem próxima de seu rosto, fazendo com que o homem, assim como naquele primeiro tapa, se lançasse com MUITA força ao nada. Ela aproveitou novamente essa força e, com uma das pernas servindo de tropeço a ele, golpeou suas costas lançando-o ao chão. O pobre homem caiu sobre a faca.

Não pareceu MUITO grave e isso deixou a situação mais vexatória. Como se não bastasse tanta vergonha na luta, o homem ainda se esfaqueou? Isso levou os valentes a rirem descontrolados, ao ponto que os jovens por um instante até se esqueceram da tensão e só não puderam rir também.

Ailin correu para o seu cavalo, pegou ALGUMas ervas e também um pedaço de tecido. Ela voltou até o homem que já estava cercado pelas pessoas do bando.

– Saiam da frente! – gritou Ailin, empurrando quem podia. Ninguém compreendeu, mas todos estavam apreensivos pela aparência ofensiva que todos os hakais haviam tomado.

Elinon desceu do cavalo, em hakiba ainda, fazendo com que se afastassem do homem ao chão e de Ailin. A facada não havia entrado fundo. Aparentemente, se desviou pelas costelas e rasgou apenas a carne logo abaixo. O único perigo poderia ser a perda de sangue, que estava sendo resolvida pela menina enquanto o homem suspirava de dor e susto, olhando confuso a ação dela.

Ailin tirou com cuidado a faca, estancou por completo o sangue, limpou a ferida, colocou uma erva que ajudava na cicatrização, juntou os lados da carne separada pelo corte, prendeu com grampo que os hakais usavam nesses casos, ao invés de costurar, e vedou o local com mais erva e um tecido próprio para isso, que logo se prendeu ao sangue ficando bem firme.

Os jovens hakais não perderam nenhum detalhe da audácia e atitude final de Ailin que, ao terminar, ganhou um abraço de Ainan.

– Você foi incrível! – sussurrou Ainan em seu ouvido. – E está linda. – acrescentou.

Elinon chamou Gran e conversaram a sós brevemente. Em seguida, o tutor mandou que os jovens voltassem com ele para o planalto enquanto o grupo dos valentes cuidaria do restante por ali. O que ninguém imaginava era que aquela situação sem sentido ALGUM havia sito meticulosamente planejada por Gran e Elinon. 

O plano de Elinon foi aproveitar uma missão contratada por outro clã, que geralmente fornecia especiarias aos hakais (incluindo a erva roxa). O objetivo da missão era expulsar um bando que havia se apoderado de um território aliado e havia se tornado uma ameaça a quem passava por perto. Enquanto o grupo de crianças perdia tempo distraído com a erva roxa, Elinon fazia sua parte.

O grupo de Elinon se posicionou num ponto do caminho de forma que podia ser visto MUITO de longe. O banco, ao perceber o grupo potencialmente perigoso, fugiu pelo único caminho que fazia sentido, fazendo exatamente o trajeto que Elinon queria: o contorno do penhasco em direção aos cavalos dos jovens hakais.

Ou seja, quando o bando se aproximou das crianças, os homens já estavam agitados e temerosos. Quando os três grupos estavam já próximos e no meio daquela gritaria toda, Sur, o haka de Elinon, se esgueirou por entre o bando e sussurrou “mai te salan amä”. Esse foi o código invocado pelo líder do bando na forma sonora que todos os clãs conheciam, cujo significado em sua língua de origem era algo como “o sangue de um pela honra de todos” ou “um sangra, mas todos são honrados”. O líder do bando quando viu estar cercado e não ter outra saída, foi coagido sem perceber a invocar o código pelo sussurro de Sur que rondou sua cabeça.

Um plano bem executado que mostrou aos jovens hakais não só o potencial de Ailin, mas também seu caráter.

As longas horas de cavalgada até o planalto trouxeram MUITA reflexão, MUITOs comentários e momentos momentos de euforia, que espantaram por completo toda a má impressão e as informações maldosas ou equivocadas que todos eles tinham ouvido sobre Ailin.

A situação era a seguinte: se o presságio de Tsaron não era sobre Ailin, o mistério era ainda maior e valia a investigação. MUITOs do clã já pensavam assim e acompanhavam diariamente a pesquisa e ensinos de Tsaron.

Os hakais não tinham pelos pressagistas o mesmo temor que tiveram pelos profetas ou mesmo pelos videntes. Ainda assim, a maioria respeitava Tsaron – ainda que alguns hostis, por medo ou desprezo. Tsaron tentava ao máximo compensar sua falibilidade com conhecimento. A revelação havia sido encerrada, mas isso não significava que ela não tivesse nada a dizer para aqueles dias. Ao contrário, se a revelação estava encerrada, ela tinha tudo o que deveria ser dito para todos os tempos. Por isso, Tsaron estudava MUITO tudo que encontrava a respeito das profecias, o que incluía as anotações de outros sábios que vieram antes dele. E ele não apenas estudava, mas também ensinava a quem se interessasse.

Enquanto o grupo de jovens hakais, agora escoltado, voltava para o planalto, as especulações continuavam. Uma das profecias que estavam fazendo alguns perderem o sono era a que falava de Huani. Essa era a palavra que os hakais antigos usavam para se referir ao mal, a representação abstrata que suponham reinar sobre tudo que não era bom. Com o tempo, essa palavra foi caindo em desuso e seu significado também foi sendo modificado, ao ponto de todos naqueles dias entenderem que a profecia sobre Huani fosse, na verdade, sobre Daxa, o que fazia BASTANTE sentido. Eles até mesmo usavam a palavra para se referir a ele, às vezes.

– Como podemos ter tanta certeza? Huani não é o próprio Mal? – perguntou Andagon, discípulo do pressagista, no meio de uma conversa sobre ALGUMas profecias problemáticas.

– Sim! E o que é o mal, se não uma alegoria sobre tudo que se opõe ao que é bem? – disse Tsaron.

– O que quer dizer?

– O nosso mal parece ser não prever direito o que nos sobrevirá… – comentou Glenan, outro ouvinte/seguidor do pressagista

– Creio que Huani seja mesmo só um nome criado que personifica o mal, seja ele qual for. – respondeu Tsaron.

– Explique melhor, mestre! Você acredita que Huani seja apenas um dos males?

As respostas do pressagista pareciam tanto afirmar quanto negar a ideia de que Daxa fosse Huani.

– Huani é o próprio mal, e o Abominável, junto com outros problemas em outras eras e em outras nações, talvez possam ser interpretados como o próprio mal; eles são Huani.

– Ah! Dessa forma, sim, para nós Huani seria ele, não é? – concluiu Glenan.

– Isso. Posso acreditar que haja um mal maior que ele, quem sabe até alguém que o comande e nem mesmo seja esse mal maior, mas é difícil imaginar que o mal que virá até nós seja outro além deste, que já nos devastou e humilhou por vezes, restando apenas profecias de esperança.

O que o pressagista queria dizer era que para os hakais, o mal certamente era Daxa.

– Então, quando a profecia fala daquele que desafiaria Huani em campo aberto, está falando de um guerreiro que conseguiria subjugar o próprio Vapor de Ferro. Mas por que desafiá-lo em campo aberto?

– É engraçado como Nuhat providenciou as COISAs para nós. Por que quanto mais você conhece sobre os estragos que o Abominável causou, mais você percebe que a crença cega e limitada do nosso povo sobre essa profecia está correta. Ele é MUITO forte e é uma força destrutiva MUITO ágil, mas apesar de parecer intocável, já mostrou-se de certa forma vulnerável em alguns episódios.

– Isso eu gostaria de ter visto! – disse Andagon, empolgado com as histórias que certamente viriam a partir dali.

– Seu último deslize foi na última vez que apareceu, na luta contra Aodin no Dia de Sangue, quando foi atingido em cheio pela Vesek Akruel.

– Será que a menina Ailin terá sua chance? – interrompeu Glenan.

– Que bobagem, Glenan! – esbravejou Andagon – Continue a história, por favor. Como Aodin conseguiu pegá-lo? – olhava Tsaron atento.

– Aodin conhecia bem as histórias sobre as batalhas que ele havia aparecido. Sabia que em terreno plano nunca ninguém pôde surpreendê-lo, pois ele se move leve como o vento e ataca por todos os lados. O único jeito sempre foi fugir, mas raramente isso foi possível também. Os que conseguiram durar mais tempo diante da besta o fizeram escolhendo bem o terreno para onde correram: cavernas, lagos, terrenos rochosos, florestas, etc. Foi assim também com os que ousaram enfrentá-lo e tiveram um tempo de vida maior do que de costume, como Aodin.

– Nosso guerreiro foi o que durou mais? – perguntou Glenan.

– Não. Pelo que sei, houve um outro guerreiro e ainda um mago. Ambos se mantiveram de pé por mais tempo que Aodin, mas também sucumbiram. Aodin, no entanto, foi quem o atingiu com mais força, ao que parece.

– Quem foram esses outros dois – indagou Glenan, e os ouvintes todos, que eram mais de dez silenciosos, mal podiam respirar esperando a resposta da boca de Tsaron.

– O guerreiro foi Ïtaro, dos relatos segundo constam no livro de Jeú, e o outro foi o Mago de Cipre, cujo nome foi esquecido propositalmente pelos antigos que contaram suas histórias.

– Isso é estranho. O nome foi esquecido propositalmente? Qual seria o motivo? Fazê-lo ser esquecido? – questionou Glenan.

– Não, claro que não. Se aqueles que esqueceram seu nome foram os mesmos que contaram suas histórias, a ideia não era ignorá-lo. O problema era outro: eles temiam pronunciar o nome do mago, pois seu nome por si só era um feitiço.

Todos sentiram um frio subindo pela espinha, até Andagon quebrar o clima:

– O Mago de Cipre é aquele que foi esculpido nas rochas pelos Acsï?

– Isso provavelmente é só uma lenda. Duvido que aquela estátua tenha sido feita por eles, mas a imagem é do rosto do mago, sim.

– E qual foi a artimanha que ele usou contra o Vapor de Ferro?

– Alguns dizem que ele ergueu barreiras invisíveis num campo onde já sabia que seria encontrado pela besta, e usou magia escura para se defender, mas outros dizem que foi justamente por ter usado apenas magia branca que não pôde dominar o Vapor de Ferro, pois o preço do pacto o teria feito fraquejar antes do fim da batalha. Por outro lado, Otsa escreveu que ele “não deveria ter abusado do favor daquelas almas”, mas ninguém soube ao certo o significado dessa anotação e de onde o profeta retirou as informações que tinha sobre o mago.

– Isso é MUITO confuso! – murmurou Glenan, coçando a cabeça.

– E quem foi Ïtaro? – perguntou Andagon.

– Foi um bravo homem abençoado por Nuhat, escolhido para libertar seu povo MUITO tempo atrás. O guerreiro não conseguiu alcançar o sucesso de seu chamado, mas teve o amor de Nuhat até os últimos momentos, quando se redimiu, dando sua vida pelo povo contra a criatura.

– Parece uma história bonita. – sussurrou um discípulo. – O final foi trágico, mas foi honroso. Mais um hakal que trouxe orgulho mas foi esquecido por nós.

– Na verdade, Ïtaro não era hakal. Isso foi MUITO tempo atrás. E há MUITAs histórias como esta, mas o importante é que em nenhuma delas há alguém desafiando o Vapor de Ferro em campo aberto, ou pelo menos fazendo-o tremer, como sugere a profecia.

– É mesmo. Mas isso parece tão improvável que talvez seja só uma forma de expressar a grandiosidade do acontecimento ou a bravura do escolhido. – ressaltou Andagon.

A discussão estava em torno de uma parte pequena de uma profecia do Livro dos Sábios, cuja frase principal dizia “o riso de Huani se tornará temor quando vier aquele que o desafiará em campo aberto”. Outros povos usavam nomes parecidos com este para retratar o mau, mas Tsaron estava convicto de que se tratava especificamente de Daxa, ao menos naquela profecia, e isso significava que, tanto podia ser Daxa uma representação do mal ou que ele fosse o que tantas nações haviam descrito como o “príncipe da escuridão”.

Por esses dias, a profecia foi relembrada por MUITOs e estava cada vez mais viva nos lábios de todos. Algo ruim estava próximo de acontecer, mas se a profecia sobre Huani se referisse a Daxa, então o juízo contra Daxa também podia estar próximo, pois aquele que o enfrentaria em campo aberto calaria seu riso.

A cada dia aumentava a visita de mais e mais hakais a Secaji Diba – o rochedo que continha inscrições sobre o findar das COISAs – para relembrar ALGUMas profecias e tentar fazer ALGUMas conjecturas.

MUITA COISA andava acontecendo na vila e alguns já pensavam que Ailin poderia ser a escolhida que derrotaria o abominável acsi. Já existia essa discussão entre alguns, que tentavam interpretar ALGUMas profecias apontando para a menina, mas era difícil explicar o significado da parte da profecia que dizia “o poder surgirá estranho e o fará tremer”.

Se fosse sobre Ailin, “estranho” não poderia se referir a “estrangeiro”, como seria lógico. Mas então a que seria? O que é que surgiria “estranho”? Essa era a dúvida de alguns, enquanto outros afirmavam que a raridade de uma Vesek Akruel a tornava como que estranha (estrangeira) no meio deles. Enfim, não se chegava a um consenso, mas todos sabiam que “estranho” se referia a alo de outra nação. Só restava saber como isso aconteceria de fato.

Do ponto de vista dos mestres, em especial Elinon, o que importava era tirar da mente de todos a ideia de que Ailin era um problema para a família Hakal. Por isso o esforço dele e Gran com a armação que haviam feito. 

Quando Elinon contou sobre o sucesso de seu plano com Gran aos demais conselheiros, que ainda não sabiam de nada, eles ficaram um pouco irritados ao saber da tramoia. Mas também viram nisso uma boa oportunidade e cederam a Gran que envolvesse seus alunos e seu espaço com Ailin.

Outros tutores também gostaram da ideia e fizeram o mesmo pedido ao conselho, sendo todos atendidos, o que resultou em um tempo menor de Ailin voltado para missões e treinos, e um tempo maior em família e com outros jovens, agora admiradores e amigos.

Depois que as pessoas declaram uma opinião particular fica MUITO difícil voltar atrás, se retratar ou simplesmente engolir o orgulho e mudar de ideia. Mesmo já refutadas, ou até convencidas, o fator mais forte numa mudança assim é o orgulho pessoal. Curiosamente, ninguém se importa com isso quando alguém muda de ideia, mas parece o fim do mundo quando nós é que precisamos mudar. Então, é claro que a fama de Ailin não se transformou como num passe de mágica. Foi gradual e levou tempo. A questão era que o orgulho dos opositores não era suficiente para contornar o que todos, um a um, experimentavam acerca dela.

Enquanto isso, Ainan se aproximava de Ailin cada dia mais, assim como Luanda se achegava a Overim. Ambos foram vivendo suas vidas, crescendo, amadurecendo, tentando suprimir aquele grito no peito através de aventuras, amizades e treinos, na esperança de que aquela ânsia um dia passasse. Bem, não parecia estar funcionando.

De qualquer forma, tanto Ailin quanto Overim já haviam aprendido o suficiente para compreender que o amor não é uma sensação. Aliás, sensações podem até ser infinitamente duradouras, mas elas não são necessariamente boas. Na verdade, as pessoas costumam legitimar essas COISAs só por causa da sinceridade das sensações. E como é difícil explicar a alguém essa confusão!

Overim e Ailin estavam aprendendo, pela experiência, que amar traz sentimentos e sensações, mas não se baseia nelas. Amar é uma decisão, é um compromisso firmado. É uma posição com relação ao que se ama. Por isso, a cada dia mais firmavam os laços de amizade com as novas companhias e eram admirados cada vez por mais pessoas de seus clãs, mesmo tendo que suportar dia após dia o incômodo dentro de si, afastando os pensamentos de frustração por não saber nada sobre os dois períodos da escuridão na memória.

Os efeitos de um passado distante

Na primeira era, MUITO antes do tempo de Ailin e Overim, e até mesmo de seus clãs, os homens sucumbiram à sua própria corrupção. Tendo se afastado da verdade, dopavam-se de prazer para que, de ALGUMa forma, não sentissem a falta de significado nas suas vidas. Antes que maldade se multiplicasse e alcançasse nas duas dimensões, houve uma intervenção que as separou.

De um lado, Fonte Azul, o Juízo de Nuhat veio sobre os seres, poupando a poucos. Depois do Juízo, o grande evento ganhou um sinal nos céus como forma da humanidade se lembrar do peso que abateu o planeta. O outro lado, porém, não presenciou o evento. 

Desconhecer o que aconteceu foi apenas uma maneira diferente de puni-los. Não saber do motivo nem da consequência colocou todo o planeta em total cegueira.

Porém, mesmo isolados em Fonte Azul, havia todos os meses um efeito daquele evento que afetava todas as forças sobrenaturais e todos os atos mágicos. A criação natural não era afetada, mas o efeito fazia com que como todos os seres de outros domínios ou determinações fossem enfraquecidos – não neutralizados. Essa era a forma das criaturas que detinham mais força serem lembradas por Nuhat de que dele vinha todo o poder. 

O poder inexplicável do Silêncio que havia tomado as memórias de Overim e Ailin também era afetado pelo evento, mês após mês. Ele se mantinha operante sobre os dois, mas manter aquelas memórias longe deles era cada vez mais difícil, pois os dois estavam agora MUITO fortes e com os sentidos MUITO mais sensíveis. Agora, todas as vezes que o evento acontecia, e as forças sobrenaturais se enfraqueciam, fazia MUITA diferença para os dois.

Durante ALGUM curto tempo, todos os meses, vislumbres cada vez mais fortes das lembranças perdidas começaram surpreendê-los. Eles ainda não entendiam o que era aquilo, mas também não tinham mais medo como no início. Nesses pequenos períodos, eles percebiam que ficava cada vez mais fácil pensar sobre aquelas ocasiões, pois as tonturas, náuseas e dores de cabeça não eram mais tão fortes e duravam menos tempo.

Nem Ailin nem Overim queriam que aquilo se tornasse uma obsessão. Porém, era difícil ignorar que parecia estar ficando mais fácil se lembrar. Conforme as semanas, meses e alguns anos se passaram, os dois, cada um ao seu tempo, foram percebendo que deviam tentar se lembrar todos os dias, mas insistir apenas naquelas vezes quando lhes parecesse oportuno, quando estivesse fácil.

Para Ailin, já fazia ALGUM tempo que ela não tinha dúvidas de que o mistério estava especificamente no Vale das Preces. Para Overim não era tão simples, pois a segunda vez em que o Silêncio tomou suas memórias o estrago foi grande e abrangeu um espaço de tempo MUITO maior, de forma que não houve MUITA semelhança entre os pontos de referência. A amnésia tão mais forte talvez tenha acontecido por ele hospedar um outro ser, recebendo assim uma dose maior do ato do Silêncio. Ainda assim, Overim não pensava MUITO na primeira perda de memória, mas na segunda, que era mais vívida em sua mente, ainda que mais distante do lugar.

Os dois achavam que poderiam descobrir algo em breve. Ailin organizou seu tempo a partir das atividades exigidas pelo conselho, mas de uma maneira que sobrasse cerca de uma hora diária QUASE todos os dias, além do tempo que passava com sua família e amigos. Nesse período, ela corria às escondidas para a entrada do temido Vale das Preces, sempre pelo seu atalho, e observava o lugar sem adentrar. Bukie não gostava nada da ideia, mas sentia que ela ficava aliviada cada vez que voltava de lá, então descia com ela sem questionar. De todos da vila, Ainan era o único que sabia, pois havia se tornado o confidente da menina. Contudo, não descia junto e tampouco sabia qual era o motivo; um mistério que estava longe de ser revelado.

Overim deixou as cansativas corridas até o estanqueiro Baltoz e passou a ir cavalgando. A desculpa foi que preferia começar por lá os treinos das tardes. Obviamente, o velho percebeu que era por causa de Luanda e que Overim só não queria chegar lá tão suado, ou algo assim. Alguns dias, QoNoxa deixava a manhã ou a tarde livre para que ele fosse até lá sem essas preocupações, mas Overim raramente fazia isso, ele preferia ir até um pouco além do rio e lá refletia sozinho. Assim como Ailin, ele estava praticando seu confronto contra a influência do Silêncio.

O encontro decisivo

Overim constantemente ensinava COISAs úteis a Luanda e a Berim. Uma delas foi o truque da borracha no calçado. Mostrou também onde encontrar árvores de onde retirar essa borracha e como usá-la. Também estava tentando ensinar a arte da montaria a Berim que, estranhamente, não sabia nada dessas COISAs.

– Não que eu esteja com medo, mas você podia ter trazido aquele outro cavalo, aquele que não tem esse olhar de quem quer me matar! – disse Berim, temendo subir no cavalo de QoNoxa.

– É impressão sua! Esse cavalo é mais controlado que o que eu uso, esse olhar é de cansado, ele já passou MUITA COISA. – comentou Overim, passando forte a mão pelo lombo do cavalo.

– Se isso não é medo, eu não sei o que é. – sussurrou Alepo no ouvido de Luanda.

– Eu ouvi! – esbravejou Berim. – Pra vocês é fácil falar, praticamente nasceram em cima de cavalos! Mas eu não sei fazer isso e não sei se levo jeito. – olhava apreensivo para o cavalo, que o olhava de volta ainda com aquele mesmo olhar.

– Não tem segredo, Berim. – disse Luanda, arrumando o estribo afim de ajudá-lo a montar.

– Na verdade, tem alguns. Mas são todos bem simples. – comentou Overim. – E só tenho como te mostrar se subir de uma vez. O que está esperando? É só segurar aqui, por o pé aqui e… hup!

Berim fez o que ele disse e foi para cima do cavalo, apenas para QUASE tombar do outro lado. Depois de ALGUMas risadas, ele tentou de novo, mas dessa vez Overim ficou mais atento e não deixou que se repetisse o fiasco. Aquele seria o primeiro passeio de Berim sozinho em um cavalo. 

Saíram os quatro em três cavalos: Berim no cavalo de QoNoxa, Alepo em um cavalo próprio e Luanda no cavalo de Overim. Eles gostaram, mas o passeio não durou MUITO. Berim era um pouco gordo e não tinha MUITA flexibilidade nas pernas, que logo começaram a arder.

– Podemos voltar agora? – perguntou Berim, imaginando se conseguiria andar no dia seguinte.

– Vamos então. Amanhã talvez eu não venha, mas nem adianta tentarmos de novo tão cedo, vamos esperar que essas pernas desinchem! – disse Overim, que tinha visto quando Berim deu alguns socos nas próprias virilhas, provavelmente formigando.

– Acho que esses estribos não estão numa altura boa. – argumentou Berim, e bem que podia ser isso mesmo.

– Na próxima vez eu arrumo melhor. Você tem pernas maiores que as de QoNoxa, não me lembrei disso.

Naquele dia, ainda fizeram MUITAs COISAs juntos e para Berim foi um alívio não terem sido COISAs com cavalos. Serviu de experiência até dois dias depois, quando Overim reapareceu, pronto para continuar de onde pararam. Dessa vez, ele se lembrou de fazer o ajuste na distância do estribo. Depois de ter deixado QoNoxa no estanque, levou o cavalo até o campo e chamou Berim, que já estava com Luanda, sem Alepo. Overim ajudou Berim a montar e fuçou na sela até encontrar um ajuste que ele dissesse ser confortável e saíram os três dali a galope.

Bons minutos depois, Overim ouviu o assovio alto de QoNoxa, era hora de voltar. Berim se mostrou mais tranquilo dessa vez, mas ainda reclamando de dores nas pernas.

Overim tentou reajustar o estribo, correia e loro rapidamente antes de levar o cavalo até o velho, mas se atrapalhou e deixou a sela cair. Ao recolocá-la, com ajuda de Luanda, não pôde deixar de perceber uma inscrição na parte interna do látego, mas olhou-a apenas alguns instantes, sem se ater a detalhes. Apenas continuou os ajustes, se despediu dos dois e foi embora.

Dias depois, as cavalgadas simples com Berim e Luanda ganharam percursos diferentes e desafiadores. Assim Berim pôde passar por situações diferentes e desenvolver-se como cavaleiro. Todas as vezes era necessário ajustar partes da sela ao tamanho de Berim e todas as vezes Overim dava uma olhada rápida na parte de trás do látego, naquelas curiosas escritas, até que, finalmente, num dia de treino no rio lembrou-se delas e perguntou ao velho:

– Vô, que COISA é aquela escrita atrás da cinta direita do seu cavalo?

– Escrita atrás da cinta? – QoNoxa foi até o cavalo. – Está falando disso aqui? O látego?

– Sim! Mas nesse não, no da direita.

Ele deu a volta no cavalo e desprendeu o látego. Ao olhar a parte interna do couro, levou um susto: aquela escrita se parecia MUITO com os textos mais antigos que ele tinha, que vinham sendo guardados por sábios de vários clãs desde eras remotas até chegar a seu poder.

– Não sei como isso veio parar aqui. É intrigante, pois eu mesmo fiz essa sela, mas não lembro onde consegui o couro. – disse o velho, passando o dedo levemente sobre os cortes no couro, com um olhar confuso.

– Mas o que é isso? O que está escrito?

– É uma língua MUITO antiga. Talvez eu possa decifrar, mas vai levar ALGUM tempo.

QoNoxa tinha MUITOs escritos com aquela escrita e conseguia ler as inscrições, mas apenas por conta de MUITAs traduções que também lhe foram confiadas. O texto inscrito no látego, porém, tinha MUITAs palavras que ele não conhecia. 

Overim continuou o treino, um pouco menos incomodado com aquilo, mas longe de estar satisfeito. Diferente de QoNoxa, que não estava apenas insatisfeito, mas completamente intrigado. Foi uma noite longa para o sábio, que revirou seus escritos antigos em busca de ALGUMa informação.

No outro dia, após ter perdido a noite na empreitada, não foi até a colina esperar Overim, que ficou lá por um tempo e voltou preocupado até a casa do velho. Chegando lá, o chamou ALGUMas vezes, mas sem querer erguer MUITO a voz e incomodar os vizinhos. Como o velho não respondeu, deu a volta na casa e entrou pelos fundos, encontrando-o dormindo praticamente em cima de alguns pergaminhos, segurando o dente da hiena em uma das mãos.

– Olha só! Eu aqui preocupado e você dormindo? – disse Overim, num tom chato o suficiente para acordá-lo.

QoNoxa levou um susto e suspirou de olhos arregalados, tentando entender o que se passava.

– Que foi? Que está fazendo aqui?

– Te esperei um pouco e, como não apareceu, vim ver se estava tudo bem.

Depois de alguns resmungos e ALGUMas frases sem sentido, o velho pediu que Overim arrumasse os cavalos e o esperasse lá na frente. A noite foi longa e cansativa, mas também produtiva. De tanto olhar para ALGUMas outras inscrições antigas que o velho também tinha em couro, ele percebeu uma grande diferença na aparência dos cortes feitos ao desenhar as letras. Era evidente: os cortes no látego eram MUITO mais recentes. Sentiu-se um pouco enferrujado por não ter percebido isso de imediato lá no rio.

– Aquela escrita não foi feita por mim e com certeza tem no máximo alguns anos apenas. – contou QoNoxa, enquanto cavalgavam até o rio.

– Como sabe disso?

– Principalmente pela cor das marcas e pela quantidade de rebarba que ainda há nos cortes. É fácil perceber isso, qualquer um notaria.

– Então, como não viu isso ontem mesmo?

– É que… bem… E quem disse que não vi? – disfarçou o velho, olhando altivo para frente.

– Entendi. Mas então quem teria feito as marcas? E por quê?

– Não tenho ideia. Só terei ALGUMa dica se conseguir traduzir essa COISA.

Enquanto Overim ralava no treino, o sábio abriu um pequeno pergaminho que havia levado consigo afim de tentar adiantar a tradução daquele misterioso texto, mas não teve MUITA sorte. O texto gravado no látego parecia mais bem feito, com letras mais bem desenhadas do que os que ele tinha, e isso atrapalhava um pouco a assimilação de MUITAs das junções das letras. Eles saíram de lá sem dizer MUITA COISA, com Overim cansado e o QoNoxa um pouco frustrado.

À noite, Overim sonhou vagamente com esse episódio e acordou de madrugada. Era um daqueles dias em que o Juízo de Nuhat seria relembrado. Ele perdeu longos minutos pensando em MUITAs COISAs e teve uma sensação estranha de que aquela escrita era algo importante. Pensou em todos os detalhes que se lembrava, o que incluía o feitiço que QoNoxa havia lançado no cavalo. Overim misturava em sua mente os vários detalhes de formas diferentes, tentando imaginar as várias hipóteses. Fazendo isso, concluiu que, como o cavalo também estava sem as memórias, obviamente significava que os dois haviam passado pelo mesmo problema e provavelmente ao mesmo tempo. Parecia óbvio também que, como a última lembrança antes da escuridão era dos arredores do rio, a perda de memória havia acontecido longe do lugar onde ele havia estado. E o mais importante: se ele perdeu memória antes e depois do tempo e lugar exatos da fonte causadora da amnésia, era possível que aquela escrita tivesse sido feita por alguém durante esse tempo.

Essas ideias fizeram a rotina de Overim nos dias de folga mudar. Em todos os dias que era dispensado do treino, ia além do rio, cada vez até um ponto mais longe e voltava depois de longo tempo de espera; uma espera por qualquer COISA. Cada dia avançava um pouco, exceto nos dias em que percebia que os pensamentos estavam leves e fluíam com mais facilidade – nesses dias, ia MUITO mais adiante em relação à vez anterior.

Overim não escolheu um caminho exato, apenas cavalgava para além do rio observando qual seria o trajeto mais natural para se trilhar a pé, pois era como tinha passado por ali na primeira vez. Além disso, ele não teve dúvida de que se tivesse ido tão longe na vez em que foi a cavalo, teria provavelmente feito o mesmo trajeto que fez a pé, e ainda se lembrava vagamente do primeiro trajeto. ALGUMas partes do percurso estavam exatamente como antes e foram fáceis de assimilar; já em outras áreas o mato havia crescido ou a vegetação mudado. Seu rumo parecia ser inevitavelmente o mesmo da primeira vez.

Enquanto ele avançava seu caminho em direção ao Planalto Hakal, Ailin ainda relutava em adentrar o vale. Ela havia adquirido respeito pelas tradições e história de sua família. Em sua cabeça, entrar no Vale das Preces seria como desprezar o terror que ali se passou e talvez zombar do temor dos outros hakais. De qualquer forma, isso não a impedia de descer até lá diariamente e observar de perto o lugar que parecia a cada dia atraí-la.

A infeliz obsessão dos dois cresceu mais e mais; com o tempo, passou a ser parte deles. Não era mais apenas a esperança ou a curiosidade que os motivava e que os fazia perder tanto tempo empenhados: passou a ser algo habitual, algo automático.

Overim já via em seu trajeto uma forma também de esfriar a cabeça, de relaxar, e só pensava profundamente no que estava fazendo de fato quando estava perto do ponto mais longe que havia chegado na ida anterior, ou nos dias em que o poder do Silêncio sobre ele diminuía.

Numa das suas idas, viu que estava caminhando em direção às montanhas e foi com mais cautela. Na vez anterior, ele já sabia das histórias das guerras e de alguns boatos sobre os hakais, mas agora sua mentalidade era outra, pois sabia do tratado entre os clãs, assim como sabia que não era uma boa ideia aparecer por ali sem um motivo razoável. Teve cautela, mas continuou fazendo como em todos os outros dias, avançando conforme a confiança que tinha em cada ida. Isso se seguiu até que Overim encontrou uma estrada visivelmente MUITO utilizada que dava acesso à entrada principal do Planalto Hakal. Assim que avistou essa estrada, teve um mau pressentimento e escondeu seu cavalo. Foi até o fim da estrada quieto e logo voltou. Pegou o cavalo e partiu ansioso. Por ALGUM motivo, ele teve certeza de que o trajeto estava certo.

A partir de então, Overim passou a seguir seguro até a encosta da montanha onde a estrada terminava. Fez esse mesmo caminho e procedimento outras quatro vezes: cavalgou rápido até a estrada, escondeu o cavalo e foi a pé até próximo da encosta da montanha.

Até aquele ponto, ele estava seguro. Dali em diante, a dúvida era sempre a mesma: ele devia subir o planalto ou se continuar o caminho fora da estrada? A princípio, entrar no vale não era uma opção. Ailin poderia ser vista por ele ou tê-lo visto se a ida dos dois coincidisse, mas havia sempre uma diferença MUITO grande no horário habitual dos dois de irem até lá. Mas em um dia desses aconteceu o que era de se esperar.

*****

Ailin tinha a tarefa de lavar os cavalos. O dia inteiro se resumiria a isso e estaria livre quando terminasse. Então, como sabia que o dia estava ao seu dispor, pela manhã mesmo tomou coragem e adentrou o vale após ter consultado a opinião de Bukie, que se incomodou, mas aceitou. Não foi fácil, pois teve de pesar entre sua consciência e aquela sensação que nunca parava, aquela força dentro do peito que implorava por uma atitude em busca de desvendar o mistério. Evidentemente, esse era um daqueles dias em que o Juízo de Nuhat se fazia lembrado pelas forças místicas.

O mais difícil foi a decisão de entrar, mas depois que já estava no vale sentiu-se mais confortável e procurou onde se sentar. Não demorou MUITO para encontrar um lugar bom para repensar todas as possibilidades e cada detalhe que se lembrava. Sentiu-se também um pouco desmotivada, pois estar ali depois de tantos dias pensando sobre aquilo tudo e não ter visto, ouvido ou sentido nada demais era desanimador. Antes que se arrependesse, levantou dali e foi explorar o lugar.

A uma certa distância da entrada, o vale fazia uma pequena curva, só o suficiente para não ser possível olhar o que havia depois da parte em que a vegetação se embrenhava. Agora, com mais percepção e mais maturidade, MUITA COISA ali pareceu perigosa – o terreno BASTANTE irregular, um caminho de pedras com pontas afiadas voltadas para cima, ALGUMas plantas espinhosas e aparentemente venenosas. O caminho parecia ficar cada vez pior e passava uma sensação sufocante. Tinha a sensação de que quanto mais devagar seguia, menor era a vontade de continuar. Bukie permanecia quieto.

De repente, o aspecto tenebroso, sujo e perigoso do lugar pareceu se dissipar. Era ainda o começo da manhã e o tempo nublado foi sumindo, dando lugar a uma iluminação amena, assim como a baixa temperatura logo foi substituída por um clima agradável que tornava o lugar mais aceitável. As pedras já tinham ficado para trás e nem notou quando a vegetação se tornou tão bela. No entanto, um zumbido que a incomodava já a MUITOs passos se tornou mais intenso, QUASE dolorido, mas quanto mais adentrava o lugar, mais tinha a impressão de que ele estava sumindo. Por fim, o zumbido desapareceu. Porém, não foi só o zumbido: não havia nenhum som. Tudo se repetiria. Ailin não teve MUITO tempo para se preocupar, pois algo aconteceu em seguida. 

Depois de tanto tempo, aquela sensação novamente, inimaginável a quem nunca sentiu. É impossível descrever bem como foi para Ailin receber todas aquelas informações, todas as memórias, relembrar todos os sentimentos, entender sobre tudo que passou por tanto tempo. Lembrar-se daquele menino meigo que compartilhava dos mesmos sentimentos, que estaria naquele exato momento sofrendo como ela sofreu, sem rumo, sem explicação, angustiado, ansioso… 

Pensar em Overim sofrendo tanto era ainda pior do que ter passando por tudo aquilo.

Nem mesmo Bukie, que não esteve na primeira vez, jamais entenderia a maioria daquelas sensações. Mas mesmo assim pôde ver quão grande emoção sentia sua doce e leal companheira.

Embora não compreendesse ou não tivesse ainda ponderado, Ailin amava Overim com todas as forças. Não apenas de forma passiva, mas com decisão, com o movimento que o amor exige, e da forma como o amor é: não uma mera sensação ou sentimento, não o fruto de inclinação dos desejos, nem a óbvia tentativa de satisfação, mas a escolha, a ação, o zelo, a decisão…

Que lugar, que sorte!

Que tortura, que tormento!

Que sinto? Quão forte!

Mas conheci, não lamento.

Sem palavras? Mais sorte!

Assim não erro, não posso.

À distância? Que triste!

Qualquer lugar, um nosso…

Mas não sabes. Sim, existe!

Faz como eu, sejas assim:

Nada o pare. Não desiste!

Mas não lembras, ai de mim.

Se demoras, te espero,

Te entendo, mas vem!

Ver-te logo é o que quero.

Tenho alguém, tenho alguém!

Tenho outros, é sincero,

Mas não assim, tu és tu.

Minhas memórias, me deleito,

Estão aqui, é um baú!

Que lindo! Só um de feito:

Não estás, és um sonho.

O melhor, um perfeito,

Que voltará, sempre risonho!

Que voltará! Sim, voltará!

Sempre risonho… não mais um sonho…

Suspirava e, sem palavras, comunicava. Ainda que não pudesse compartilhar o som de seu choro, de tão amarga sina, de tão deliciosa redescoberta e de tão doces palavras, Bukie a compreendia o suficiente para entender que aquilo só podia ser exclusivo da humanidade. 

Àquela distância toda, por tanto tempo separados, sem suas melhores lembranças… ela não sabia o que era, mas o amava e lamentava não tê-lo feito saber. Lamentava que, mediante tantos avisos em sua mente e em seu corpo, suas investidas não tivessem sido mais eficientes. – Como é possível tanto sentimento sem vê-lo, sem tê-lo, tão longe? – pensava o fiel Bukie, com suas limites que, ali, ganhavam nova medida. Ainda assim, ele não podia entender qual era a fonte daquilo que movia Ailin. Podia apenas observá-la superar o amargor, envolvida com uma felicidade e paz talvez inalcançáveis fora dali.

Ailin transbordava serenidade como nunca se viu nela antes, fruto de tão impressionante alívio que sentiu. Não teve dificuldades em assimilar tantas lembranças aos seus dias escuros; o Silêncio lhe permitia facilidade. Foi até a beira da cachoeira silenciosa e sentou-se. Os minutos passavam lentamente e podia saborear perfeitamente cada instante as suas convicções, imaginando onde estaria Overim. Ah! Se soubesse quão perto ele estava!

*****

Overim, em sua manhã de folga, se aproximava a cavalo rapidamente, impulsionado pela ansiedade, curiosidade e a chama no peito cuja origem ele desconhecia. Passou veloz pelo rio e pelas nespereiras, seguiu firme até encontrar a estrada e, lá no mesmo ponto de dias anteriores, parou e escondeu seu cavalo. Jio estava atento, só esperando pressentir algo ou que Overim pedisse a ele que assumisse, mas via que tudo estava MUITO calmo, menos, é claro, o coração do jovem.

Caminhou como em todas as vezes anteriores até MUITO próximo da subida na encosta da montanha e observou parado o lugar por alguns instantes, mas aquela sensação crescera de forma que não pôde mais tardar uma atitude diversa, pois o vale havia ficado cada vez mais atrativo com o passar dos dias. Em especial, o vale poderia ser um atalho para cruzar o planalto, levando-o por ALGUM trajeto imprevisto. Ele ainda duvidava ser aquele o caminho, pois o vale não parecia ter saída, já que do outro lado – por onde sempre vinha – não parecia ter uma passagem que levasse até ali. Curiosamente, Jio sugeriu que ele arriscasse e disse que não tinha MUITO a perder a não ser o tempo, mas se o vale fosse mesmo fechado, podia voltar rapidamente e escolher subir a montanha ou seguir fora da estrada. Overim aceitou a sugestão e, finalmente, adentrou o vale.

Ele entrou sorrateiro, olhando mais para a ponte acima de si do que para o caminho por onde ia passar, sabendo que provavelmente teria vigias por ali. Já era o fim da manhã, mas as nuvens ainda cobriam o céu, fazendo com que a iluminação não fosse tão boa para uma pessoa comum lá de cima do planalto.

Overim foi bem até a curva do vale, onde o aspecto do lugar mudava bruscamente e todos os detalhes pareciam hostis à sua presença. Teve sensações diversas, com sua sensibilidade aumentando MUITO desde a última visita ao Silêncio, e agora contava também com uma noção sensorial extra que seu corpo havia adaptado da energia vinda da contenção de Rohä que fluía pelo rio.

Jio enrijeceu as solas dos pés de Overim, fazendo a pressão das pedras afiadas nem sequer chamassem sua atenção. Ele queria que o jovem eliminasse logo completamente a dúvida sobre aquele “beco” antes de prosseguirem. Assim, Overim seguiu firme rumo ao fim do vale.

Não demorou MUITO para que ficasse mais notável um zumbido que já vinha ouvindo, e Overim comunicou à sua QaNai, que tentou amenizá-lo, mas não entendeu a causa e ficou surpreso por não ter conseguido nem mesmo enfraquecer aquele incômodo. O zumbido se tornou mais alto e o estresse fez Overim andar mais depressa, sem se importar MUITO com o barulho que sua movimentação começava a fazer. Num instante, de repente, o zumbido deu um pico mais alto e se foi. O som agudo e ruidoso foi embora, e com ele também o aspecto tenebroso do lugar que estranhamente havia sutilmente se tornado a própria beleza do espaço mais sossegado e agradável que ele poderia descrever.

Outra COISA aconteceu: tão repentinamente quanto o sumiço do zumbido, Jio não estava mais acessível, como se estivesse inconsciente. Overim, assustado, fez alguns movimentos bruscos para comprovar o que havia acabado de perceber: não havia som ALGUM. Ele olhava em volta em posição de combate, tendo total certeza de que aquele seria um momento diferente. Até que…

Pronto! Baixou a guarda! Que imagens eram aquelas? E de onde vinham tantas respostas? A compreensão lhe vinha à mente e invadia-o inesperadamente. Podia entender agora, podia lembrar-se de tudo! Ah, se pudesse ter se imposto contra a indelicada magia de tão glorioso lugar e levado consigo sequer a certeza daquele olhar atordoante da menina dos sonhos! Ah, sim! A menina – a menina das sombras, dos vultos, do reflexo, do espelho d’água, das sensações, do tremor, do coração!

COISAs antes impossíveis, agora todas tão simples, todas tão lindas! A distância e o tempo nada fizeram a não ser adiar e tornar tudo mais intenso. Aliás, que era qualquer distância ou tempo diante de tão cruel sofrimento? Mas que eram também frente à plenitude de tamanha satisfação pelo prêmio da espera?

Ailin notou sua presença. Talvez pelo aroma, ou talvez o próprio Silêncio tivesse contado. Que importa? Vá, Ailin! Faça a corrida mais importante de sua vida, em direção ao inacreditável, ao encontro que a sublime e sombria providência proporcionou. Corra ao prêmio; corra fazendo-se recompensa!

– Aqui! Olha pra mim! – pensava… ou gritava? Não importava!

Ele a vê (ou a sente?). Favor do Silêncio, quem sabe?

– Não pode ser! – o sangue congela, o coração se atrapalha, as pernas tremulam. É ela! A própria força desmaia.

Quem entende o Silêncio? Oh! Que sorriso! E os pensamentos só se permitem parar quando o jovem é envolto pelos braços da bela jovem, belíssima!

Não posso crer, te beijei? Sim, um beijo! – pensam os dois. Sim fizeram, repetem. Querem acreditar… é difícil! Como é difícil! Por que acreditar é tão difícil? Por que é tão estranho crer? Devagar, o aceite reclama e é benquisto.

– Está aqui há quanto tempo? – faz-se compreender Overim, enquanto as lágrimas descem.

– Acordei e vim pra cá! – responde a menina perfeita, e seca-o das lágrimas.

– Sabe o que eu sinto? – o ansioso. 

– Sim! Sabe o que sempre senti? – a sensível.

– Temo que sim. Sabe o que preciso sentir? – indaga profundo, e a agarra. Não há malícia, não há precipitação. São um do outro! É como é.

Overim a tomou em seus braços – ou foi ela? – sentia tão intenso o calor do corpo, a maciez da pele e a fluidez da agitação que carregava para fora a ansiedade e encharcava de alegria. Qualquer outra menina poderia ser especial, uma boa amiga, mas só um reflexo – um bom reflexo – de sua verdade, de sua decisão. De sua carente atração (ou alegação, agora real) – sempre real.

Ailin sentia-o em seus lábios, as mãos tremiam, mas já nem tanto… a entrega tão sincera a tomava… pronto! Está tomada. – Eu acredito! – pensava agora. – Só não mereço! – refletia. A boca, a face, as mãos, os dedos… tanto a sentir. Por que a pressa? Tinham tempo.

Não. Tinham o Silêncio. Ou o Silêncio os tinha?

Ailin e Overim. Namoravam-se, mesmo antes. Namoravam-se sem os beijos. Era lindo; mais que aquilo. Ora, que são abraços e beijos, que mal explicam a si mesmos, defronte ao amor? Rasas expressões falhas e vagas do majestoso, perfeitíssimo!

Que descrição seria exata? Que narrador arriscaria descrever plenamente o que ali se passava?

Bukie, o companheiro espectador, vibrava e, quão absurdo: sem ciúmes. E já pensava como da outra vez: como burlar o Silêncio?

Ailin sente algo em sua perna, é Bukie. Dá atenção a ele e agora vê um problema. Sair dali significaria perder tudo novamente. Era preciso pensar em algo. – Mas já paramos? – pensava Overim, depois de intensas duas horas. É hora de pensar.

A fome não os abate, mas o cérebro está voando, sabem que seria já estariam se alimentando. No Silêncio há frutas por toda parte. Comeram e se saciaram, mas agora, o que fazer?

Os dois se lembravam bem do plano de escrever um lembrete e sabiam que não tinha dado certo, mas Overim rabiscou algo no chão, pois, ao contrário de Ailin, teve chance de olhar inúmeras vezes para seu escrito no látego e não compreendia ainda por que escrevera algo em outro idioma.

Para ter certeza, ele rabisca no chão: “agora, eu vou escolher você”.

Ailin sorri e rabisca: “eu escolhi você, pra sempre”.

Como era possível? Outra defesa do Silêncio. Aquele não era o idioma de Overim, desconhecido para Ailin, nem o dela, desconhecido para Overim. Essa escrita ambos compreendiam. De ALGUMa forma, o Silêncio fazia com que suas mentes compreendesse a linguagem primordial, a linguagem da criação, que eles representavam intuitivamente ao escrever. Era a língua Dolsai, o idioma dos primeiros homens. 

No Silêncio, eles simplesmente não sabiam mais escrever ou se comunicar como antes. Apenas desenhavam o que pensavam em formas que expressavam naturalmente o que queriam comunicar. Ambos, porém, já haviam entendido que fora dali aquela escrita de nada serviria.

Overim não tinha disponível Jio, que poderia ajudá-lo com o raciocínio. Ele contou a Ailin sobre isso e também sobre as visões e sonhos que teve fora de lá. Disse que não conseguia desenhá-la claramente, mas que a imagem deles no espelho d’água era tão bela e tão forte que sobrepujava a investida do Silêncio. Eles correram para a cachoeira, sentaram-se do mesmo jeito de antes e Overim se pôs a desenhá-los no chão com uma pedra. Aí veio o plano. Escrever era inútil, mas e quanto a desenhar?

Overim usou a parte de dentro da própria vestimenta para fazer o desenho, pois não podia correr de novo o risco de demorar tanto tempo até vê-lo dessa vez. Insistiu que Ailin também o fizesse, mas não levava jeito. Rabiscou ALGUMas COISAs no chão que só serviram de riso. Overim tocou seu rosto com a mão quente, massageando a maçã do rosto com o polegar e os outros dedos abaixo da orelha. Um toque leve, gesto simples, mas que tornava desnecessária a ação do Silêncio, que tratava de dissipar a sensação da frustrante tentativa de Ailin seguir o plano de Overim.

Overim não tentou pensar em outra estratégia, antes, tentou convencê-la de que a melhor maneira era saírem dali juntos indo direto até alguém de confiança que pudesse ajudá-los.

– Não podemos! Não devo demorar tanto mais pra voltar, então não posso ir com você. E você não pode ir comigo por que não é um bom momento no meu clã. – lamentou.

– Qual o problema com seu clã?

– É uma época difícil. Houve um presságio sobre a destruição da minha família e ALGUMas pessoas acham que eu serei a causa! Outras acham que a causa será seu povo. Se aparecermos juntos, não terão dúvidas. Não quero nem imaginar o que aconteceria.

Tão jovens, mas tão maduros. Não deixariam que aquilo se tornasse a motivação para viver, mas precisavam tentar fazê-la parte da vida. No início, procuravam apenas ânimo para suas vidas e encontraram desejos que os motivassem. Ali, tudo era diferente. Aquele impulso desconhecido ao qual davam razão estava agora desnudo diante deles. O impulso não os controlaria, não os moldaria, nem mudaria seus valores. Ainda sem comunicar, ambos já haviam decidido impedir que tudo não passasse de uma experiência bonita e sentimental. Não queriam mais perseguir seus desejos sem refletir sobre suas motivações e consequências. Não podiam mais arriscar e sabiam do vazio que sempre vinha depois de alcançado o desejo. Para não matar a alma vendida em troca do que é passageiro, estavam decididos a começar algo maior que eles.

Estava difícil insistir nessa ideia. Eles ficaram sentados olhando sua imagem n’água enquanto tentavam ter outra.

Com mais alguns minutos, os dois perceberam que não fazia sentido que a magia do lugar tornasse tão mais ágil o raciocínio sobre outras COISAs, enquanto tentar ter ideias de como se lembrar dali fossem tão difícil. O Silêncio parecia investir contra qualquer tentativa de vínculo com o lugar ou de trazer de volta as memórias de lá. No Silêncio, as ideias e memórias eram facilitadas pelo lugar, pois eram vinculadas a ele, e era essa sintonia que permitia ao Silêncio o direito sobre elas. Fora de lá, não. O Silêncio não tinha autonomia, não tinha direito, mas tinha alcance, e era somente sobre as memórias ocorridas nas proximidades do lugar. Insistir em uma estratégia para se levá-los de voltar até parecia ser tão ineficiente quanto tentar lembrar-se de tudo estando do lado de fora.

Mas havia algo mais. Notavelmente, o Silêncio não havia retirado tudo deles. Overim e Ailin sempre tiveram a sensação de que havia mais do que apenas lembranças removidas, pois podiam sentir que os impulsionava, que os arremessava na direção do vale, no rumo do Silêncio. Aquele laço profundo que haviam criado parecia não ser feito apenas de memórias, fugindo ao controle do lugar, que não podia usurpá-lo.

Overim ainda pôde notar uma outra COISA misteriosa. Depois que se acalmou e deixou os pensamentos mais livres, deu ALGUMa atenção a uma sensação que o incomodava desde o zumbido. Havia sentido o impacto suave de uma energia que se espalhava consistente pelo ambiente, algo MUITO familiar que agora entendia o que era.

Que o lugar estava tomado por algo poderoso, isso era óbvio, mas o que seria? Overim, nesse instante, teve uma compreensão repentina de que aquilo que sentia ali era como a energia do rio, das argolas e da lâmina de QoNoxa. Era o mesmo tipo de poder, mas com uma assinatura singular. Talvez um mecanismo, talvez um ser inteligente. Obviamente, de nada importava se não pudesse lidar com ele.

Explicou com detalhes a Ailin, que estava tentando se convencer de que aquilo que eles sentiam os direcionaria novamente em hora oportuna depois que se despedissem novamente. A determinação que eles tinham certamente havia crescido, mas não insistir num plano não era apenas excesso de confiança, era algo mais. Quanto mais ficavam ali, mais parecia que o que importava era “aproveitar”, sem reprimir declarações, sem desviar olhares, nem negar carinho. Quem sabe, a mesma força que os levou ao encontro desta e da outra vez, se encarregaria de fazê-lo novamente. Esse efeito não era culpa do lugar, mas da própria natureza humana que tentava convencê-los de que a sinceridade do sentimento era mais importante do que tudo, pondo tudo em risco, trocando a pureza duradoura pela pressa egoísta. 

Já era fim da tarde, mas eles não queriam sair dali por nada. Contudo, sabiam que era necessário e era inevitável, assim como era inevitável esperar que fossem atraídos novamente em tempo não tão distante numa próxima vez.

Bukie se lembrava de ter saído do lugar ainda com memória na primeira vez, e isso significava que as lembranças eram de ALGUMa forma sugadas gradativamente. Então, enquanto Ailin e Overim tinham seu último momento juntos, saiu correndo em direção à saída, indo até bem perto da entrada do vale, mas não esperou que as memórias sumissem e voltou correndo até Ailin. Era apenas um teste. Mas quando foi até lá, viu que o céu havia enegrecido MUITO e que uma tempestade se aproximava; agora não havia mais o que fazer, ela deveria voltar o quanto antes. 

– Serei eu o culpado pela nossa despedida? – perguntou Overim, com lágrimas nos olhos, mas uma alegria ardente mui viva.

– Não lamente! Nos veremos novamente quando Nuhat permitir!

Quão facilmente expressavam o que queriam, mesmo sem palavras. Mas o momento se foi.

*****

Sair dali era como fazer um rasgo no próprio peito, mas era necessário. Ailin saiu antes e levou Bukie nos ombros. Passou MUITO rápido pelo vale e chegou a ferir um dos pés. Subiu correndo e atravessou a ponte aproveitando o som dos trovões, que também desviavam a atenção do vigia. Foi para casa e lá encontrou Oilavo, que de nada desconfiava, só não gostava de pensar que se tratava de algo com Ainan ou outro jovem qualquer – QUASE um sentimento de pai.

– Onde esteve?

Ailin pensou rápido. – Treinando com Ainan. – respondeu com olhos arregalados.

– Com Ainan? Mas onde? – era o que temia… justo com Ainan? “O olhar daquele jovem não me engana”, pensava.

Ailin pensou de novo e teve uma ideia:

– Na verdade, eu estava no Vale das Preces! Fiquei lá o dia todo.

– Certo. Troque essa roupa, está frio. E vá comer. – “tarde demais, não me convenceu”, pensou. “No vale? Não, não. Era aquele jovem!” – e ainda teria que confirmar sua versão no dia seguinte antes que alguém colocasse a reputação da menina em questão. É… atitude de pai!

Ailin foi para o quarto disfarçando que manquejava. Bukie não entendeu a audácia de Ailin, mas entendeu menos ainda a reação de Oilavo. No entanto, o plano de Ailin era dizer a Oilavo, com todas as palavras onde estava, sem dizer o que lá fazia e por que fora. Talvez isso pudesse ajudá-la a se lembrar. Ailin nesse momento já havia esquecido de Overim e de todas as memórias do “baú” do Silêncio, mas ainda sabia exatamente aonde tinha ido. Ela teve ainda outra ideia: correu para o quarto e, com um punhal, escreveu ugif liuk (“além do vale”). Foi dormir não MUITO depois disso, esperançosa de que pela manhã ainda pudesse ler.

Enquanto Ailin pegava no sono, Overim ainda estava em sua jornada de volta para casa. Um trajeto não tão fácil de trilhar à noite e à cavalo, ainda mais com a pressa que tinha de chegar a tempo de dormir o suficiente para o dia seguinte.

Fez boa parte do percurso concentrado, repetindo ALGUMas frases com o nome de Ailin e falando sobre o Silêncio, esperando que fosse impossível esquecer dessa forma. Demorou, mas sua mente se cansou. Depois que passou o rio, aquelas frases já não tinham sentido ALGUM, ainda assim ele continuava a repetir ALGUMas delas, já com sonoridade diferente e sem pensar no que dizia, estava apenas embalado pelo vício da repetição. Sentia como se estivesse naqueles momentos antes de dormir em que se pegava fazendo reflexões que não faziam o menor sentido, já com a mente prestes a apagar. A mente foi se cansando tanto que não conseguia pensar numa outra forma de lutar contra isso a não ser continuar repetindo.

Ainda antes de chegar em casa, poucos metros depois da colina, já havia parado com as frases e só pensava em deitar e dormir. Um cansaço e sonolência MUITO fortes o abateram. Era influência do Silêncio. Chegou em casa já tarde, mas Naité ainda estava acordado, sonolento, só esperando que ele chegasse.

– Que horas, hein? Onde esteve? – perguntou seu pai. – Bem, não importa. QoNoxa deixou isso comigo e pediu que te entregasse quando voltasse.

Overim nem teve tempo de inventar uma desculpa, mas aparentemente não iria precisar de uma.

– Ele só disse isso? – perguntou Overim, enquanto pegava da mão de seu pai aquele látego com inscrições.

– Não. Ele disse que você iria sumir o dia inteiro e que não era preocupante. Depois, me entregou isso e pediu que te entregasse imediatamente quando pudesse. Me fez ficar aqui te esperando. – Naité já estava com os olhos cansados, não pensava em discutir ou enchê-lo de perguntas.

Foi dali para o quarto enquanto Overim tentava imaginar o motivo que faria o curandeiro ter passado por ali só para deixar o látego com as inscrições. Tentava também lembrar aonde havia ido e por que estava repetindo aquelas frases pelo caminho. Calculou que isso devia ter algo a ver com o texto no látego, já que QoNoxa não dava ponto sem nó.

Talvez o velho tenha desconfiado que eu ia sumir novamente – pensou.

Os símbolos gravados no couro não lhe diziam nada. Era a linguagem escrita da comunicação que usavam no Silêncio, mas já a havia esquecido completamente. Overim bebeu um pouco d’água e foi deitar-se com o látego na mão. Jogou-o sobre a cama e tirou de si a peça que vestia seu lombo, o que o fez ver o desenho que fizera. Ficou intrigado por um breve instante, até que caiu em si, entendeu o que aquilo representava.

Sabia que tinha saído da vila em direção ao Planalto Hakal, sabia que eram seus traços naquele desenho e agora tinha certeza de que novamente fora acometido pela perda de memória oriunda do mesmo incidente das outras duas vezes. Estava claro que o desenho era uma mensagem dele para ele mesmo e que a inscrição no couro também se tratava disso, mesmo que não a entendesse. O desenho era MUITO revelador, pois se tratava daquela mesma imagem dos seus sonhos. Overim pôs-se a chorar. Agora, ele sabia que aquela imagem era MUITO mais do algo que lembranças que lhe faltavam: havia alguém em sua vida, alguém com quem provavelmente havia vivido momentos importantes dos quais não podia se lembrar.

Apesar do sono, conseguiu dormir pouco tempo nesta noite, só o suficiente para estar em pé pela manhã, quando QoNoxa o surpreendeu vindo buscá-lo.

– Bom dia, filho! Tem boas notícias pra mim? – perguntou o velho, que esperava ao lado de fora da casa quando Overim saiu.

– Boas notícias? Sobre o quê? – Overim estava inseguro sobre tudo aquilo e ainda estava pensando em como contar ao velho.

– Ora, sobre seu sumiço, as memórias, a inscrição no couro…

– Ah, claro…

– Suas idas ao Planalto Hakal… – QoNoxa fez aquele olhar de baixo para cima com um meio-sorriso, dando com os ombros.

– Mas, que…?

– Sim, eu sei de suas idas até lá. Não disse nada pra não te aborrecer e não se sentir pressionado, mas fui ALGUMas vezes atrás de vocês até lá. Uma pena não ter ido ontem, pois parece que algo novo aconteceu, não foi?

Overim não gostou de saber que o velho o estava vigiando ainda. Por mais que isso fosse para o seu bem, não se sentia mais confortável com isso e, nesse momento, ficou chateado, mas não disse. Também não queria contar nada do que havia acontecido, um pouco por constrangimento, um pouco por orgulho.

Passava a mão pela extensão do látego olhando para baixo sem saber o que dizer.

– Não sei se quero falar sobre isso agora. Aliás, não quero. – disse Overim, esticando com as mãos o couro de cima para baixo sobre a cabeça.

– Hummm. Tudo bem, vamos para o rio.

QoNoxa também não estava confortável com nada disso, mas viu que havia saído de seu controle e não pretendia pressionar o jovem ainda mais. Ele parecia bem, ao menos fisicamente, então talvez apenas tivesse se frustrado com a memória novamente – ou estivesse vindo de uma jornada vazia, tendo perambulado por ALGUM canto sem esperança. QoNoxa decidiu que só importaria quando ele contasse.

O dia seguiu um tanto silencioso, QUASE sem diálogos entre os dois. De tarde, o velho achou que deveria levá-lo até o outro lado da vila para ver Luanda e os outros.

Chegando lá, fizeram como sempre. QoNoxa foi para o estanque enquanto Overim levou os cavalos até a casa de Luanda. Chamou-a e ela veio. Quando a viu, seu coração se alegrou, mas não como antes; algo havia mudado, parecia estar triste, inseguro, não com ela, mas apesar dela.

– Oi! – exclamou Luanda, vindo abraçá-lo.

– Tudo bem, Luanda? – Overim não escondia a alegria em vê-la, assim como não escondia aquele outro sentimento mais obscuro.

– Estou ótima! Mas e você? Parece abatido, o que foi?

– Nada de mais, só uma noite curta de sono MUITO leve e uma manhã dura de treinos.

– Você não me convenceu. Bem… – Luanda virou-se para a casa de Berim. – Beeeerim!

– Não! Não o chame ainda, preciso te contar uma COISA! – Overim estava indeciso sobre o que contar ou até mesmo se ia contar, mas quando ela chamou Berim, decidiu não perder a oportunidade.

– Já vou! – gritou Berim lá de dentro da casa, deixando Overim desmotivado.

– Tarde demais. – murmurou.

– Já sei. – virou-se para a casa novamente. – Eu já volto! – gritou, pegou Overim pelo braço e o fez subir no cavalo.

Saíram rapidamente dali e foram a um lugar não tão longe, apenas o suficiente para saírem do campo de visão de Berim. Overim não foi nada sucinto. Contou tudo que lembrava a Luanda, desde o ataque das hienas até o que houve no dia anterior, mas escondeu todas as informações sobre seus sonhos e da imagem dele e Ailin no espelho d’água que havia desenhado em suas próprias vestes. Ele temeu contar algo que não representasse o que ele imaginou significar aquela imagem, mas sobre todo o resto, abriu o coração.

– Devia ter me contado antes, Overim. Às vezes, você parece frio, às vezes, MUITO distraído e sem interesse. E, às vezes ainda, está MUITO agitado. Mas agora eu entendo.

– Eu nunca contei por que achei que não precisaria. Achei que esse problema não fosse interferir tanto na minha vida. Mas agora é algo que eu preciso mesmo resolver e vou continuar indo até lá sozinho. Mesmo assim, ajuda MUITO se eu puder contar pra alguém de confiança que compreenda. – Overim estava um pouco decepcionado com QoNoxa, mas era algo momentâneo.

– E por que você tem tanta certeza de que é aquele o lugar certo, se nas duas últimas vezes que perdeu a memória nem se lembra de ter chegado até lá?

– O que sei é que na primeira vez fui até lá e, nas outras vezes, estava indo até lá num trajeto que fiz MUITAs outras vezes até o mesmo lugar da primeira vez.

– Mas se você foi até lá várias vezes e nada aconteceu, o problema pode não estar exatamente num território, não é? Pode ser algo vivo que escolha quando agir. – questionou Luanda.

– Sim, pode ser isso. Mas tem algo mais, algo que parece até me orientar quando eu saio em procura de respostas. Tem algo que me chama, me leva até lá e eu sempre sei que estou no caminho certo quando vou pra lá. – Overim não estava se referindo a uma só COISA, mas a várias.

Havia a ansiedade que o impulsionava, havia a curiosidade e o orgulho que o motivavam e havia aquela sensação de um vazio interior. Tudo isso tinha se transformado em algo MUITO sólido.

Luanda sentiu que apenas esperar que ele procurasse como desviar os pensamentos daquelas COISAs não seria o suficiente, assim como não era suficiente tentar trazê-lo para a sua vida. Ainda ssim, ela deveria se envolver com suas COISAs.

– O que vai fazer amanhã de manhã? – perguntou Luanda, afoita para se meter.

– Vou para o rio com QoNoxa, provavelmente.

– Que hora vocês vão?

– Bem cedo, assim que o dia ficar claro. E você?

– Vou acordar quando o dia já estiver claro, mas vou emprestar aquele cavalo do Alepo e ir até o rio te ver treinar!

– Acho que vai se entediar… – o que Overim queria dizer era: Haraf!

– Que nada! Vai ser legal. Aliás, não tenho nada pra fazer mesmo!

Em seguida, pegaram os cavalos e voltaram até a casa do afobado Berim, que já tinha procurado Luanda por todo canto. 

– Overim? Onde estavam? – perguntou Berim, sentado num toco em frente de sua casa.

– Olá, Berim!

– Só saímos rapidinho, desculpe te deixar esperando! – disse Ailin.

– É que você me chamou, aí sumiu. Não entendi nada.

– Ah, isso? Bem… – fez aquela expressão com as sobrancelhas erguidas, apertando os lábios.

– Tudo bem, Luanda. – disse Overim, descendo do cavalo. – Berim, eu tinha que contar umas COISAs a Luanda, mas ela te chamou antes que eu dissesse, aí fomos pra outro canto onde eu pudesse obrigá-la a me ouvir. – explicou em tom bem humorado sorrindo. – Me desculpe. – completou.

– Não foi pra tanto! É bom te ouvir falando mais que duas ou três frases antes de parar.

– Então, agora vocês têm segredinhos? – pelo olhar enciumado de Berim, era evidente que não havia pensado COISAs boas.

– Bobagem! Ele só está desmotivado, por isso vou até a estátua de Zarath acompanhá-lo treinando amanhã, mesmo ele não querendo. – contou Luanda, empurrando o ombro de Overim.

– Não é que eu não queira, só acho que o tédio vai te matar. Duas vezes!

– Que seja, amanhã nós vemos.

– E por qual motivo eu não posso ir também? – perguntou Berim, retoricamente.

– Certo! Vamos todos! – disse Luanda.

– Que horas?

– MUITO cedo, muuuito cedo! Eu te acordo.

Assim combinaram e assim fizeram.

Quando Overim chegou em casa, pegou a vestimenta com o desenho e a colocou por baixo das roupas limpas de frio, pois dificilmente alguém mexeria ali, até mesmo ele.

Luanda acordou MUITAs vezes ainda antes do dia clarear, ansiosa para não acordar MUITO tarde, até que na última vez já estava claro. Se vestiu, saiu de casa e foi direto à janela de Berim, que estava num sonos profundo nessa hora.

– Berim! – sussurrava Luanda, tentando não acordá-lo assustado. Repetiu ALGUMas vezes.

Berim acordou dando um suspiro, com os olhos arregalados olhando para os lados, sem saber o que estava acontecendo. Mas logo viu Luanda e se lembrou.

– Já? – perguntou, esfregando os olhos.

– Vamos logo, senão vamos chegar lá MUITO tarde. Não é tão perto e só temos um cavalo. – apressou-o Luanda.

– Não pensei nisso. Qual cavalo?

– O de Alepo, vamos lá buscá-lo. Não esqueça de levar comida!

Foram poucos minutos, mas pareceu uma eternidade, lá na frente da casa esperando Berim se arrumar. Partiram dali até a casa de Alepo, não MUITO longe. O problema era que Luanda não havia falado com ele no dia anterior, pois também esquecera do detalhe do cavalo. Infelizmente – para o pai de Alepo – Luanda sabia como destrancar o lugar onde os cavalos ficavam presos durante a noite.

– O que está fazendo? – perguntou Berim, já com o coração disparado vendo Luanda entrar sorrateira na propriedade.

– Espere aqui. – Luanda não explicou, apenas entrou, pegou o cavalo e fez uma marca no chão para que Alepo soubesse que era COISA dela.

Os dois montados saíram disparados até a estaca de Zarath. Chegando lá, só encontraram QoNoxa, sentado sobre uma rocha segurando alguns objetos com inscrições antigas.

– Oi, mestre QoNoxa. Overim já está aqui? – perguntou Luanda, com receio de que o curandeiro não a desse atenção.

– Sim. Aquelas bolhas ali são dele. – apontou na direção do rio, onde Overim estava mergulhado.

Os dois olharam confusos para o rio. Luanda ficou constrangida de perguntar outra vez, então apenas esperou. Berim, um pouco nervoso na presença do ancião, não deu um pio. Segui-se um longo minuto de quietude QUASE total, não fosse por alguns pássaros MUITO animados e os resmungos de QoNoxa, lendo seus documentos. Por fim, Overim surgiu do meio do rio, respingando água nos dois.

– Então era isso! – exclamou Berim, depois do susto.

– Oi! – balbuciou Overim.

– Como faz isso? – perguntou Luanda.

– É mesmo! MUITO tempo sem respirar! – disse Berim, olhando impressionado.

– Não, eu estou falando sobre tomar banho num frio desses! – brincou Luanda.

Conseguiu tirar um sorriso até do velho QoNoxa, que estava concentrado.

– E não foi tanto tempo, a próxima vai ser melhor. – disse QoNoxa, sem fazer contato visual.

Overim entendeu o recado e, sem dizer nada, afundou novamente. Dessa vez, demorou mesmo um pouco mais, mas para eles pareceu a mesma COISA: MUITO tempo.

Os mergulhos seguiram constantes por um tempo, mas logo foram substituídos por outras atividades mais interessantes de serem assistidas. Vê-lo mergulhar, saltar e correr até parecia algo simples, tamanha era a facilidade que tinha. Não foi tão tedioso quanto Overim disse que seria, mas de vez em quando Berim se levantava e andava olhando em volta, disfarçando o olhar curioso sobre o que o velho curandeiro fazia.

– Bem, já é hora da nossa pausa. Vamos comer e depois voltamos. – disse QoNoxa, olhando com o canto de olho o bisbilhoteiro.

Luanda e Berim haviam levado comida, pois não sabiam quando iriam voltar; levaram o suficiente para que Overim comesse com eles.

– Ah, vocês vão pra casa comer e depois voltam? Não sabíamos, até trouxemos comida. – disse Luanda, rindo um pouco constrangida.

– E trouxemos bem mais que o necessário. – completou Berim, passando a mão na bolsa de comida sobre o cavalo.

– Quer comer com eles? – perguntou QoNoxa.

Overim olhou para os dois sem saber o que dizer e Luanda o convidou:

– Que tal? Podemos ficar e comer por aqui mesmo.

– Certo!

Overim ficou e comeu com eles, enquanto QoNoxa partiu para sua casa.

O clima entre eles eram sempre bom. Riam de tudo que podiam, inclusive deles mesmos, mas às vezes Luanda olhava Overim e se lembrava de que aquele semblante tranquilo escondia frustrações e ansiedade.

Fizeram MUITA COISA antes que QoNoxa chegasse. Nadaram, subiram nas árvores e tentaram fazer ALGUMas das atividades do treino de Overim, só para rir de Berim. Overim também os ensinou ALGUMas COISAs sobre plantas que haviam ali por perto, contou ALGUMas histórias que aprendera com o sábio, revelou sobre a passagem no rio e, por fim, falou sobre as argolas e o poder que era possível sentir nelas se pudessem tocar as duas juntas. Os dois tentaram. Para Luanda foi um pouco mais difícil tocar as duas ao mesmo tempo, teve que tocar uma delas com um dos pés. Nenhum dos dois sentiu COISA ALGUMa.

– Mas o que você sente? – perguntou Luanda.

– Não sei explicar bem. É como tocar algo vivo. Não sei se o que sinto são as argolas se mexendo ou se parece ter algo fluindo dentro. É difícil explicar. Mas sinto que elas não ficam só ali paradas, estão vivas! Bem, ao menos é o que parece quando toco as duas ao mesmo tempo.

Havia MUITOs contos antigos sobre essas argolas e sobre como apenas Zarath podia usá-las para proteger o território de QeMua. Fosse como fosse, ninguém vivo naqueles dias havia presenciado aqueles tempos. Luanda e Berim ouviam a descrição de Overim atenciosos, pensando qual seria a função das argolas e que sentido tinha isso que ele sentia quando as tocava.

O treino de Overim continuou à tarde, mas não MUITO tempo depois da volta de QoNoxa, os dois preferiram ir embora, pois não tinham avisado ninguém, exceto Alepo, de certa forma.

Gostaram tanto de ir até lá que decidiram fazer isso mais vezes, mas não sem antes avisar seus pais, depois da bronca que levaram quando voltaram e de Alepo, que teve que inventar uma boa desculpa quando seu pai viu que o cavalo não estava lá e QUASE teve um treco.

Depois desse dia, passou a ser comum saírem pela manhã a cavalo até a estátua. ALGUMas vezes iam apenas os dois, às vezes, com Alepo e chegaram até a ir com Alef também. Ver o treino e o desempenho de Overim era algo animador e os deixava entusiasmados. Vê-los ali por perto era um conforto para o jovem Overim, que a cada dia se sentia mais seguro para recomeçar suas idas ao Planalto. Ainda que continuasse achando necessário esconder de todos, em especial de QoNoxa e Luanda, se fosse possível.

O sábio QoNoxa, precisava ter mais precaução do que antes, já que Overim declaradamente não queria conversar sobre o que houve consigo e tendo em vista que seus amigos se faziam mais presentes do que nunca. Assim, reduziu MUITO o tempo de folga que dava a ele.

Overim não desperdiçava nenhum segundo do tempo que ficava sem treinar, quando não era um daqueles em que os pensamentos sobre o Silêncio se tornavam fáceis, passava o tempo tentando fazer COISAs que o lembrassem de algo útil. Pintou várias vezes aquela mesma imagem que não saía de sua mente, mas fez outras também. Às vezes, passava o tempo lendo alguns documentos antigos que emprestara de QoNoxa, na tentativa de descobrir algo sobre o texto inscrito no látego e em sua veste, ou então tentando descobrir mais sobre aquelas argolas, lendo a pesquisa do curandeiro e relatos antigos emprestados também por ele.

As semanas pareciam passar cada vez mais lentamente, e ele semre esperava aqueles dias de maior disposição nos pensamentos para pedir ao velho que o deixasse descansar, pois assim poderia correr até o Planalto Hakal novamente. Precisava de bons argumentos para pedir a dispensa antes que mais um dia daqueles viesse, mas era difícil, já que não sabia quando seria. Overim começou a fazer as contas sobre as vezes anteriores e percebeu que os dias tinham um ciclo exato de 28 dias, e isso facilitou as COISAs. Pronto. Foi negociar com o velho.

– Vô, eu sei que está querendo que eu tenha menos tempo livre, e por mim tudo bem. O problema é que nunca sei quando será esse tempo livre.

– E o que sugere?

– Posso treinar ainda mais, mas queria eu mesmo escolher o dia que vou descansar.

– Descansar, hã?

– Bem, seria o dia que vou descansar do treinamento.

– E vai escolher de repente ou vai escolher agora? – perguntou QoNoxa, com um olhar entediado, erguendo uma das sobrancelhas.

– Posso escolher agora. – Overim já sabia exatamente o dia que queria ficar livre, mas fingiu pensar um pouco e logo respondeu. – Daqui a três dias, e o próximo pode ser depois de um mês.

– Combinado. Quando o próximo dia se aproximar, me lembre de novo.

Estava feito, mais fácil do que havia imaginado. Ou talvez nem tanto. QoNoxa aceitou sorrindo, mas ficou um tanto desconfiado.

*****

Com Ailin aconteceu algo diferente. Não havia se programado tanto, com exceção de ter contato a Oilavo logo que chegou em casa e nem disso se lembraria, não fosse Bukie, que também só se lembrou no dia seguinte quando Ainan os encontrou perto do estábulo, perto do meio-dia.

– Ailin! – gritou Ainan ao longe, vindo em direção dela quando a viu prestes a entrar no estábulo.

– Oi! Quer me ajudar a lavar os cavalos? – perguntou Ailin, rindo da resposta que parecia óbvia.

– Não, mas posso ajudar. – a resposta sincera e disposta, apesar da risada, causou surpresa e também alívio. Afinal, eram MUITOs cavalos. – E como você está? – perguntou Ainan, olhando Ailin nos olhos.

– Estou bem, mas que olhar é esse? – perguntou Ailin, curiosa e constrangida com o tom da pergunta.

– É que fiquei sabendo que você não se apresentou ontem e que Gotsen precisou ir até a sua casa hoje de manhã. – o olhar de Ainan agora era de receio.

– Ah, sim. Ele foi mesmo.

– Ele foi e…?

– E meu tio disse a ele que confundiu os dias e que passamos a tarde treinando fora do planalto.

– Certo. Mas e a verdade, Ailin?

– Você sabe onde eu estava. Só fiquei MUITO distraída e perdi o horário. 

Ailin estava se esforçando para não transparecer o nervosismo. Havia passado a manhã inteira pensando angustiada no que fizera o dia anterior. Ter sido surpreendida por Ainan com essas perguntas a deixou mais tensa, mais ansiosa.

– Foi só isso? Você só foi até lá embaixo e ficou olhando o vale o dia todo? – insistiu Ainan, ficando já sem jeito, pois aquilo não pareceu ser verdade.

– Onde acha que eu fui? – na verdade, Ailin esperava mesmo que ele a dissesse algo que ajudasse.

– Não tenho ideia. Você acha que eu não me preocupo, não é? – disse Ainan, desviando o olhar.

Bukie também estava no clima de Ailin, então, antes de raciocinar sobre o todo, resmungou deixando escapar o que lembrou:

– “No vale […] o dia todo”! – olhou para Ailin, sabendo que ela se lembraria de ter dito isso, e ela se lembrou.

– Eu disse isso, não foi? – indagou Ailin, esquecendo da presença de Ainan por um instante.

– Como é? Então você inventou isso até pra ele? – perguntou Ainan, chateado e confuso.

– Não! Eu disse isso ontem quando ele me perguntou!

– Mas por que o Bukie parece surpreso? – até Tur, o haka de Ainan, percebeu a confusão.

Ailin não tinha saída, precisava contar a alguém qual era a situação. Tinha que ser para ele.

– Me ajuda a lavar os cavalos que depois eu te explico. Vou te contar tudo. – Ailin já se sentiu um pouco aliviada só de dizer que ia contar. Sorriu para Ainan e esperou que ele confirmasse.

– Vou pegar os baldes!

Ailin deveria ter feito essa tarefa no dia anterior, mas como Gotsen pediu a Oilavo que desse novamente essa incumbência a ela, Ailin acabou tendo mais esse dia “livre”. Terminando de lavar os cavalos, aproveitou o tempo que ainda tinha e foi com Ainan até lá embaixo, perto da entrada do Vale das Preces. Lá, contou tudo que se lembrava, cada detalhe.

– Eu não sei mesmo o que houve, você acredita em mim? – perguntou Ailin, com lágrimas nos olhos.

– Sim, acredito! Não chore. – respondeu Ainan, abraçando-a. – Nós vamos dar um jeito nisso. Não se preocupe tanto, uma hora tudo vai ser esclarecido.

– Por que tanta certeza? Até agora tudo só piorou!

– Tudo piorou? Não diga isso! Você não seria quem é hoje se não fosse por esses contratempos. Você está enturmada, está atenta, cresceu forte e saudável, é uma valente, faz parte do grupo de missões do Elinon e está cada dia mais linda! – argumentou Ainan, e demorou um pouco para pensar em tudo que havia dito embalado pelo momento, o que o deixou com vergonha e rosado.

– Obrigada. – sussurrou Ailin, também constrangida, passando a mão nos cabelos atrás da orelha.

Ainan não tinha do que reclamar. Até mesmo seu hakiba havia conseguido por causa da evolução de Ailin. 

– Não acha que tivemos mais COISAs positivas do que negativas?

– Você tem razão. Não posso simplesmente me queixar. Tenho que continuar tentando descobrir sobre isso, mas sem me preocupar tanto. Se ao menos eu soubesse se é de uma pessoa, uma outra criatura ou um lugar que vem esse mal… E, como eu te disse, não é todo dia que posso pensar nisso por MUITO tempo. Na verdade, são raros os dias. Hoje mesmo, minha cabeça parecia que ia explodir! Porque ontem foi um desses dias e passei MUITO tempo tentando juntar as peças.

– É só durante um dia que você consegue pensar nessas COISAs? Como isso começa? Não tem nenhum tipo de aviso? Você tenta todos os dias?

– Calma, calma… Bem, eu só descubro tentando, mas nem sempre lembro de tentar. Pra ter certeza mesmo, só se eu arriscasse ter náuseas várias vezes todos os dias. – explicou Ailin, fazendo cara de nojo. – O que eu sei é que não começa sempre no mesmo horário. Às vezes, parece começar no meio de um dia e terminar só no outro.

– Entendo. O que está me dizendo parece ser um ciclo. Que acha?

– Um ciclo?

– Sim. Talvez seja um ciclo natural que não tenha relação exata com os dias ou especificamente com o tempo de um dia. Assim, poderia começar e terminar a qualquer hora do dia.

– Isso faz sentido.

– A última vez foi ontem, certo? E quando foi a vez anterior?

– Faz tempo. Deixe-me ver… acho que foi um ou dois dias antes de Tsarat declarar guerra contra Novo Mundo.

(construíram no lugar equivalente?) Novo Mundo foi a cidade que se ergueu sobre as ruínas do reino Mafug, do lado de lá do portal, cujo povo inteiro abandonou a região e atravessou para o lado de cá antes de ser destruído pelo Juízo de Nuhat. A cidade, uma potência marítima, estava expandindo seus domínios alcançando um clã aliado dos hakais. O território era próximo do mesmo rio de onde vinham as águas do Igon Sanza, que circunda QeMua. O rio em torno de QeMua era um desvio projetado, um braço das Águas de Agazohu – assim chamado pelos povos mais próximos por conta das lendas de Agazohu, supostamente uma criatura terrível que protegia aquelas águas.

No dia em que a guerra foi declarada pelo conselheiro, Ailin sofreu um desmaio por ter forçado demais a memória. Por isso, se lembrava MUITO bem do dia.

– Uns 30 dias? Será que é isso? Um ciclo de 30 dias? – especulou Ainan, depois de alguns segundos fazendo as contas.

– Deve ser isso. – respondeu Ailin, mordendo a ponta de um dedo enquanto calculava.

– E quando foi a vez anterior a essa?

– Ah! Faz MUITO tempo.

Veio então o estalo:

– Hoje é lua nova. Será que é isso? – questionou Ailin, olhando nos olhos Ainan.

– Pode ser mesmo! Que acha de tentarmos contar os dias com base nisso?

– Não tenho nenhuma ideia melhor. Seria bom também se eu tivesse tempo pra pensar nesse dia e, quem sabe, tempo pra entrar no vale de novo. Sinto que pode ser algo lá.

– Bem, alguns anciãos acham que o lugar esconde poderes sobrenaturais por causa da quantidade de preces que foram feitas lá. – lembrou Ainan.

– E você acredita nisso? – perguntou Ailin, olhando-o com um sorriso maldoso no rosto.

– Eu? Eu não. Claro que não. Você acredita? – balbuciou Ainan, constrangido pelo riso de Ailin, pois, sim, ele acreditava.

– Eu só acredito em nossas profecias, no que acontece comigo e no que você me contar!

Ailin conseguiu ter uma outra visão acerca dos episódios de esquecimento, do lugar (o vale) e dos dias de pensamento livre. Era bom ter um amigo tão próximo como Ainan com quem pudesse contar. Mas não adiantava saber tanto e não se programar, assim como fez Overim. Ela sabia que iria precisar de uma maneira de escapar dos seus afazeres quando o próximo dia do ciclo chegasse.

Pela manhã, foi ter com Elinon na sala do conselho. Encontrou-o conversando com Tsarat e demorou para tomar coragem de interrompê-los. Esperou até que a conversa estivesse num ponto aparentemente fácil de interromper e disse:

– Elinon, me dá licença um instante?

– Oi, Ailin. Está com MUITA pressa? É que eu preciso resolver isso aqui.

– Tudo bem, eu aguardo.

Ficou inquieta andando de um lado a outro, até que Tsarat ficou aflito de olhar.

– Vá falar com ela. Essa inquietação está me dando aflição. – disse o mestre, dando as costas e indo para uma sala mais adentro.

Elinon riu sem jeito e a chamou:

– Ailin, o que te incomoda?

– Posso ser franca? – perguntou Ailin, com a cabeça de lado, fazendo uma careta típica dela, com as sobrancelhas erguidas, apertando os lábios.

– Claro! Comigo sabe que sempre pode. – enfatizou Elinon, cruzando os braços.

– Todos têm tempo de fazer outras COISAs, todos mesmo: os outros da minha idade, os valentes e até os mestres. Mas de mim exigem MUITO mais e eu já notei que não é apenas impressão minha. Até agora estou fazendo o mesmo treinamento puxado, também executo missões e funções como valente, tenho um treino exclusivo com você e ainda me comprometeram a ajudar aos tutores. Às vezes, eu falo e faço mais que eles! Mas meu descanso está sendo ALGUMas horas perdidas durante a semana. As exceções são quando me mandam lavar os cavalos e limpar o estábulo, ou fazer ALGUMa outra tarefa dessas que ninguém quer fazer e que leva uma tarde inteira, aí eu tento terminar o mais rápido que posso pra…

– Já entendi, Ailin. – interrompeu Elinon, bagunçando os cabelos de Ailin com uma das mãos.

– Ente-entende? – gaguejou Ailin, surpresa com a reação compreensiva e bem-humorada do mestre.

– Sim. Que bom que me disse isso. Eu só precisava desta confirmação, pois o conselho até já havia conversado a respeito.

– É? Mas, sobre “isso” o quê?

– É bom que você se ocupe com COISAs certas e gaste seu tempo amadurecendo seus instintos, seu intelecto e suas habilidades, mas se o preço disso for fazê-la virar uma pessoa desagradável e antipática, não compensa. Ninguém aqui quer vê-la estressada, ansiosa, de cabeça cheia ou de mau-humor. E não faz sentido tentarmos te disciplinar se o efeito do nosso método só alcançar, no fim das contas, o contrário disso, não é?

– E por que acha que eu ficaria indisciplinada? – perguntou por receio.

– Por que esse é o resultado que sempre tivemos aqui quando insistimos MUITO com os jovens talentosos: se tornaram pessoas arrogantes e soberbas. Essas são características de quem não respeita o próximo, não aceita bem críticas e só pensa nos seus próprios desejos. Não precisamos de mais pessoas imaturas em nossa família. Já temos mais que o necessário, não é?

– Tem razão! – Ailin riu junto com ele e continuou: – Posso dar uma sugestão para o meu caso? Isso se já não tiver ALGUMa ideia.

– Pensei em ALGUMas soluções, mas gostaria de ouvi-la antes.

– Acho que o problema é ter esses períodos curtos sem fazer nada, que só me dão mais ansiedade. Eu preferia ter esse tempo todo de uma vez, com a certeza de que posso relaxar! Que tal dias inteiros só meus de vez em quando? Me dá esse presente?

– Presente? Não… está mais pra prêmio. Você merece!

– Sério? Obrigada! – exclamou Ailin, dando um abraço em Elinon, que o ruborizou.

– Só não sei se Tsarat vai gostar MUITO dessa ideia, porque ele é MUITO organizado e não gosta de desmarcar compromissos. Quando são seus dias com ele?

– Pra ser sincera, eu não sei. Só fico sabendo quando um de vocês me avisa. Eu treinei com ele há três dias. Será que amanhã eu terei que aguentá-lo o dia inteiro?

– Você tem sorte, amanhã serei eu! 

Bukie estava do lado de fora só ouvindo e ficou bem animado com a notícia.

– Ótimo! – exclamou Ailin.

– Não vamos mexer nos dias que Tsarat estipular, mas quando for eu ou Oilavo, podemos dar um jeito. Só não pode exagerar, não é?

– Pode deixar!

A solução para os planos de Ailin já estava encaminhada. Sabia que se não pedisse dispensa durante MUITOs dias seria bem mais provável que a liberassem quando por fim pedisse, ao menos quando os dias não caíssem junto com o treino de Tsarat.

Para ela também os dias pareciam MUITO longos e angustiantes. Mas, no fim das contas, Ailin resolveu o problema bem antes de Overim. Passou as próximas semanas QUASE sem intervalos durante o dia e aprendeu MUITO com seus mestres, mas só conseguia pensar naquele dia em que desceria novamente até o Vale das Preces em busca do que lhe faltava.

Apenas três encontros num espaço de tantos anos e agora um novo encontro tão próximo do último; o Silêncio nunca havia sido visitado tantas vezes por uma mesma pessoa. Dessa vez, com Ailin e Overim, talvez o Silêncio, que tanto tentava se esconder, se revelasse.

*****

Passados aqueles dias, Ailin e Overim estavam prontos para ir atrás das respostas. Não somente de sanar a curiosidade e a tensão, mas de enfrentar a preocupação e o medo.

Dessa vez, Overim foi o primeiro a perceber que o dia havia chegado, pois desde o dia anterior ao que preverá ficou atento à presença daquela barreira em sua mente, que notou começar a enfraquecer antes de virar o dia, pouco antes de dormir. Não pôde conter a ansiedade e, MUITO antes da luz raiar, saiu a cavalo em direção ao Planalto Hakal – havia se precavido e emprestado o cavalo de Alepo no dia anterior, pois não queria correr o risco de ser vigiado novamente por QoNoxa.

Levou consigo uma das pinturas que havia feito: a imagem dele e Ailin juntos de costas, sentados frente àquela cachoeira linda, retratado já com os dois mais crescidos, como da última vez que se viram. Esperava que aquilo de ALGUMa forma contribuísse com suas memórias, caso encontrasse a pessoa dos seus sonhos.

Chegando até a estrada de acesso ao planalto, viu ao longe um grupo que vinha em sua direção. Correu novamente para fora da estrada e seguiu até próximo da montanha pela mata. O cavalo não era disciplinado e não estava acostumado com Overim; era difícil fazê-lo confiar e obedecer. Overim não sabia, mas tinha sido visto também pelo grupo – era o grupo de Elinon, que estava voltando exausto de uma missão bem-sucedida em um lugar não MUITO perto dali.

Um valente até aumentou a velocidade, mas o cansaço o fez perder Overim de vista. Como Elinon não faria mais nada naquele dia, senão detalhar a missão aos mestres presentes na vila, decidiu averiguar o caso com maior cautela. Porém, até chegar ao ponto onde avistou o estranho, Overim já estava dentro do Vale das Preces, embrenhado numa parte da mata difícil de entrar, de sair e de ser notado, por onde Ailin sempre entrava.

Overim deixou o cavalo amarrado ali mesmo e andou pela extremidade da mata, encostado na rocha da montanha, até se afastar daqueles espinhos, mais irritantes que cortantes. Contornou toda aquela parte e quando terminou, havia dado uma volta em direção oposta à entrada do vale, para o lado do beco do Silêncio. 

Um terreno ruim de pisar, uma visão um pouco turva, um cheiro forte desagradável e quanto mais tentava olhar à frente, pior ficava. Via também uma vegetação que parecia gritar uma ameaça. Ele era MUITO curioso, mas não tinha curiosidade suficiente para adentrar o local. Entretanto, não é preciso repetir que algo em seu peito parecia clamar que ele olhasse o lugar mais de perto, MUITO mais de perto.

O cavalo estava inquieto e bufava, o que causava certo receio no distanciamento de Overim, mas continuou indo, bem devagar. Sua atenção nesse momento o dera uma paciência que nunca tinha quando pensava no vale. Estar tão próximo da verdade transformava sua ansiedade e obsessão em vitória. Saboreava cada detalhe e QUASE via beleza em meio àquele ambiente tão hostil. O zumbido aumentava a cada passo.

A cautela naquele lugar o fez lembrar de MUITO que aprendera com QoNoxa. Lembrou-se da calmaria que sempre se repetia quando estava submerso no rio de águas amargas, da quietude ao sentir o fluxo nas argolas e da concentração que era necessária ao segurar a misteriosa NeixaOin, cujo terror e assombro eram tão poderosos que o lado sombrio do lugar lhe pareciam mero fruto de abandono e descuido. Não se incomodava mais. O frio, as cores lúgubres e o odor QUASE agressivo não eram mais nada. E, agora, sentia aquela energia, a mesma que já conhecia. Quão diferente estava daquele menino que ali esteve anos antes! Pensamentos mais profundos o aguardavam a poucos passos. Em poucos segundos, já conceberia sem privações e sem embaraço as sensações que o rondavam, com sentimentos de um jovem amante que ambicionava o simples, o puro, o belo…

Ah, como anseio! Como anseio encontrar…

Mesmo sendo aqui, anseio encontrar!

Possas me fazer ainda mais apreciar,

Sem montes de motivos, sê um só…

Pois um só me bastará, e o resto será pó!

Do resto aprendo a gostar: me cinjo desta cor,

A cor da escuridão, a cor que esconde a dor,

A dor que passará, como passou já o terror.

Mas que é este zumbido? Isto já senti,

Que importaria se a tivesse agora aqui?

Aliás, mais importa: quão doce será sua voz? 

E que bênçãos sua música trará a sós?

Pode ser aqui, lugar ALGUM é frio pra nós!

Que é essa dor nos pés? Me rirei mais ainda,

Outro motivo para tocar-me; logo a dor se finda!

Não sinto aquelas pedras, ficaram para trás?

Vai-te também zumbido! O riso não se desfaz!

Estes olhos choram, mas é alegria, é paz!

Grato! Foi-te, zumbido, num momento!

O zumbido se foi e consigo o esquecimento.

Overim novamente vê-se livre. As lágrimas não param: vêm cobrindo de alívio, levam a dor e a ansiedade… ah! Como sente-se vivo! As memórias voltaram! A pintura estava QUASE perfeita, só não tinha aquele encanto. Que pintura? Havia deixado junto ao cavalo, pretendia buscá-la, tinha planos, mas era difícil sair do êxtase que o acometera. Êxtase – esse era o momento! O momento que, no fundo, parecia saber existir, por tão ardente desejo de que existisse. Overim corre para a cachoeira, olha-se refletido nas águas e nelas toca com uma das mãos – É aqui! – lembra. Banha-se ali como se fosse o último banho, mas sabe que o acaso nada é, senão mero lacaio da providência. Aguardaria ali, mais quieto impossível, mas sedento, talvez. Sim, Ailin viria! Sabia.

Ailin acorda assustada, é Bukie cutucando. Que houve que não perdeu o sono desta vez? – pensa o haka, admirado com o sorriso no rosto da dorminhoca.

– Dormi tão bem hoje. Espero que o dia ainda melhore! – disse Ailin, com a voz ainda rouca e os olhos MUITO inchados.

Bukie sai do quarto, não vê ninguém acordado e a chama. Ele a conduz até à porta, corre até lá fora e vê se é seguro; só há uma senhora passando, dá para arriscar. Volta e a avisa, saem os dois juntos, vão sair em direção à saída contrária à montanha. Antes, pegam um cavalo, ninguém notará, “mas é só emprestado”. Cavalgam até a casa de Ainan, que já os espera lá na frente para ir junto. Monta também Tur. Vão agora os quatro e saem da vila. Só os vigias viram, não se incomodaram. Ora, é Ailin! Dão a volta por fora do planalto, precisam chegar ao outro lado. Pronto, estão lá, QUASE embaixo da ponte, na pesada quietude que aflige a consciência, não o suficiente. A missão de Ainan está concluída. Ele se despede e os deixa, levando o cavalo.

Ailin e Bukie não vão entrar no vale por ali, não precisam desta vez; vão pelo lado mais fácil, o lado mais limpo. Que pena, não notam o cavalo de Overim, só ouvem poucos sons dele, mas “talvez seja o vento”. Prosseguem. De novo: aquelas espinheiras, as mesmas pedras, um barro frio, as cores mórbidas, o zumbido desmotivante. Prosseguem. Foi duro e pareceu à toa. Mas só pode ser ali… tem que ser ali. O zumbido sumiu? Mas que…? É ali!

– É aqui! – grita Ailin, grita o silêncio que a libertou, um grito silencioso. O silêncio do grito da liberdade.

Bukie se deleita, pouco menos que a companheira fiel. Corre antes dela, vai mais fundo e já está vendo – Ele está aqui! – entoa, mas só com a vontade, reclamando o direito à alegria da pequena que também já o viu.

– Ofer! – QUASE isso, mas que importa? Sim, é ele!

Overim, que está n’água, sente forte aquela essência, mas de repente também sente do Silêncio o presente. É ela! Sua mente está potente, só por isso crê. Ela está vindo e vem depressa. Ele tira os pés da água, mas está ensopado, até nisso há graça aos olhos daquela que vem vindo. O abraça, que forte! Que entrega! É real? Ele crê! Ela crê! Bastaria. É intenso, é belo, é quente, e o resto não se narra… é puro!

Ailin e Overim conhecem algo novo, mas antigo, algo natural, mas só deles. Não têm segredos, tudo se desvenda, descobrem-se, são um só. Explodem em sabor.

O Silêncio observa, é a causa e é grato. Só não sabe se voltarão, se se repetirá, e não ajudará, mas esperará. É o trato. Um acordo consigo.

Mas o dia é deles, o apreço e a atenção de um pelo outro redobram. Sentem-se um do outro, são um para o outro. Bukie, que não constrange e não é constrangido, parece ser o mais sensato, o mais adiantado e se atém a pensar. Os dois também precisam, então se acalmam, se concentram, refletem entusiasmados e comunicam:

“Eu sabia que conseguiríamos!” – alega Ailin, sim, enfeitada de sorrisos.

“Eu sabia que existia alguém, sabia que você existia”.

Overim pegou-a pela mão e foi até o lugar exato da imagem de que se lembrava.

Contaram um ao outro sobre tudo que aconteceu, cada detalhe de suas histórias, enquanto Bukie foi buscar a pintura junto ao cavalo, a pedido de Overim. Ele logo voltou e os interrompeu com temor.

Havia alguém ao longe olhando o cavalo, certamente um hakal. Bukie conseguiu trazer a pintura sem dificuldades, a vegetação o ajudou. Ailin e Overim vão em direção ao cavalo correndo e param no limite da distância em que poderiam ser vistos, ainda dentro do Silêncio. A visão de Overim era excepcional, enxergava MUITO bem o intrometido e pôde descrevê-lo para Ailin, que notou rápido o perigo: era Densat, um dos poucos valentes que se opõem à opinião do conselho sobre ela.

“Mas logo ele? É Densat!”

“Qual o problema?”

“Ele é desequilibrado, é o guerreiro mais instável que temos. Faz de tudo pra entrar em confusão e QUASE foi expulso dos valentes ALGUMas vezes. O pior é que ele não gosta de mim e já até me desafiou uma vez, mas um mestre interferiu”.

“Entendi, ele é um problema. O que faremos?”

“Se eu for até lá não terei como me explicar, mas posso pegar o cavalo”. – explica Ailin.

“E isso não te trará problemas depois?”

“Provavelmente, mas parece que não tem outra maneira”. – responde enquanto amarra firme o calçado.

“Tem uma outra maneira. Eu posso ir até lá e chamar a atenção dele enquanto você traz o cavalo pra cá. Ele nunca me pegará. Eu o despisto e volto aqui”.

Ailin estava QUASE aceitando a ideia. Eles Densat observaram mais um pouco, que cutucava o cavalo bravo e dava tapas fortes em seu lombo. Aquilo foi irritando Overim.

“Não garanto mais que vou só despistá-lo”.

Ailin não gostava de Densat, mas não queria que houvesse nenhuma possibilidade de Overim se machucar ou se meter em confusão. Afinal, Densat era um valente experiente.

Bukie os interrompe: outra pessoa está se aproximando do cavalo. Esse, de longe Ailin reconheceu, era Elinon.

“Agora não dá mais. Não posso ir e você também não” – conclui Ailin.

“O cavalo não é meu! Preciso fazer ALGUMa COISA!” – argumenta Overim.

Elinon e Densat vão até o cavalo e o soltam, provavelmente para levá-lo até um dos estábulos da vila. Antes, mexem com cuidado na cela e nos demais acessórios, examinando com atenção para ver se descobriam algo relevante sobre seu dono. Havia uma bolsa também, era do pai de Alepo, continha estranhos instrumentos de corte, usados por ele na confecção de objetos de madeira e pedra. Também continha ALGUMas COISAs de Overim: comida, uma espécie de funda, o látego inscrito – que cortara fora da cela do cavalo de QoNoxa – e, o item mais peculiar: parte de um pergaminho MUITO antigo, inscrito com o alfabeto Dolsai. E esse item Overim não podia perder em hipótese ALGUMa.

“O pergaminho!” – exclama Overim, segurando firme o braço de Ailin. Ele olha nos olhos dela, passa a mão em seu rosto. Ela entende. “Eu preciso ir, fique aqui”.

Overim sai sorrateiro se esgueirando pelo lado oposto do vale, mas, à frente, é a parte mais limpa, então se prepara para correr em direção à estrada para fora do território hakal. Sur, o haka, o vê e se lança sobre Elinon, que imediatamente entende, solta tudo e vira-se para o caminho de Overim, procurando-o. Overim desponta fora da vegetação, correndo MUITO rápido, sendo seguido por Elinon e Densat, que em hakiba são QUASE tão velozes quanto ele. Mas quem está fugindo sempre tem ALGUMa desvantagem ao precisar escolher o caminho.

Ailin corre até o cavalo, que está MUITO agitado e, com dificuldade, o leva para dentro do Silêncio. Não pode fazer outra COISA a não ser esperar que não aconteça o pior. Overim não está numa situação boa, pois Jio ainda está inconsciente, então não pode nem defender-se em Modo Nai se precisar. Continua correndo. Vai em direção à estrada sem nem sequer olhar para o caminho que sempre faz até ali.

Overim só havia lutado uma vez na vida e havia sido totalmente sem controle, além de ter sido uma ocasião de extremo ódio, no episódio do teste que QoNoxa armou na vila feirante. Overim tinha receio de lutar, mas parecia algo inevitável agora. O maior receio era de que não desse tempo para Ailin tirar o cavalo de lá e se esconder. Corria o máximo que podia, mas mesmo com toda sua velocidade, os dois continuavam logo atrás. Nesse tempo, só pensava em duas COISAs: tempo suficiente para Ailin escapar e conseguir despertar o quieto Jio. Sua sensibilidade agora era diferente de antes e podia ao menos senti-lo dentro de si, só não havia comunicação. Voltou toda sua concentração para a mente de Jio e insistiu até que, por fim, ouve resposta – Jio retoma a consciência devido ao estresse de Overim, assim como na primeira vez que entrou em Modo Nai (no episódio com as hienas). Agora o jovem sabe que pode enfrentar os hakais.

De uma vez, Overim crava os pés no chão e para de correr sem se virar para trás. Elinon e Densat fazem o mesmo, surpresos. Ele espera sua pele enrijecer e vira lentamente em direção a eles, que logo percebem:

– É um QaFuga. – disse Elinon, já na expectativa de que alguém fosse se ferir gravemente.

A pele de Overim não ficou como da última vez, no primeiro encontro com Alef, QUASE perfeitamente lisa. Estava áspera e de aparência grosseira. Densat ficou intimidado, mas não quis demonstrar e foi para cima dele. Foram MUITOs golpes, com movimentos impressionantes de Overim se esquivando de alguns e levando outros, que mal sentia em sua pele. Elinon apenas os observava; estava avaliando a destreza do jovem, assim também como o desempenho de Densat, que não lutava fazia um bom tempo. Overim estava indo bem e não se feriu com nenhum ataque, mas não quis atacar, com exceção de poucos golpes defensivos que desferiu tomando distância. Sempre observando se o segundo hakal iria agir, pois isso seria um grande problema.

O valente era forte, mas era malha, com o corpo mais preparado a receber golpes do que a dá-los, assim como Elinon. Sua ofensiva não era MUITO impressionante. Já estava irritado e cada vez mais preocupado por não conseguir dominar o jovem. Overim, por sua vez, parecia calmo, sem fazer MUITO esforço, mas era só seu olhar. Ele não estava se esforçando tanto, mas não estava nada calmo. O estresse corporal era grande e ainda tinha a preocupação com Ailin. Overim finalmente golpeia Densat com força na coxa direita, fazendo-o cair vários passos atrás e com a perna paralisada. Ele levanta o olhar calmo e sombrio na direção de Elinon.

Elinon conhecia bem o idioma Sandira e disse ALGUMas palavras a Overim:

– Quem é você e por que está aqui?

Overim ficou surpreso ao ouvir da boca do hakal seu idioma.

– Meu nome é Overim e só estou de passagem. Precisei parar, mas não pretendia ficar MUITO tempo, por isso não queria ser visto.

– Onde estava indo?

– Daqui vou pra casa, mas percebi que o vale não tem saída. – Overim procurava ainda uma forma de não precisar mentir.

– O que são aqueles instrumentos na bolsa? – Elinon tinha uma noção de que eram para entalhe, mas a ocasião o fez repensar.

– São para artesanato apenas.

– Então por que correu quando encontramos seu cavalo?

– Corri por que sabia que viriam atrás de mim, talvez eu pudesse despistá-los e voltar para pegá-lo.

– Se não estava fazendo nada de mais, não seria mais eficiente tentar conversar e explicar?

– Sim, isso se eu tivesse visto você primeiro. Mas seu amigo não é estável, basta olhar pra ele. Ele nunca conversaria em paz com um QaFuga.

– Não posso dizer que esteja errado, mas só de olhá-lo deduziu isso?

– Não. Eu o vi provocando meu cavalo. Aliás, o cavalo não é meu, preciso devolvê-lo logo. E o dono não é calmo como eu.

– Sabe que o lugar onde você estava nem nós entramos? O Vale das Preces é um local sagrado para o nosso povo.

– Não conheço suas tradições, mas não há nenhuma inscrição ali por perto, nem proteção. O lugar é aberto e qualquer um consegue passar.

– Sim, mas o território é nosso e isso você provavelmente sabe. – Elinon viu certa verdade na firmeza com que Overim se explicava e, além do fato dele ter corrido, não encontrou nenhum motivo para tentar detê-lo.

Elinon olhou para Densat, que fez cara de culpado. Ponderou sobre o que Overim disse e lhe pareceu conveniente que deixasse o jovem partir.

– Venha conosco então, pegue seu cavalo e vá pra casa.

A decisão de Elinon foi diplomática, mas colocou Overim em uma situação MUITO delicada. Suas opções eram: ir até o lugar onde o cavalo não estava mais e esperar o desfecho ou tentar fugir novamente, talvez tendo que enfrentar os dois. Decidiu ir com eles.

Foram juntos até a entrada do vale, Elinon à frente, seguido de Overim que ia sendo escoltado por Densat. Ao longe, já puderam ver que o cavalo já não estava mais lá e Overim mostrou-se preocupado e inquieto. Antes que os dois dissessem ALGUMa COISA, ele os fez pensar de acordo com seu plano:

– Meu cavalo fugiu? Mas como?

– Eu o desamarrei. Pretendia levá-lo comigo lá pra cima. Como não passa MUITA gente por aqui, deve ter fugido mesmo. Ele estava MUITO agitado. – Respondeu Elinon, o que tornou o plano de Overim um pouco mais fácil.

Overim correu até o lugar onde o cavalo estava e Densat se apressou a ir atrás, sem ter ouvido direito o que Elinon havia dito a ele.

– Se acalme, Densat. – disse Elinon, apreensivo.

Overim percebeu no chão um rastro leve deixado por Ailin ao levar o animal para o vale e, para disfarçar isso, teve uma ideia. Procurou pelo chão o seu rastro da ida até ali enquanto sutilmente desfazia o rastro de Ailin.

– Encontrei. – disse Overim, em voz baixa, só o suficiente para Elinon entender.

– Um rastro? – perguntou Elinon, olhando confuso para as marcas no chão.

– Sim. Isso aqui deve ser por conta do seu amigo, mas esse rastro sem dúvida é do meu cavalo.

Voltaram alguns metros até próximo do trieiro que se formou com as idas de Overim até o planalto e podia-se ver ALGUMas marcas recentes que haviam sidos feitas por ele naquele mesmo dia, mas que, dada a situação, pareceram ser da fuga do cavalo.

– Peço desculpas. Posso segui-lo daqui? Preciso ir o mais rápido que puder. – disse Overim, tentando apressar a decisão de Elinon em liberá-lo.

O mestre e Densat se olharam sem ter MUITO mais o que fazer.

– Vá, mas se passar aqui novamente, escolha não agir de modo tão suspeito. Não podemos enfraquecer o acordo entre nossos clãs por qualquer bobagem. Farei um relatório sobre isso, então, se houver reincidência, será um problema.

Overim assentiu com a cabeça, virou-se e correu, supostamente atrás do cavalo. Assim que sumiu da vista deles, deu um jeito de parecer que os sons de sua corrida continuavam, de forma a observá-los voltando para o planalto, a fim de voltar ao vale. Sua visão era MUITO superior à deles. Só precisou ter paciência e voltar conforme podia, à medida que eles andavam em direção à subida pela encosta. Quando eles sumiram atrás da montanha, Overim para perto da estrada para, de lá, poder ver melhor os dois subindo. Quando isso aconteceu, seguiu de volta ao vale.

Passou por baixo da ponte em direção ao vale tão silencioso quanto era possível e sentiu novamente o zumbido, que logo passou. Percebeu uma inundação de memórias outra vez, como se já tivesse perdido parte delas naquele pouco espaço de tempo. Ailin estava logo ali, esperando razoavelmente tranquila, sob influência dos benefícios do lugar.

“Deu tudo certo?” – perguntou Ailin, antes de abraçá-lo com gosto, sentindo mais uma vez o calor de seu corpo.

Overim contou os detalhes e Ailin apenas lamentou que Densat não tivesse tomado tantas pancadas quanto deveria. Enfim, estavam em segurança.

Por um momento, já com os pensamentos fluindo tão lúcidos e acelerados, lembrou-se de algo estranho do período em que esteve em Modo Nai. Teve a sensação nítida de que estivesse controlando seu corpo nos primeiros movimentos que fez, mas no decorrer da luta essa sensação havia se desfeito. Foi algo curioso, mas tão improvável que parou de pensar. Afinal, em Modo Nai é a QaNai que assume.

Overim se jogou nas águas da cachoeira. Ailin entrou em seguida.

A emoção do simples olhar nos olhos, tocar a pele, sentir o calor… ser o motivo daquele sorriso… tudo parecia mágico. Ailin e Overim aproveitaram cada instante, dessa vez sem se preocupar nenhum momento com uma solução para a perda de memória. Parecia não importar mais; eles sempre voltariam um para o outro. Aquela maneira de viver não estava certa e eles sabiam, mas não conseguiam pensar numa maneira de resolver as COISAs. Já desejavam verdadeiramente começar uma família, mas como fariam?

Ailin se emocionou ainda mais ao ver a pintura que ele fizera dos dois sentados à beira d’água. Aquela imagem na cabeça de Overim era a prova da sanidade dos dois que havia virado uma pintura e, agora, um presente.

Passadas as MUITAs horas, chegou o momento da despedida. Ailin sairia antes, pois precisava ter certeza de que ninguém vigiava o local. Enviou primeiro Bukie, que rondou os arredores do vale e da ponte, assim como um trecho da estrada e do entorno da montanha – estava tudo limpo. Ailin sentiu o cheio e o sabor de Overim uma última vez e se foi. Deu a volta novamente e entrou na vila pelo lado que havia saído – rapidamente, as lembranças mais perfeitas de sua vida começaram a deixá-la outra vez, embora ALGUMas mudanças fossem maiores do que o Silêncio pudesse esconder.

Overim saiu QUASE imediatamente após a saída de Ailin, disparado em seu cavalo, sentindo ainda aquela energia familiar, mas com a mente voltada para a imagem do rosto da jovem. Seguiu assim até QeMua, mas quando lá chegou, pegou-se pensando em algo que não sabia mais o que era, algo sem sentido. Tentava organizar os pensamentos e as imagens, mas eram apenas vultos e sensações que vinham de lugar nenhum, e logo se viu preso à imagem que os representava: ele e aquela menina sentados no mesmo lugar de sempre e para sempre.

O que poderia pareceria tão pouco e tão limitado, ou até atormentador, era sua esperança, o objetivo que o mantinha mais vivo que nunca.

*****

Ao chegar em casa, o primeiro ato de Ailin foi guardar a pintura embaixo de sua cama. Quando acordou, já não se lembrava de nada. Tudo parecia mais apagado que um sonho sem importância. Até mesmo sua saída da vila com Ainan era uma lembrança vaga. Bukie ter lhe mostrado a pintura dias depois da volta do vale foi o que a fez gradativamente aceitar a ideia, gostar e, por fim, ansiar o próximo encontro. Depois que entendeu o que havia acontecido, passou a não contar mais a Ainan sobre as falhas na memória.

Os dias agora eram mais intensos e os dois viviam suas vidas sem a velha ansiedade, sabendo que faziam parte de algo maior e esbanjavam felicidade, embora não pudessem compartilhar o motivo com outras pessoas. Os encontros passaram a acontecer com maior frequência, sempre maravilhosos, apesar de um ou outro contratempo, mas nada que impedisse o desfecho deslumbrante ou que atrapalhasse sua continuidade.

A cada dia, Ailin e Overim adaptavam melhor suas vidas em torno desses encontros. Seus argumentos, desculpas e planos eram QUASE desnecessários. Overim dispunha da confiança de QoNoxa, que com o tempo teve certeza de que ele continuava indo ao planalto, porém, às escondidas. Enquanto isso, Ainan continuava a apoiar Ailin, mesmo sem ter certeza de que aquilo a fazia bem, mas cada vez mais despreocupado, mediante as habilidade dela e da suposição de que os apagões de memória (independente do motivo) não eram tão comuns quanto ele pensava.

A história de Ailin e Overim estava sendo escrita com seus melhores e mais felizes momentos sendo afastados deles. Mas a vida não se resume aos prazeres pessoais. COISAs importantes e impressionantes continuavam a acontecer ao redor dos dois, sendo compartilhadas entre eles em cada encontro silencioso. Apesar da forma honesta e ampla com que compartilhavam tudo, a vida lá fora era tão diferente, tão contínua, tão perigosa e preocupante… uma realidade ameaçadora da qual fugiam. Enquanto fugiam do mundo real, abraçavam uma ilusão na esperança de ser realidade.

Na vila de Ailin, rumores de guerra se espalhavam e mais gente do povo passava a buscar os conhecimentos de Tsaron, que ensinava o que sabia sem pudor. Mais profecias estavam vívidas na mente do povo, que continuava dividindo opiniões sobre Ailin. Ela já não se incomodava com os olhares de desprezo, medo ou fúria, e agia como uma pessoa qualquer, cumprindo conforme suas forças tudo o que chegava às suas mãos, sem negligenciar o que não fazia parte da obrigação – uma valente competente.

Os treinos continuavam pesados. Aqueles feitos com Elinon distinguiam-se dos demais, especificamente por serem sobre Bukie. Eram formas de explorar as possibilidades da Vesek Akruel de acordo com o desempenho do haka – sua força, velocidade, rigidez, flexibilidade, etc. Não era mais novidade no clã que esses treinos acontecessem sob supervisão do mestre, o que causava certa inveja a alguns. O importante era que Bukie estava crescendo forte e primoroso. Ailin estava excepcionalmente dedicada e concentrada. Dava importância a cada detalhe, aproveitava bem seus intervalos durante os treinos diários e aprendia sobre tudo, inclusive sobre a alimentação dela e Bukie, ponto importante para seus treinos. A cada encontro no Silêncio, Overim via Bukie maior e mais robusto, e se alegrava por isso. Bukie não sabia, mas já estava apto ao hakiba dentro do Silêncio, apenas não havia tentado mais.

É difícil descrever como ela via essa espécie de vida dupla e a segurança que tinha sobre a parte disso tudo, que era secreta até para ela. Isso talvez fosse o que a motivava a fazer todas suas obrigações o melhor que podia. Seu coração já estava no lugar errado faz tempo.

Quando estavam no Silêncio, com todas as suas memórias, sempre sabiam que precisavam tornar aquilo definitivo, pois o lugar não trazia apenas suas lindas memórias de lá. Trazia também mais luz sobre os pensamentos que eles haviam tido fora de lá; pensamentos que apontavam apenas para a satisfação pessoal. Sua felicidade estava dependente de sua ilusão egoísta.

Quando se encontravam, contavam as novidades, falavam da situação de seus clãs, sobre seus aprimoramentos físicos, suas amizades e tudo mais que fosse parte notável de suas vidas. 

Overim também contou como arrumou encrenca com novos conhecidos que moravam mais ao meio de QeMua, num dia que cavalgou pelo meio da cidade com Luanda e Alepo, derrubando sem querer uma tenda de frutas.

– Mas por que ele ficou tão zangado? – perguntou Ailin, achando graça na história e no ponto de vista exagerado de Overim.

– Por que as frutas rolaram pelo chão e não deu tempo de voltar pra ajudar, por que quando conseguimos perceber já estávamos MUITO à frente. ALGUMas pessoas se aproveitaram da situação pra pegar sem pagar.

– E acha que por isso ele está te perseguindo? – Ailin achava mesmo que era um exagero.

– Sim! Ele nos xingou de tudo que você pode imaginar e correu atrás de mim com um bambu!

Ailin não pôde conter o riso.

– Chama isso de perseguição?

– Não, eu chamo de perseguição ele ter saído pela vila perguntando a todos sobre mim e Alepo, ter encontrado a casa de Alepo e atacado maçãs podres lá. Isso, além de estar até agora tentando descobrir onde é minha casa e quem eu sou, pelo que fiquei sabendo.

– Isso sim é perseguir! – disse Ailin, rindo ainda mais. – Agora posso te amar? – gostava de encerrar os assuntos assim.

O que Overim não sabia era que aquele homem da quitanda era mesmo um tanto desmiolado e não descansaria enquanto não o encontrasse para tirar satisfação.

Alguns dias se passaram e Overim teve novas notícias do homem das frutas, cujo nome era Marvam. Alepo ouviu uns amigos de Alef dizendo que Marvam estava jogando a culpa dos maus negócios no ruivo amaldiçoado que tocou sua tenda, pois supostamente a partir daquele dia a COISA desandou. A única informação que parecia ter era sobre ele ser discípulo de QoNoxa. Esses amigos de Alef não se davam bem com Alepo; eram zombadores, desleais e arrogantes, a cara de Alef, que não era exatamente como eles, mas se dava bem até demais com esse tipo. Alepo contou o que ouviu a Overim, que não deu MUITA importância.

– Por que não tenta conversar com ele e pedir desculpas? – sugeriu Berim, que não estava no dia do incidente.

– Já tentei, mas ele não entende. Ou não quer entender, não sei. Tentei me explicar e ajudar aquele mesmo dia, só que a confusão foi MUITO grande e numa outra vez fui com Alepo até lá e, quando ele nos viu, fez um escândalo. Tivemos que sair de lá às pressas. MUITA gente ficou olhando. – explicou Overim, rindo ao final.

– Você tem que ver a taboca enorme pintada de amarelo que ele tem. QUASE nos acertou! – disse Alepo, fazendo com as mãos o movimento do homem quando tentou acertar Overim com o bambu. – passou assim da cabeça dele! – apontou para Overim, que olhou para Luanda erguendo as sobrancelhas.

– Sou só eu que me irrito por nunca estar quando essas COISAs acontecem? – disse Luanda, que não estava em nenhum dos dois contatos de Overim com Marvam. – Já perceberam? Eu nunca estou. Incrível.

Nesse mesmo dia, os quatro foram até a estaca de Zarath e conversaram sobre tudo que sabiam daquele lugar, com ALGUMas informações novas trazidas por Overim.

– Pena que não vivemos naquela época! Deve ter sido demais! – disse Berim, sorrindo impressionado olhando o monumento.

– Está doido? Esqueceu de quanta gente morreu naqueles dias? Espero nunca presenciar uma guerra! – esbravejou Luanda.

– Ah, isso é! – respondendo Berim, constrangido com um sorriso sem graça.

– Já viram os desenhos sobre Zarath erguendo a barreira? – perguntou Overim, deixando os outros três MUITO curiosos.

– Eu nunca vi. – disse Alepo.

– Nem eu! – respondeu Berim, afobado para ouvir sobre isso.

– Mas que desenhos? – perguntou Luanda.

– O vô QoNoxa tem MUITOs desenhos feitos pra ilustrar COISAs que aconteceram no mundo inteiro. Alguns desenhos são MUITO antigos e talvez tenham sidos feitos pelos próprios Acsï. Pelo menos é o que os antigos diziam. Uma vez, ele me mostrou alguns sobre QeMua, e tinha esses sobre Zarath, o rio, a barreira…

– E como era a barreira? – perguntou Berim, curioso para saber mais sobre as lendas que o ancião contava.

– No desenho, a barreira parecia um véu de luz saindo do rio, indo até os mais altos céus. Soa como algo tão impossível, não é? E ver os desenhos não ajuda.

– E como ele fazia isso? – perguntou Luanda, que lembrou-se de ter ouvido brevemente algo sobre isso.

– No desenho, ele parece estar puxando as argolas pra trás. Segundo o desenho, cada argola é uma das extremidades de uma corrente que, imaginem só: passa por dentro da pedra e sai pela parte de trás dela, mas MUITO, MUITO abaixo do rio.

– Corrente? Mas o que ela faz? – Berim estava MUITO interessado no assunto.

– Sim, corrente. Não faço a menor ideia. – disse Overim, coçando o queixo e olhando pra cima.

– Alguém sabe de quem foi a ideia de esculpir Zarath na pedra? – perguntou Berim.

– Foi o Utama daquela época; acho que se chamava SoqaLi. – repondeu Alepo.

– SeqaLi – corrigiu Overim. – Foi o que QoNoxa me disse.

Utama era o título de líder do clã QaFuga; significava “bravo”. Os QaFuga não têm um conselho como a família Hakal. Quem decide COISAs importantes para o clã como questões de guerra é o Utama, nomeado pelo povo a partir de sua fama, honra e nobreza, mas quem julga as causas do povo são os anciãos, nomeados às vezes pelo Utama e às vezes pelo próprio povo. QoNoxa é um dos anciãos, mas sempre foi mais envolvido com questões de guerra, apesar de ser o mais procurado para conselhos e ser o único curandeiro do clã.

– Ah! Já ouvi esse nome! – exclamou Berim, erguendo o indicador, provavelmente se confundindo.

– Os textos antigos dizem que aquele Utama era QUASE do tamanho de um acsi e que lutava como um deles. – comentou Overim.

– Será mesmo? Tem cara de lenda! E outra: por que não se ouve tanto sobre ele como de Ranald? – questionou Luanda.

– Bem, alguns escritos dizem que ele era ambicioso e cruel. Parece que isso foi a maior causa daquela guerra. O que ninguém sabe é como ele conseguiu auxílio de Zarath, que era um acsi conhecido pela sua bondade. Ninguém entende porque ele interviu por alguém tão corrupto como Utama. Aparentemente, os grandes contos sobre SeqaLi foram esquecidos por ele não ser alguém que o povo queria se lembrar.

Isso tudo Overim já havia contado a Ailin também. Ambos tinham mais informações sobre os dois povos do que a maioria das pessoas de seus clãs.

*****

Perto de um dia de encontro, houve um indício de que QeMua poderia ser atacada por Novo Mundo. Não era algo MUITO provável, visto que aquele povo parecia mais empenhado em conquistar territórios mais próximos das Águas de Agazohu, por ALGUM motivo. Mesmo o ataque sendo improvável, Berim ficou tão preocupado com isso que, após insistir MUITO, Overim se convenceu a treiná-lo e ainda decidiu fazê-lo com os três, que aceitaram.

Overim contou isso tudo a Ailin também no encontro seguinte, mas ela não pareceu dar atenção ao assunto. Ailin estava apreensiva com Bukie, que por aqueles dias estava MUITO quieto e nem quis ir até o vale com ela, ainda mais sem saber o que encontraria lá. 

Bukie estava mesmo apático. No começo, ele parecia apenas cansado da rotina. Ailin percebeu que a fome de seu haka havia aumentado, o que parecia um sintoma avesso àquela falta de ânimo. Ailin demorou para deduzir que ele não estava bem. Até que, num passeio com Ainan até o Campo dos Lamentos, Bukie caiu de cima do cavalo desacordado. Ailin o levou depressa de volta à vila e foi até Bran, um dos especialistas em diagnósticos e procedimentos medicinais do clã.

Ailin contou detalhes de COISAs estranhas que haviam acontecido com ele nos últimos dias, mas não foi suficiente. Outros especialistas do clã foram chamados, já que se tratava do haka da Vesek Akruel. Também descobriram MUITO pouco. O que parecia claro era que Bukie estava com desgaste muscular, mas o resto era difícil dizer, os sintomas eram MUITO vagos.

Ailin precisou se afastar de ALGUMas atividades e, no período que ficava com Bukie, aproveitava para ler o que Gran tinha disponível sobre hakas (doenças, alergias, ciclos naturais, etc.). Quando começava um assunto interessante ou que tivesse ALGUMa chance de ser o caso de Bukie, ia até o fim, mas quando o assunto não parecia ter valor para o seu caso, nem informação útil usualmente, passava para o próximo. Foi assim por vários dias. Quando encontrou-se com Overim, contou a ele tudo em detalhes. Overim chegou até a contar ALGUMas COISAs que sabia sobre alguns sintomas daqueles e possíveis tratamentos com ervas, mas nada adiantou, pois aquelas informações todas ficaram detidas no Silêncio. Eles deduziram que isso aconteceria, mas não souberam como fazer para manter as informações fora dali sem serem descobertos. Por um instante, chegaram a questionar se as visitas àquele lugar não seriam a origem do problema.

*****

Dias depois, houve um tumulto no Planalto Hakal. Um vigia avistou lá de cima um homem caído poucos passos antes do caminho que subia pela encosta da montanha. O homem desfalecera antes de entregar uma mensagem que trazia em mãos: eram desenhos gravados com tinta vermelha em couro de cobra. Tsarat foi chamado para tentar identificar de onde vinha a mensagem e não teve dúvida de que era do povo Sulmati, que estava sendo ameaçado pelo exército de Novo Mundo. Moren e Jolen eram os maiores conhecedores do idioma, símbolos e cultura Sulmati, e assim que puseram os olhos na mensagem souberam que se tratava de um pedido de socorro. Aquele era um povo MUITO ligado à sua cultura e cheio de misticismo e simbologia. Jolen não teve dúvidas de que a cobra era Novo Mundo e o vermelho era o sangue do povo Sulmati. Os símbolos gravados eram ideogramas pedindo a ajuda dos hakais sem MUITO mais informações.

Tsarat tratou de mobilizar QUASE todo o contingente de valentes, excluindo alguns vigias e dois mestres, que ficariam no planalto. Enquanto isso, Moren e Jolen tentavam decifrar um outro símbolo que ainda não tinham entendido bem. Em pouco tempo, os valentes estavam todos prontos para partir. Ailin não foi convocada, nem ficou sabendo da mobilização enquanto ocorria, pois Elinon sabia que era um risco levá-la sem Bukie, mas seria difícil convencê-la da dispensa. Gran cuidou de mantê-la distraída até que não desse mais para seguir o grupo.

O mensageiro havia sido levado até um local de observação onde um outro especialista, como Gran, foi designado para cuidar de suas feridas e interrogá-lo assim que acordasse. O homem foi deixado sozinho por alguns instantes pelo hakal que, quando voltou, não o encontrou mais deitado lá. Houve uma busca silenciosa pela vila feita pelos valentes que não foram até Sulmati e alguns poucos homens que sabiam do que estava acontecendo. Com receio de que os demais hakais se alarmassem sem necessidade e agissem precipitadamente, preferiram manter a busca silenciosa. A notícia chegou até Gran através do haka de um dos mestres e ele deixou Ailin a sós com Bukie a fim de ajudar nas buscas.

 Segundos depois, Ailin foi surpreendida por um homem que nunca tinha visto, de aparência MUITO diferente do seu povo. O homem parecia impaciente, estava ofegante e tinha um olhar ansioso. Quando avistou Bukie naquele estado adoecido, foi como se tivesse se convencido de ALGUMa COISA, pois imediatamente em seguida fitou os olhos arregalados em Ailin e correu em sua direção com uma espécie de punhal MUITO fino em uma das mãos. Tentou acertá-la uma primeira vez, mas ela bateu em sua mão com força tirando o rosto da frente do golpe. A pancada não fez com que o homem largasse o punhal. Ailin pegou Bukie e correu para fora da casa. Havia ALGUMas pessoas dispersas do lado de fora que a viram sair e gritar “If-babú, if-babú”, que era o código da vila para invasões.

Antes que alguém decidisse agir, o homem tirou um amuleto de dentro da boca e proferiu palavras desconhecidas em alta voz, fazendo com que o céu QUASE instantaneamente mudasse de cor. Quem estava por perto temeu e alguns entrarem em hakiba. Todos ficaram tão atemorizados com o que viram que não tiveram coragem de intervir. Ailin estava completamente desinformada sobre tudo, mas a maioria na vila sabia que os valentes tinham saído para socorrer um chamado de guerra. Eles só não sabiam do que exatamente se tratava e do caso do sumiço do suposto mensageiro, que nesse momento foi reconhecido por um dos que estavam auxiliando nas buscas.

– É ele! É o mensageiro! – gritou assustado o hakal, pouco antes de se conectar a seu haka.

– Que mensageiro? – perguntou Ailin, atônita.

– Ele está tomado! – exclamou alguém, querendo dizer que ele estaria possuído por ALGUM outro ser. – Onde está Gotsen? – temia que não houvesse ninguém bom o BASTANTE para deter o que quer que fosse aquilo.

Houve mais alguns gritos e ninguém respondeu Ailin, que não teve MUITO tempo nem de pensar, pois o homem a atacou novamente, mas dessa vez com um semblante sombrio e com MUITO mais velocidade.

Ailin era definitivamente MUITO ágil e mesmo assim QUASE foi atingida no segundo ataque. O homem não parou, tentou contra ela vez após vez, acertando apenas o ar, mas uma das tentativas tocou seu cotovelo e ela se afastou. Com mais alguns segundos, começou sentir seu cotovelo formigar e um coceira diferente. Percebeu que se tratava de um tipo de veneno na lâmina do homem.

Alguém gritou “Vesek Akruel”, sem saber ou sem se lembrar de que ela estava impossibilitada de invocar tão poderosa condição. Ao contrário, a situação de Bukie, carregado por ela, estava sendo também um empecilho contra aquele homem, pois não podia largá-lo de jeito nenhum.

Ailin continuava ouvindo especulações sobre o homem estar sendo controlado por uma força maligna, o que fazia com que ela hesitasse em tentar acertá-lo quando tinha oportunidade.

Ventos fortes começaram a soprar, tão fortes que pareciam empurrões, mas logo esses empurrões se mostraram ser uma arma daquele homem, que começou outra sequência de ataques. Os ataques pareciam estar sincronizados com as rajadas de vento que a atrapalhavam e a fizeram ser golpeada no ombro. Dessa vez, um golpe profundo. Moren e alguns outros valentes a avistaram de longe nesse instante e gritaram a ela que reagisse, vindo em sua direção socorrê-la. Gran vinha junto e, compreendendo finalmente o que estava acontecendo, gritou:

– É um mago de Novo Mundo!

Ailin, entendendo imediatamente que o homem não estava sob encanto, nem sendo manipulado por forças malignas ou coagido por forças exteriores, baixou a fronte extremamente irada. Ao olhar para Gran, ficou de costas para o mago. O mago aproveitou-se do momento e harmonizou um ataque com uma rajada que partiu de ALGUM ponto na frente de Ailin a empurrou para trás, em direção ao mago.

Mas Ailin previu. Deixou com que o vento empurrasse para trás a parte de cima do seu corpo enquanto firmou os pés no chão. Quando sua cabeça deitou o suficiente, ergueu as pernas, ficando QUASE deitada no ar, vendo a lâmina do mago passar por cima de si, raspando de leve em sua testa; oportunidade perfeita para um golpe certeiro com a mão bem firme no meio do pescoço do mago, que caiu no chão sem poder respirar.

Ailin se sentia sonolenta e com o corpo todo queimando. Caiu ao chão e não viu mais nada.

*****

Ailin acordou dias depois, à noite, com Oilavo do lado, que havia chegado até ela segundos depois de seu desmaio.

– Filha! – gritou Oilavo, quando a viu de olhos abertos. – Ela acordou! – gritou para Sane, que já estava deitada no quarto, QUASE pegando no sono.

– O que aconteceu? – perguntou Ailin, ainda sem se lembrar MUITO bem dos fatos.

Oilavo explicou parcialmente o que houve e disse que explicaria melhor pela manhã. O único detalhe que importante que quis contar a ela foi que o homem havia sido QUASE morto, mas ainda vivia e estava detido na vila. Ailin não conseguiu dormir. Também pudera, tanto tempo apagada e com informações como essas, dormir era a última COISA que pretendia fazer.

Pensou nisso durante a noite toda, foi juntando as peças sozinha e QUASE pela manhã pegou no sono. Dormiu só até ouvir Elinon gargalhando dentro da casa, com ALGUMa piada feita por Oilavo.

– Como está, querida? – perguntou Elinon, entrando no quarto com Gotsen.

– Me sinto bem, só um pouco molenga. – respondendo mexendo os dois ombros com movimentos circulares. – É, estou um pouco dolorida, mas nada grave.

Gotsen viu a pintura que Ailin ganhara de Overim e a tocou.

– O que houve em Sulmati? – perguntou Ailin, chamando a atenção para si, em um tom que interrompeu os pensamentos de Gotsen.

– Nada. A maioria voltou assim que chegou lá, pois viu que não havia nada demais. Mas Moren e alguns valentes voltaram antes mesmo de passar da metade do caminho, pois ele já havia saído daqui intrigado com um dos símbolos na mensagem e no meio do trajeto teve tanto receio que pediu que alguns valentes voltassem com ele. – explicou Gotsen, gesticulando MUITO, como sempre fazia.

– Nem estou sabendo direito sobre isso tudo. Que mensagem é essa? Que símbolos? Só sei até agora que aquele dia os valentes foram todos para Sulmati e eu não fui avisada. – disse Ailin, com olhar de insatisfação.

– Perdão por isso, pequena. Mas sabe que não era conveniente que você fosse sem o haka. Além do mais, se fosse algo MUITO sério, você era a última pessoal que eu gostaria de pôr em risco. – argumentou Elinon.

Ailin não disse nada, apenas esperou que ele continuasse a explicação.

– Ah, sim. Sobre a mensagem… vejamos, por onde eu começo?

– Aquele homem foi encontrado desmaiado lá embaixo… – disse Gotsen, tentando ajudar.

– Isso! Um vigia encontrou (…) – prosseguiu Elinon com a explicação.

– Eu dei MUITO azar! – disse Ailin, por ter sido justo ela confrontada pelo mago.

– É, talvez. – sussurrou Elinon, com olhar distante.

– Mas por que ele fez isso? Vocês já sabem?

– Ainda não sabemos ao certo, mas pode ter sido uma forma de nos intimidar. Obviamente, o ataque não daria certo, mas ele não falhou, pois há MUITA gente preocupada com novos ataques e espantada com o que ele fez. – explicou Elinon.

– Pois é! Aquilo não se vê todo dia! – comentou Gotsen.

– Pelo menos agora temos uma ideia melhor sobre o que estaremos lidando. – Elinon estava se referindo a um ataque que planejavam fazer a Novo Mundo.

– Com certeza aquele homem tem mais a contar. Quem irá espremê-lo? – Perguntou Ailin, imaginando que o interrogatório seria feito pelo frio Anton, um velho do clã que tempos atrás era o melhor torturador que já tiveram.

– Vamos decidir ainda como inquiri-lo. É uma situação delicada. – disse Elinon, que não descartava o auxílio de Anton para esse caso, apesar de odiar a ideia.

O primeiro a interrogá-lo havia sido Moren, que melhor conhecia aquele idioma. A única informação que conseguiu arrancar do mago foi que não se tratava de uma ação independente, mas programada pelo próprio líder de Novo Mundo. Ele não precisou se esforçar para deduzir isso, pois o mago várias vezes deu a entender que outros viriam.

As roupas do mago foram trocadas para manter a higienização do local onde fora trancafiado, mas os guardas relataram com MUITOs detalhes a dificuldade enorme que tiveram em fazê-lo se trocar, o que chamou a atenção de Tsarat, que prestava atenção em cada detalhe do que se passava.

Tsarat levou aquelas roupas pessoalmente a Gran, pois suspeitava de algo.

– Gran, vou lhe confiar uma tarefa. Preciso que investigue cada fibra dessa roupa.

– O que estamos procurando?

– Não sei, pode ser qualquer COISA. Não deixe passar nenhum detalhe, faça o melhor que puder, pois há algo aí, sem dúvida. Se aquele homem não olha para isso como algo vil, é óbvio que há ALGUM motivo interessante. Posso contar com você?

– Farei o melhor que puder!

Gran passou MUITAs horas concentrado em analisar fragmentos de cada peça das vestes do mago. Cada gotícula de cor ou odor diferente que encontrava era analisada, assim como cada relevo no tecido e cada rasgo. Gran era sempre meticuloso, mesmo sem necessidade. E, dessa vez, a COISA era séria.

Enquanto isso, os conselheiros discutiam se o momento de Anton não teria chegado. Elinon se opunha, mesmo que não visse também outra maneira, ao contrário de Moren, que estava topando qualquer COISA para defender o bem da vila. Decidiram tentar interrogá-lo novamente, ainda sem uso da força, apenas com tortura psicológica. Isso também não surtiu efeito, pois o ânimo do mago parecia invulnerável. Optou-se então por Anton.

Anton não tinha mais tanta paciência quanto antigamente, não tinha mais aquele sorriso diabólico de aspecto doentio que adorava mostrar aos interrogados. Tinha agora um olhar extremamente frio e não parecia se importar com nada, nem mesmo com as informações que buscava. Foi o que ficou claro para o mago, com Anton entrando pela porta já com uma espécie de triturador de carne e, sem perguntar nada, enfiando a mão do mago à força pelo buraco estreito do aparelho.

– Anton! – interrompeu alguém do lado de fora.

– Já vou começar, diga logo. – rouquejou, frio e desleixado, sem demonstrar a menor preocupação com o que faria.

O mago queria tanto mostrar a Anton do que era capaz, mas com as mãos impossibilitadas de fazer conjurações e sem seus amuletos era apenas um homem fraco qualquer. Um homem fraco, mas que foi MUITO esperto ao gritar por socorro com sua mão, por enquanto apenas quebrada, socada no triturador. Anton planejava começar o interrogatório usando o aparelho antes e perguntar depois. Moren interviu entrando na sala rapidamente, fazendo Anton sair. Não precisou perguntar nada, o mago foi logo dizendo o que sabia.

O plano era contra a vida da bela Ailin, a mando do líder, que fora mui influenciado por seus conselheiros, que por sua vez deram ouvidos demasiadamente ao aclame popular receoso sobre a sucessora do valente Aodin, do qual MUITO se contava dentre as histórias mais famosas em Novo Mundo. O homem contou ainda mais ALGUMas COISAs que chocaram o mestre. Moren se assustou com aquelas informações e, saindo de lá, correu até a sala do conselho para compartilhar o que sabia. A maioria dos conselheiros estava lá e com eles Gran, que havia acabado de chegar também com informações que conseguiu estudando as vestes do mago.

– Estou todos aqui? – entrou perguntando, afoito.

– Ainda não. O que houve? – disse Tsarat, um pouco sem paciência, pois Gran estava QUASE contando algo importante.

– Era tudo sobre Ailin! Todo o plano! – contou Moren, com as mãos sobre a cabeça e um olhar sem focar em nada, como se não acreditasse.

– O que quer dizer? – perguntou Gran, curioso.

– O prisioneiro disse que foi enviado para tirar a vida de Ailin, especificamente!

– Se acalme, Moren. – disse Elinon, segurando levemente os braços de Moren.

– Eles deduziam que ainda fosse cedo o BASTANTE para que ela fosse detida com apenas um homem e esperavam que isso baixasse nosso ânimo.

A conversa seguiu e os mestres a princípio não pretendiam contar a Ailin, mas Elinon os convenceu de que ela deveria saber para que pudesse melhor se preparar e para que não descobrisse isso de outro jeito. Ela foi chamada até lá.

– Pequena, como eu imaginei, você não teve azar na invasão. Você era o motivo dele aqui na vila. – contou Elinon, tentando não parecer tão preocupado.

Ailin demorou uns instantes para assimilar.

– Mas por que eu?

– Ora! Seu nome já é conhecido em Novo Mundo e existem até contos sobre você, alguns reais, mas exagerados, outros, porém, extravagantes e totalmente fantasiosos. Quando souberam que nossa família se manifestaria a favor de Sulmati, provavelmente temeram mais a você, pelos contos, do que ao resto de nós. Aquele homem tentou fazer algo a respeito. – explicou Gotsen.

– Então, agora sou mesmo um risco pra nossa família?

– Não exatamente, mas pode ser que esteja em risco. – alegou Tsarat.

– Acho que o mais importante é não deixarmos essa informação se espalhar pela vila, pois será motivo de alarde. O descontentamento contra Ailin pode aumentar. – disse Gran.

– Precisamos adiantar nosso ataque. Deve ser o mais rápido possível, antes que eles saibam da falha de sua tentativa e planejem uma nova investida. – sugeriu Moren, em tom MUITO sério e olhar determinado.

– Algo precipitado agora será pior que esperar demais – interrompeu Tsarat. – Além do mais, pelos relatos do que aconteceu aqui é fácil entender como aquele povo está dominando tantas terras. Eles dominam um tipo de magia peculiar e o que sabemos ainda é MUITO pouco.

– Bem, sobre isso… – resmungou Gran.

– Diga, Gran. Aliás, o que ia dizer quando chegou? O que descobriu? – perguntou Tsarat, agora ainda mais interessado que antes.

– Naquela roupa, eu encontrei vários vestígios de misturas líquidas, talvez poções. ALGUMas COISAs eu pude identificar. Eu já sei, por exemplo, que eles usam cominho na alimentação.

– E qual a importância disso?

– Ora, talvez dê para bolar uma maneira de envenená-los, já que temos cominho de sobra.

– É uma ideia interessante! – disse Gotsen, parecendo entusiasmado com a ideia, provavelmente já pensando num plano.

– Está mesmo sugerindo isso como plano? – perguntou, Tsarat.

– Sim. E quem me ajudou com essa ideia foi o próprio mago.

 Gran riu, erguendo a sobrancelha esquerda. 

– Pode explicar? – pediu Elinon.

– É que outra COISA que encontrei no tecido foi justamente veneno. Daí a minha ideia. 

Com essas informações, Ailin, que se mantivera quieta até então, pôde deduzir uma outra COISA:

– Bukie! Ele deve ter sido envenenado!

Gran imediatamente teve certeza da origem dos sintomas do haka. Ailin estava certa, Bukie havia sido envenenado com uma substância que não se encontrava nas redondezas. Havia uma planta intoxicante apenas para hakas que, dentre outras COISAs, alterava completamente o metabolismo, causando mudanças também no humor. Como ainda não havia trabalhado com a hipótese de envenenamento proposital, não lhe veio isso à mente. Gran não encontrou aquela substância específica nas vestes do mago, mas não teve dúvida de que os sintomas provinham daquela erva.

– Sim, está certa! Já sei como tratá-lo. Me deem licença!

Gran saiu com pressa da sala do conselho e o tratamento se iniciou ainda pela manhã. O haka se recuperou a tempo de ir ao encontro seguinte de sua fiel companheira e Overim.

Antes do encontro, os conselheiros já haviam concluído os planos contra Novo Mundo, que se iniciariam no mesmo dia em que os jovens se encontrariam, com Ailin ainda dispensada – contra sua vontade. Mas nesse momento não importava tanto assim. Ailin iria se encontrar com a sombra daquela pintura misteriosa que todos os dias olhava pela manhã e a fazia ganhar o dia.

Enquanto o grupo liderado por Elinon saía em direção a uma feroz batalha contra Novo Mundo, Ailin só se preocupava consigo, com seu anseio e sua sorte.

Chegou o dia, ela partiu. E lá estavam os dois.

*****

– Ah! Se eu soubesse o calor que me esperava!

Se eu soubesse que o bem silencioso dalém vale

era maior do que, com gosto, esperançava!

– E eu? Que se soubesse morreria!

Minha doce rosa entregando-se à sorte,

o pobre coração não aguentaria!

– Imaginas que algo lá alívio me causava

quando ouvia minha insistência rejeitada?

Olhar a pintura, que refrigério! Bastava…

– Importa que não tenhas ido, que estejas comigo,

que estejas bem, que sejas aind’um abrigo,

Importa que sejas minha, com o mesmo riso antigo!

– Posso te amar?

Tempo precioso passavam juntos enquanto os valentes se dirigiam até Novo Mundo, agora por vontade própria e com um plano, MUITO preparados, prontos para lutar no instante em que fosse preciso.

Com alegria e forças renovadas, Ailin voltou para o planalto à espera de notícias sobre a investida hakal, enquanto Overim partiu para a calmaria de QeMua.

Amigos de treinamento

No primeiro treino depois que voltou, Luanda, Berim e Alepo estavam esperando Overim na estaca de Zarath. Quando ele chegou, Alepo tocava as duas argolas, tentando sentir o tal fluxo correndo por elas, sem sucesso.

– Overim!

Berim foi o primeiro a vê-lo e avisou aos dois. Alepo largou as argolas e ficou ruborizado. Mas que bobagem, pensou Luanda, que notou.

O vigor de Overim era o mesmo de sempre. Saiu do cavalo de um salto até o rio, QUASE esbarrando na margem gramada.

– Uou! – exclamou Berim, com o susto que levou. – Essa foi QUASE!

– QUASE o quê? Ele sempre faz dessas.

Alepo já havia se acostumado com jeito de Overim, às vezes espalhafatoso.

Luanda entrou também na água e QoNoxa questionou:

– O que vai fazer?

– Quero sentir também essa energia, vou mergulhar fundo hoje pelo buraco!

Berim e Alepo ficaram apreensivos com o que ela respondeu. Como ela respondeu rindo, não deu para entender ao certo se estava brincando ou se pretendia mesmo fazê-lo. Mas como QoNoxa não gostava de arriscar:

– Acho que vocês precisam saber mais sobre essas COISAs antes que façam algo do qual se arrependam. Vou buscar uma COISA e volto aqui. – disse o velho.

QoNoxa montou no cavalo e saiu em direção à vila.

– Aonde ele vai? – perguntou Luanda, saindo da água.

Alepo pulou na água, antes que Berim elogiasse a atitude de Luanda, que parecia ter ficado apreensiva com aquelas palavras, já que estava saindo da água.

– Mas o que…?

Overim voltou de seu mergulho.

– Onde está o QoNoxa?

– Saiu pra buscar ALGUMa COISA depois que eu disse que ia mergulhar com você.

– Você ia mergulhar comigo? Está falando da passagem? O túnel?

– Isso! Mas não sei se tenho coragem, só falei por falar.

– Eu não estava lá. Mergulhei fundo, mas não lá dentro. A passagem é do lado de lá!

O “buraco”, como dizia Luanda, ficava do outro lado da estaca, para onde Overim apontou. Parecia mesmo que Overim havia entrado em ALGUM buraco, pois não dava para enxerga-lo devido à cor da água. O ponto onde Overim mergulhou era razoavelmente fundo, o suficiente para não ter como vê-lo.

– Eu sei o que ele vai buscar. Te adianto que não vai ser a melhor experiência da sua vida. – comentou Overim, com um risinho malicioso no rosto que não parecia boa COISA.

– E o que é? – perguntou Berim, mais preocupado que todos, naturalmente.

– Já ouviram falar da NeixaOin?

Os três conheciam as histórias, até por que Siegam e seu pai as propagavam daquele lado da vila.

– Claro! – disse Berim, com os olhos arregalados.

Alepo saiu da água e o conduziu para dentro do rio, contra sua vontade, mas sem MUITA demonstração de oposição. Talvez covardia; ou a lerdeza de sempre.

– Seu…!

– E se eu dissesse que ele tem a lâmina?

Overim deixou os três paralisados.

– Isso mesmo. Ele vai trazê-la, não tenho dúvida de que seja isso. Só não sei o objetivo. – completou.

Ele foi até as argolas senti-las, como fazia todas as vezes que ia até lá. Ainda segurava as duas com um pouco de dificuldade. Tocou as e fechou os olhos. Respirava lenta e profundamente, de vez em quando dava bons puxões, curtos, mas com MUITA força, vendo se sentia algo diferente.

– Isso te ajuda de ALGUMa forma ou está tentando puxar as correntes? – perguntou Alepo, ainda tenso ao saber da lâmina, mas também curioso pelo que estava vendo.

Ninguém disse mais nada até Overim terminar sua concentração.

– E então? – insistiu Alepo, assim que ele suspirou soltando as argolas.

– Me ajuda a relaxar. Só isso mesmo.

Overim voltou para a água e começou a contar COISAs que ainda não tinha explicado sobre as argolas e sobre a tal barreira que elas supostamente erguiam no passado. Ele recentemente havia lido MUITO sobre o assunto e descobriu COISAs intrigantes.

MUITO abaixo do solo, Zarath circundou todo o território QaFuga instalando suas correntes que chegavam até a estaca pela parte de fora, entravam nela e subiam por dentro até a superfície, terminando nas argolas. Um mecanismo aparentemente simples, mas com uma proposta tão difícil de se conceber, que Overim precisou explicar mais de uma vez:

– Exatamente, Alepo! As correntes contornam QeMua por completo, começando aqui, indo até uma parte do campo depois das casas de vocês, que é onde vai o rio, voltando até aqui. Na verdade, é uma corrente só, que “amarra” o nosso território. Se forem reais, devem ser MUITO grossas e de ALGUM material especial.

– Isso tudo por baixo da terra?

– Sim! Mais especificamente embaixo do rio. Pense bem: o que marca nosso território não é o rio?

– Não oficialmente, mas tecnicamente sim.

– E nunca notaram como é estranho que o rio simplesmente contorne a vila e volte para o mesmo ponto?

Overim os fez pensar por alguns segundos.

– Eu já tinha percebido isso, mas achava que aqui MUITO tempo atrás tivesse sido um grande lago e depois, cada vez com menos água, já que o meio é mais alto que as extremidades, virou um tipo de ilha, até virar um riozinho só no entorno. – explicou Berim.

– Isso é que MUITA gente acha, não é? – Luanda já tinha ouvido COISAs semelhantes.

– Não sei, só sei que não foi assim.

Alepo estava QUASE entendendo:

– Mas então o…

– O rio – interrompeu Overim – foi projetado. Isso mesmo. Foi projetado por Zarath como parte da estratégia de esconder o projeto da barreira. Pelo menos é o que eu acredito. Pois a fenda está exatamente sob o rio, sob ele todo.

– Entendi. Mas é só isso? A corrente passa por baixo do rio, dando a volta em QeMua?

– Não, Alepo. Não é só isso. Entre as correntes e a terra há como que uma lâmina fina, MUITO larga e rígida. É como se essa lâmina estivesse segurando a terra, e a corrente está em volta dela.

O que se seguiu na conversa foi um punhado de suposições e mera especulação, até que o curandeiro voltou.

Eles o olhavam quietos, vendo-o tirar do alforje um embrulho.

– É isso? – perguntou Berim, sem aguentar mais ficar em silêncio.

– O quê?

– A NeixaOin! – exclamou Alepo.

– Mas, hein? Claro que não. É só um sanduíche, mas eu trouxe pra vocês também.

Que grande decepção eles tiveram. Ao menos vamos ganhar sanduíches, pensou Berim, de longe o menos decepcionado.

– Isso é a lâmina. – disse o velho.

Ele a ergueu lentamente, causando um clima de tensão. Uma encenação que funcionou.

– Ah, sim! Pensei que havia me enganado! – gritou Overim, cortando o clima.

– Então, por que os sanduíches? – perguntou Luanda, meio confusa.

– Que pergunta é essa, Luanda? Nenhum problema com os sanduíches, mestre! – gritou o afobado e desajeitado Berim.

– Vamos demorar aqui, então trouxe também comida.

QoNoxa deixou que Overim explicasse brevemente aos três sobre o que sentiriam ao tocar a lâmina e incentivou que continuassem segurando firmes, pois não haveria sequela física durante o processo e assim que largassem o mal os deixaria instantaneamente.

O primeiro a tocar foi Alepo, ele mesmo se dispôs. Quando a tocou, foi nítido seu olhar aterrorizado contraindo as sobrancelhas, abrindo levemente a boca, antes de fechar de uma vez os olhos e pressionar os dentes.

– Ele está bem, não é? – perguntou Berim, com MUITO receio de ser o próximo, levando em conta que Alepo era mais corajoso que ele.

– Bem? Não, isso ele não está! – respondeu o velho, com um meio-riso.

Para eles, poucos segundos, mas para Alepo, um longo e exaustivo horror que pressionou o suficiente sua mente a ponto de convencê-lo de que precisava começar a pensar melhor sobre a insistência de seu pai para que levasse mais a sério sua vida, a vida normal de um QaFuga, a vida de um pronto guerreiro. Alepo largou a lâmina ofegante com QoNoxa puxando-a levemente.

– Chega. – resmungou Alepo, cansado. – Vai, Berim.

– E-eu? Por que não a Luanda?

– Me dê logo isso.

Luanda agarrou a lâmina com as duas mãos e Overim tocou-a junto, achando que isso aliviaria de ALGUMa forma, mas não fez diferença. Os dois sentiram aquilo tudo juntos. Ela segurou ainda menos tempo que Alepo, mas não fez uma cara tão ruim. Já pegou na lâmina pensando na expressão facial que faria – mulheres.

– Ah! – só isso, Luanda só disse isso.

Diferente de Alepo, QoNoxa não precisou fazê-la soltar. Luanda escondeu MUITO bem a vontade de gritar, chorar e… gritar mais.

– Agora sou eu, não é mesmo? Vamos lá. Não é tão ruim, eles estão bem, não é tão ru…

– Pegue.

Overim logo empurrou a lâmina na mão de Berim, que fez uma careta de espanto, de medo e até um pouco cômica, mas só no começo. Depois, a expressão foi de tristeza, de dor. Luanda e Alepo reconheceram a expressão, que era a mesma que ele já havia feito MUITAs outras vezes: dias em que sentiu-se humilhado frente a outras crianças, o dia em que o pai dele faleceu doente, dias em que se mostrava cansado da vida, enfim… dias antes da alegria de ter amigos de confiança. Ele aparentemente não só sentiu, mas interiorizou o horror da lâmina, assimilando com dores já MUITO lamentadas, mas não superadas; dores MUITO profundas que já havia se acostumado.

– Ele não está segurando tempo demais? – perguntou Luanda, preocupada com aquela expressão e com pena do amigo.

– Sim. – alegou o velho.

– E não vai fazer nada?

QoNoxa permaneceu apenas observando.

– Haraf! Incrível! – disse Alepo, impressionado com o tempo que ele aguentou.

Com os segundos passando, a expressão de Berim foi se amenizando e ALGUMas lágrimas rolaram, comovendo Luanda, que bateu a mão na lâmina, derrubando-a no chão. QoNoxa sorriu.

– Berim? – chamou-o, pondo a mão em seu ombro.

– Estou bem.

Limpou o rosto.

– É bem forte, mas nada que eu já não conhecesse.

Berim era um exemplo de que alguém extremamente melancólico pode, com atitude, com posicionamento firme, mudar o rumo de suas emoções, de suas ações e reações. Foi uma criança tímida e introspectiva que se convenceu de que devia mudar, e mudou. O horror da outrora poderosíssima NeixaOin era sempre assustador, para qualquer um, embora tivesse deixado resquícios diferentes em Berim. O jovem ficou um pouco abalado pelo resto do dia, mas foi quem melhor proveito tirou da experiência.

– ALGUM de vocês conseguiu perceber e se concentrar na energia da lâmina apesar de todo problema nela? – perguntou o velho, mesmo sem MUITA expectativa.

Os três disseram que perceberam, mas nenhum deles conseguiu de fato se concentrar e separar as sensações isolando a percepção daquele fluxo de energia.

– E pra quê isso serve? – perguntou Luanda.

– Amanhã eu conto, vão pra água.

QoNoxa os mandou mergulhar e meditar, deu ALGUMas recomendações e eles começaram. Com exceção de Overim, que saiu da água pensativo e lhe falou a sós.

– Vô, eu sabia que iria buscar a lâmina, mas confesso que não entendi o motivo real.

– Por que diz isso?

– Porque demorei dias e mais dias de concentração no rio até que me apresentasse a lâmina e eu a segurei MUITO mais tempo que eles. Só assim consegui me concentrar naquela energia. Então, como é que eles poderiam conseguir ALGUM resultado em tão pouco tempo?

– Bem observado, filho. Mas está enxergando de forma MUITO limitada. Eu não dou ponto seu nó! – a velha frase do velho curandeiro.

QoNoxa riu.

– O que quer dizer? Que o motivo foi outro?

– Sim, evidente. Imagina qual?

– Para desmotivá-los? Assustá-los? Não sei.

– QUASE isso. Quis tirar deles a visão de que a vida de um guerreiro QaFuga seja fácil, ou simplesmente que seja fácil superar limites meramente pessoais. Quando vi a Luanda no rio, me perguntei se ela compreendia o que estava buscando e achei necessário mostrar. Eles te olham fazendo as COISAs e, apesar de saberem que não conseguiriam, não imaginam o quanto é difícil, pois estão acostumados a te ver fazendo tudo com MUITA facilidade. Mas percebeu como o olhar deles depois da lâmina mudou?

– Vi, sim. Principalmente o de Berim! Por que deixou que ele segurasse tanto tempo a mais que os dois?

– Foi um teste. Há outro detalhe importante que não está levando em conta: o que acontece com um QaFuga adulto quando é molestado de qualquer ALGUMa forma?

– Sua QaNai se manifesta?

– Sim. E o que a lâmina faz com qualquer um que a toque?

– Molesta… tortura.

Overim, virando a cabeça lentamente para o lado, pensou um pouco.

– Queria que eles entrassem em Modo Nai?

– Não, pelo contrário. Se Luanda e Alepo segurassem pouco mais, provavelmente seus QaNai se manifestariam descontroladamente, por isso regulei o tempo máximo que achei seguro, embora ainda assim tivesse ALGUM risco. Mas Berim é diferente deles, não sei se já notou. O controle emocional é MUITO importante. Ele não é fraco, ele é apenas MUITO despreparado, mas é o mais forte dos três, o mais “calejado” por dentro. Viu o tempo que ele a segurou e como sua expressão melhorava? A lâmina jamais será o suficiente para que ele entre em Modo Nai, tenho certeza disso agora, mas por isso aproveitei a situação e o testei.

– Entendi! Entendo também o que está dizendo sobre ele, mas não via bem dessa maneira. Porém, com o que aconteceu hoje, estou convencido do que me disse. Mas por que não deixou que eles manifestassem a Nai? Eles teriam adorado!

– Não o fiz porque seria errado, ora!

Overim sabia que existiam maneiras diferentes de acelerar o despertar de uma QaNai e que ALGUMas delas eram expressamente proibidas, consideradas aberrações imorais. E não só isso, mas também crime passível de punição severa, às vezes com a morte. Só não sabia quais eram os tais métodos.

Os dois se olharam alguns segundos um pouco sem graça.

– Por que deu aquela atividade a eles?

– Vou treiná-los.

– Que? Haraf!

– Não se anime tanto, será um treino leve, diferente do seu.

– Não importa! Eles vão adorar! Como vai ser?

– Ainda não sei bem como farei, pois cada um tem facilidade em algo diferente, aptidões que precisam ser exploradas. Luanda é inteligente, pode ser uma boa estrategista e é MUITO ágil, tem a ver com sua percepção também, mas não é tão veloz e resistente quanto Alepo, que por sua vez não é tão forte que Berim. Berim apenas reclama demais, é medroso, mas é forte, aguenta mais que eles dois. Os três estão MUITO crus e só saberemos do potencial com o tempo.

Os três não faziam ideia do que Overim e QoNoxa planejavam, mas o fato de estarem fazendo algo que o velho havia lhes mandado já os motivava e deixava eufóricos.

Overim pulou na água também e os acompanhou. Fizeram isso MUITOs minutos e, em seguida, o velho os reuniu na frente do monumento para explicar MUITA COISA sobre a linhagem genética QaFuga, sua história, casos raros, o despertar das QaNai, o Modo Nai e tudo mais. Explicou, por exemplo, o motivo pelo qual não havia nunca mais de uma QaNai em um mesmo hospedeiro, que era algo que ninguém pensava MUITO, mas era de fato interessante. Falou, falou e falou, até a fome ser maior do que a vontade de falar.

Mais à tarde, o velho fez uma pequena seção de testes físicos com os três para ter certeza de como ajudá-los em suas principais carências físicas e também quais habilidades explorar. Enquanto isso, Overim não teve sossego e pegava pesado.

Foi um dia inspirador e revelador. Estavam excitados com a disposição súbita do grande mestre QoNoxa em tê-los como discípulos e nem sequer pensavam em reclamar das dores no corpo. A dor se estendeu até o final do dia seguinte, dia em que eles não tiveram condições de ir até o rio, assim como o velho previu e disse a eles no fim dos testes. O que passaram não era nada perto do que Overim estava acostumado, mas já se sentiam orgulhosos. Só não podiam contar a ninguém ainda, pois esse foi o combinado entre eles.

O homem misterioso e a tristeza hakal

Dois dias depois dos testes, Overim e Qonoxa imaginaram que os três ainda estariam em péssimas condições para cogitarem ir até o rio. Aproveitando isso, Overim disse que também não iria, pois precisava ir pela manhã com seu pai até o bosque para ajudá-lo a trazer madeira e passou a tarde toda com ele ampliando e consertando a casa, mas seus três amigos foram para o rio sem saber. Se decepcionaram ao perceber que Overim e QoNoxa não apareceriam, mas aproveitaram a ida até o rio para mergulhar e tentar sentir a tal energia que fluía dele – sem sucesso.

Saindo dali, ainda pela manhã, passaram a cavalo tranquilamente pela cidade, que daria o mesmo tempo se a circundassem em maior velocidade. Ao longe avistaram Marvam, o homem das frutas, e Alepo sugeriu que mudassem o trajeto. Por que arriscar?

– É só um senhor esquisito, mas é melhor evitar, não acham? – disse Alepo.

Eles concordaram e seguiram por outro caminho. Por azar, pouco antes que a nova direção os fizesse desaparecer, Marvam os viu e foi atrás. Chegaram sem nenhum contratempo à casa de Alepo e não notaram que o homem das frutas estava à espreita. De qualquer forma, nada de mais aconteceu nesse dia.

Overim, sabendo que QoNoxa ia até o estanque de Baltoz, o pediu que avisasse aos três que os dois iriam até o rio no dia seguinte, e assim foi.

Passaram manhã e tarde perto do rio, conversando e treinando. QoNoxa os treinou mais mental do que fisicamente. Ao fim da tarde, se despediram e Overim foi com eles até certo ponto, pois o velho havia saído com pressa. Distraídos, foram andando devagar sobre os cavalos, acompanhando o percurso do rio.

De repente surge um homem alto, de pele escura, com cabelo apenas no entorno da cabeça, mas não no topo, e com uma barba que parecia se misturar aos cabelos atrás das orelhas e nas costeletas. Uma figura de aspecto nada amigável.

– Quem é Alepo? – perguntou com uma voz MUITO grave, mas suave.

Nenhum dos quatro disse nada, mas Overim se pôs à frente com o cavalo.

– Então é você?

O homem tinha um jeito diferente de falar. Com certeza não era das regiões mais próximas.

– O que quer? – perguntou Overim, tentando dar um tom que não parecesse ofensivo.

Nesse momento, Alepo já olhava pelo chão procurando ALGUM bom pedaço de pau ou uma pedra, embora não tivesse nenhuma ideia do que aquilo se tratava.

– Vim te dar uma lição.

Enquanto falou, não fez nenhuma expressão – nem de deboche, nem tédio, nem expressou receio ou nervosismo. Foi completamente apático. Houve apenas troca de olhares por alguns instantes, mas Overim desceu do cavalo e os três desceram em seguida.

– Uma lição? Então quem sabe eu tenha algo a aprender com você, não é?

O deboche de Overim não soou tão sutil quanto ele gostaria. Mal deu tempo de Berim soltar o riso que lhe veio e o homem o atacou, sem nada nas mãos; enormes, por sinal.

– Hei! 

– Que é isso?

Luanda e Berim se manifestaram, enquanto Alepo procurava ocasião para usar uma pedra de “encaixe perfeito” para sua mão, como pensou. Overim precisou se desviar duas vezes daqueles socos, mas numa terceira investida deu também um soco propositalmente na mesma direção da mão do homem para ver com que estava lidando. Afinal, era um QaFuga com certo nível de treino, o que o tornava superior a qualquer homem comum.

As mãos se chocaram e, nesse instante, Overim pôde ter uma ideia do potencial de seu misterioso oponente. O choque dos socos o surpreendeu; o punho do homem era pesado e firme, o que deixou Jio em alerta de imediato.

O homem avançou novamente, mas Overim não ficou apenas esperando: cerrou os punhos e, inclinando o corpo para frente, desviou-se e confundiu o homem, que viu-se virado para o nada, levando um golpe forte na parte de trás da cocha. E essa foi a oportunidade que Alepo esperava, dando-lhe com a pedra no meio da testa que o fez cair desacordado.

Os quatro se olharam assustados, subiram nos cavalos e foram para a casa de Alepo. Contaram tudo que havia acontecido a Filis – pai de Alepo – e Overim partiu a cavalo pelo meio da cidade, indo direto à casa de QoNoxa contá-lo sobre o ataque.

Pela manhã, QoNoxa e Overim seguiram até a casa de Alepo por fora da cidade, pelo mesmo caminho que foram surpreendidos pelo homem – o mesmo caminho que os três faziam para ir até a estaca de Zarath – pois caso estivesse a caminho da estaca, o interceptariam. Não encontraram ninguém pelo caminho.

O susto foi o suficiente para deixar os três sem MUITA vontade de fazer o trajeto tão cedo.

Chegando na casa de Alepo avistaram alguns outros jovens ao longe. Era Alef e alguns amigos que conversavam sobre o ocorrido. Alef, ao ver QoNoxa e Overim, voltou até sua casa e espiou a conversa.

– Então não conheciam o homem? – insistiu na pergunta, o velho QoNoxa intrigado.

– Nunca o vi! – disse Alepo, compassadamente, insistindo na resposta.

– Eu também não. – concordou Overim.

Luanda entrou na casa nesse momento com Berim.

– Vimos vocês chegando.

– Descobriram ALGUMa COISA? – perguntou Berim.

– Ainda não e talvez seja difícil. Mas importante mesmo é que saibamos nos defender.

Alepo estava, não por isso, motivado a melhorar suas habilidades como guerreiro.

– Não, o mais importante é impedir que aconteça novamente.

Overim, mais que todos ali, sabia que o tal homem não era um adversário fácil e as palavras de Alepo o preocuparam um tanto. Olhou para Alepo com mansidão.

Alepo virou o rosto contrariado.

– É sério, Alepo. Você viu o tamanho dele.

– Nós somos QaFuga! – gritou Alepo, virando-se novamente para ele.

– QaFuga com seus QaNai dormindo. Que adianta?

Overim ergueu um pouco o tom de voz.

– Minha QaNai não dorme mais.

Alepo guardava um segredo:

– Ele despertou há alguns meses, mas não quis dizer nada. – contou Luanda.

– Haraf! – comemorou Berim. – Que ótimo! Parabéns! Mas devia ter nos contado. – cruzou os braços.

O assunto por alguns minutos foi esse, até que Luanda chamasse a atenção para o problema novamente.

– Estou feliz por você, mas não acho que possa vencer aquele estranho de ontem.

– Como pode saber? – respondeu rápido Alepo.

– Você acha que pode? – rebateu a jovem.

– O que eu sei é que é bom ter a ajuda de Overim – olhou para ele – mas não posso ficar esperando que você me livre sempre. Nem vocês podem. – olhou para Berim e Luanda.

– Você tem razão! Mas o que faremos? – indagou Berim.

– Nada. Diretamente, nada. – interrompeu Overim. Continuem os treinos, mas evitem o caminho pelo fora da cidade, vão por dentro dela. Não faz sentido facilitar um problema. Não sabemos quem ele é, nem seus motivos e ele não é despreparado. Nem arma ele tinha. Percebem?

– Mas isso não é o contrário? – questionou Berim, em tom irônico. – Digo, se ele veio até nós sem nenhum tipo de arma…

– Não, Berim. Esse homem enfrentou quatro jovens QaFuga desarmado. Isso parece despreparo ou convicção? – ressaltou QoNoxa, esfregando o dente da hiena.

A afirmação apesar de simples causou certo acréscimo de temor nos três. Obviamente, Overim já havia pensado sobre isso.

– Ele talvez seja um pinage, pela descrição que fizeram. E não temos MUITAs informações sobre eles. Vejam, não importa o quanto somos diferentes fisicamente, porque não sabemos como eles são de verdade. Não o suficiente. Esse povo é MUITO fechado. Se é que ele é um pinage, claro.

O pai de Alepo chegou com peças de madeira no lombo do cavalo.

– Oi? – cumprimentou-os apreensivo. – Estão aqui pelo que houve ontem?

– Bom dia, Filis! Desculpe-nos por invadirmos sua casa assim. – disse QoNoxa. – Fiquei preocupado com aquela história. É preciso ter cautela.

– Ah! Sinta-se em casa, mestre. Descobriram algo?

– Não, mas decidimos ALGUMas COISAs.

Conversaram alguns longos minutos sobre detalhes que os fariam evitar um novo confronto com aquele homem e voltaram pelo meio da cidade até o monumento – QoNoxa, Overim, Alepo e Berim. Luanda não pôde ir.

Qonoxa não queria fazê-los achar que estavam “cada vez mais preparados” para aquela situação. Mas o foco do treino não tinha como ser outro senão habilidades aplicáveis em confrontos diretos: luta corporal. Sem Luanda por perto observando foi mais fácil para Alepo e Berim, que puderam exagerar em todos os aspectos, aproveitando ao máximo o aprendizado que se seguiu por MUITOs dias, mas nos próximos já com a presença dela.

Por mais que Luanda fosse MUITO amiga, MUITO próxima, MUITO íntima e os conhecesse tão bem desde sempre, sem seus olhos ali o treino fluiu mais livre. Talvez tanta intimidade entre eles fosse o que os atrasava um pouco a evolução e QoNoxa percebeu isso nesse dia.

– Eles têm uma imagem de si mesmos que acreditam que ela também tenha e não querem que ela perca. Aqui, lidando com COISAs que não dominam, é mais difícil manter essa imagem, mas creio que o problema é apenas no começo. Vamos ver com ela aqui se eles novamente se sairão assim tão bem como hoje. – comentou com Overim baixinho.

Nos dias seguintes, Luanda, que não se incomodava nem um pouco em manter qualquer imagem antiga que eles tivessem sobre ela, notou que o rendimento dos dois estava melhor, o que a motivou também.

Logo veio o dia de ir até o Silêncio e descobrir o que havia do lado de lá.

*****

Mais uma história, mais um capítulo.

Outra surpresa, tempo minúsculo!

Essa visão, dos sonhos a mesma

Que MUITO pintei, a memória atesta.

Aqui tão quietos quero te contar

Da pacata vila um episódio narrar.

Nós pela estrada todos distraídos

Que por aquele tão surpreendidos.

Aquele que veio até tão calmo lugar,

Veio sem saber o que ia encontrar.

Encontrou o amigo logo de quem?

De quem uma fúria continha também.

Algo ainda a ninguém contei,

Que tão dura mão no golpe encontrei.

Certamente se não soubesse diria

Que ali um dos nossos seria!

Inda tentando algo descobrir,

Inda tentando, mas não agora.

Hoje eu preciso vê-la sorrir,

Por que seu riso hoje chora?

Meu seio ri, mas chora meu riso!

Sim, chora. Que ainda resisto.

O calor, o seu sabor, que fervor!

Mas algo cala o riso, que dor!

Notícias nem sempre vêm bem,

E essas que tenho são de quem?

De quem MUITO me ofereceu,

De quem pouco me escondeu…

Elinon? Mas não podia ser outro?

Fosse eu mesma ou qualquer indouto!

Do douto mestre a mais intrigante

A triste notícia ignorante! 

Sabes que aquele último dia

Minha família em honra partia,

Levando reforço, cumprindo o tratado,

Ingênua pensei: logo tudo findado!

Outra cousa findou-se lá fora:

Meu amigo não voltou embora!

Poucas baixas, mas MUITA tristeza!

Só resta aqui dentro ALGUMa beleza…

Meu mestre se foi! Sumiu meu amigo

E levou meu amparo consigo.

Ninguém, ninguém o sangue viu,

Meu amigo sem rastro sumiu.

Levado com Sur, que deixou pra trás

Sua cauda ao chão. Questionei se jaz.

Pois algo tão pouco não diz

Que aquele do qual fui aprendiz

Esteja mesmo, sem volta, jacente

Sem despedida, o mestre diligente!

E se ao menos lá eu estivesse

Lutando com meu mestre, o grande,

Se no esforço ALGUMa solução houvesse

E se retribui-lo pudesse com sangue…

Então a viagem ao dito conflito

Trouxe de volta valentes aflitos?

Mas que? Desistiu-se do mestre?

Assim, sem prova que preste?

Ir a Novo Mundo valeu o esforço

Ou só se fala de lá em tom de remorso?

E sabe alguém o que fazer?

Desistiram? Não é certo afirmar.

Por Elinon, o que for preciso fazer,

Hoje, eu e você. Posso te amar?

*****

O ataque dos hakais a Novo Mundo teve poucas baixas e tudo que planejaram foi feito, mas dois motivos causaram certo remorso nos conselheiros: não terem avançado tanto quanto podiam, evitando o número considerável de fugitivos, e a perda de Elinon, cujo único vestígio encontrado após a batalha era uma parte da cauda de seu haka, Sur. Os mais otimistas defendiam que ele tivesse sido levado, mas a maioria ao ver a cauda de Sur pranteou a morte do mestre.

Houve lamento por todo o Planalto Hakal, assim como MUITA discussão.

– Precisamos preparar um grupo e ir atrás de qualquer rastro mínimo dele! – esbravejou Moren, na reunião dos conselheiros, angustiado com o acontecido, mas sem crer na morte do bravo amigo.

– Acha mesmo que o Elinon se deixaria capturar pelos brutos de Novo Mundo? – questionou Gotsen.

– Prefere crer então que ele foi derrotado por eles? – indagou Tsarat, ainda sem ter revelado sua opinião nem imposto sua decisão.

– Algo péssimo aconteceu, algo que era MUITO improvável. Seja o que for, não temos nada além de suposições e não vamos simplesmente desistir. Ao menos eu não vou! Se me ceder o grupo dele em missão, vou até Novo Mundo e só volto com ele. – afirmou Moren.

– Por que acha que conseguirá encontrar pistas tão mais fácil do que quando estávamos lá, tendo os moradores agora tanto tempo pra atrapalhar sua busca? – perguntou Tsarat, que pensava em ceder o grupo, com exceção de Ailin, mas ainda não MUITO confiante.

A discussão se seguiu mais calma.

A investida contra Novo Mundo havia revelado um governo tipicamente obscuro, com um povo que não sabia MUITO sobre o que seus líderes estavam causando em tantos outros territórios. O ataque promoveu a derrocada temporária do poder local de Novo Mundo e afugentou a maioria dos magos e guerreiros, mas também causou a morte de MUITOs deles, pegos de surpresa. A maioria dos moradores era gente simples e não sabia MUITO sobre política. Só queriam ficar em paz, embora tivessem as crenças e a cultura MUITO permeadas por práticas mágicas, cientes de que isso fazia com que outros clãs temessem que eles começassem ALGUMa inusitada capanha de dominação. Apesar da cultura mágica, as pessoas em geral ali não tinham as pretensões de domínio de alguns líderes, em especial Hura – o líder do exército, campeão de Novo Mundo e mestre nas artes ocultas, que tinha autoridade maior e respondia pela cidade quando nela estava. Ninguém decidiu que as COISAs seriam assim por lá. Só foi acontecendo. Os mais fortes sempre dão seu jeito de oprimir e fazer parecer que estão prestando serviço, não é?

No planalto, MUITAs pessoas também discutiam sobre a veracidade dos detalhes contados pelos valentes que voltaram do ataque.

– Por que é tão difícil crer que Elinon foi derrotado? Ninguém viu como foi. Podem tê-lo cercado ou atingido por trás! – disse alguém na Tasca de Thakon.

– Por trás? Ele nunca seria pego assim! Não ele!

– Não pode ter certeza disso.

– E como você explica os corpos dos mortos que sumiram? – perguntou Sadi, ainda curioso e assustado com essa questão.

– Como é que é?

– Sim! MUITOs deles foram mortos, mas só alguns poucos corpos sobraram ao chão depois que o pó escuro dos magos se esvaiu.

Sadi explicava e refletia.

– Quem garante que os abatidos não eram só esses poucos corpos que viram?

A pergunta soou insinuante.

– Você não estava lá, nunca vai entender como é batalhar contra as Sombras.

“Sombras” era o nome pelo qual era conhecido o exército de Hura.

MUITOs mistérios rondavam o sumiço de Elinon. Mas eram ínfimos, se comparados aos mistérios que compunham os relatos sobre Hura e as Sombras.

A tristeza de uma QaFuga

Enquanto Ailin lamentava o desaparecimento e provável morte de seu mestre longe do conhecimento de Overim, este buscava respostas para a aparição do enorme homem que o atacou e que misteriosamente procurava por Alepo.

Ele foi com Berim ALGUMas vezes até o meio da vila em busca de informações e eles garimparam informações de todos que encontravam pelo caminho. Passaram também pela quitanda de Marvam, que os viu e, depois de um sutil pestanejar, não expressou mais reação ALGUMa. Bom para Overim, que não podia perder tempo com o desmiolado.

Com as informações que colheram, souberam que aquele homem provavelmente pertencia a um povo que morava para lá do território de Novo Mundo. Era possível que fosse dos pinages, um povo alto, naturalmente forte e de pele mais escura, com valores questionáveis e MUITOs mistérios. Fora isso, nada MUITO aproveitável nas informações colhidas.

Eles seguiram os dias pegando firme nos treinos sob orientação de QoNoxa, que a cada pouco exigia com mais rigidez suas metas, mas também abria mais espaço de diálogo e aprendizado teórico, ou simplesmente às perguntas bobas, geralmente de Berim.

– De onde vinha a energia da barreira que Zarath erguia? Nunca ninguém conseguiu atravessá-la? Onde está Zarath agora? – ou talvez não tão bobas assim.

– Sossegue, Berim! Parece um doido! – disse Luanda, fazendo todos rirem.

– Nossos filhos e netos vão morrer sem resposta a MUITAs dessas perguntas, Berim. Enfim, os relatos mostram uma barreira azulada impossível de se transpor, e é isso. Já a última visita de Zarath, ah, isso foi há MUITO, MUITO tempo! – explicou o sábio.

– Os Acsï não aparecem mais, não é?

Berim não sabia MUITO sobre eles.

– Ao que parece, o último acsi que apareceu foi Daxa, pelo menos desse lado de Fonte Azul. – disse Alepo.

– Daxa? – indagou Luanda.

– Sim. É o nome do Vapor de Ferro. – respondeu o velho, lembrando com um arrepio na espinha das profecias que acabara de ler poucos dias atrás.

– Ah, sim. Mas quem chama ele desse jeito? – perguntou Berim.

Antes que o velho respondesse:

– Por que esse olhar? – perguntou Overim, que ficou BASTANTE curioso com a expressão do ancião. – Ele é tão mau assim?

– Não. Ele é pior. – Qonoxa respirou por alguns segundos. – Ninguém entende seus motivos, ele simplesmente parece amar a morte dos homens. A constatação disso é sua gargalhada antes de cada extermínio começar.

– E por que “Vapor de Ferro”? Eu nunca entendi esse nome, parece sem sentido. – perguntou o gordinho curioso, dando uma leve risadinha.

– É difícil dizer. Alguns textos dizem que em torno dele a temperatura é tão, tão alta, que nem mesmo o ferro resiste. E não que ele derreta, ele evapora. Outros textos vão mais longe e dizem que é ele mesmo quem exala um cheiro de ferro tão denso que pode ser sentido na garganta segundos antes dele aparecer.

– E os homens nunca tentaram detê-lo? – perguntou Luanda.

– Sim, MUITAs vezes. Mas só no passado distante, depois aprenderam.

– Aprenderam o quê?

– Aprenderam que não se tenta matar algo que não morre!

A frase forte gerou nos quatro jovens aquele frio na espinha.

– Ele é tão poderoso assim?

Berim parecia entusiasmado, apesar de temeroso.

– Sim, e continuará sendo até aparecer “aquele que o desafiará em campo aberto”. Enfim, isso não é da nossa conta. Overim, largue essas argolas.

QoNoxa não explicou a frase com tom profético. O ancião sentia um alívio nada bonito pela certeza de que a profecia jogava a responsabilidade no povo hakal. Ele se envergonhava disso, mas o alívio era inevitável.

O velho mudou de assunto bruscamente e falou sobre outra COISA qualquer, pouco antes de mandá-los para a água.

Com os dias, os três pararam de ir para casa por dentro da cidade e voltaram a ir pelo caminho de antes, mais quieto e fácil de cavalgar com velocidade quando queriam. Overim, às vezes, ainda ia com eles até ALGUM ponto da estrada ou até mesmo até a casa de Alepo, onde deixavam os cavalos, só para garantir. 

A afinidade entre Overim e Luanda aumentara novamente e num desses dias Overim foi além do ponto em que sempre ia e levou-a até sua casa depois de deixar Alepo. Berim ia um pouco mais à frente, deixando os dois mais à vontade logo que percebeu um certo clima. Ainda assim, a última COISA que tiveram de fato foi privacidade, já que, apesar de Berim ter entrado depressa quando chegaram, ao longe podiam ver Alepo que os olhava disfarçadamente – ou nem tanto.

– Ele está olhando pra cá. – reparou Ailin, que riu sem jeito.

– E isso agora? Seria ciúme?

– Sei um jeito de descobrir.

Luanda deu um abraço diferente em Overim. Sem aquele jeito de abraço de uma mera amiga, com mais suavidade, mais atenção. O primeiro passo estava dado. O próximo foi o beijo que ela mesma buscou.

– Que foi isso?

Overim ficou confuso. Era o que ele queria desde MUITO tempo, mas sempre sentia um peso, como se algo naquilo estivesse MUITO errado. 

– Não foi nada, mas olha lá, o Alepo entrou.

Luanda sempre teve um encanto por Overim e não aguentava mais suprimir todo aquele desejo. Pensou que talvez fosse a hora de começar a agir, mas por enquanto era o suficiente. Até porque, a reação dele foi um pouco misteriosa demais.

Alepo, na verdade, não viu o beijo, pois havia sido chamado dentro de casa no exato instante. Logo após Luanda se despedir de Overim, Alepo saiu novamente até a porta de sua casa e o observou, pois pretendia perguntar justamente sobre a relação entre ele e Luanda a pedido de Alef, que a cada dia mais se mostrava apaixonado por ela, mas, agora, com um tanto de ciúme e até mesmo ódio de si mesmo por ter se afastado, dando espaço a Overim.

Overim subiu em seu cavalo e saiu disparado sem olhar para o lado da casa de Alepo. Ele não ia voltar para o rio, mas para sua casa. No entanto, num ato falho, fez o caminho para o rio e Alepo entendeu como uma oportunidade boa para perguntar sobre o tal assunto. Ele montou o cavalo e saiu atrás, mas uma garoa fina começou cair, fazendo um barulho que encobriu levemente o som dos cavalos, de forma que Overim não notasse que outro cavalo vinha vindo. Alepo não quis chamá-lo, pois num instinto competitivo preferiu alcançá-lo. Overim, porém, exigiu velocidade do cavalo com receio de que a chuva aumentasse. 

Estava difícil alcançá-lo e viu que seria mais inteligente avisá-lo logo, mas antes que assoviasse, viu um vulto por entre as árvores e o matagal que fechava a estrada para o lado do rio. Algo parecia se mover ligeiramente na mesma velocidade do cavalo de Overim, que a princípio pareceu até mesmo ser um movimento causado pelo vácuo que deixava ao passar – conclusão logo descartada. Pensou em alertar Overim, mas não queria fazer alarde desnecessário.

Ao invés disso, reduziu a velocidade por poucos segundos e logo tornou a aumentar, ficando assim numa distância mais difícil de ser visto. A chuva engrossou e passou a atrapalhar BASTANTE a visão de Alepo, assim como o desempenho de seu cavalo, e isso o fez deixar escapar um grito na tentativa de motivar o animal. Nesse momento, viu que aquilo que corria por fora também reduziu drasticamente a velocidade até parar. Alepo também tentou parar, mas o cavalo demorou a responder e, quando estava a apenas alguns metros antes de cruzar o ponto da estrada onde aquilo havia parado, eis que ressurge, saltando sobre a estrada bem em sua frente, o homem da outra vez.

O cavalo de Alepo QUASE colidiu com o homem, que ao invés de se desviar, lançou-se sobre ele a fim de derrubá-lo, não prevendo que ele já estava a cair. Alepo desequilibrou-se com o balanço do cavalo, que virou de lado, arremessando-o na direção do homem que vinha com os braços esticados, pronto a agarrá-lo e lançá-lo ao chão. Alepo deu com a cabeça em seu cotovelo com MUITA força, tão forte que quebraria seu crânio, não fosse o fato de sua QaNai ter tomado a dianteira as ações e endurecido aquela brutal pancada. 

A cotovelada não foi o suficiente para mudar o curso de seu corpo, nem tampouco o do homem, então caíram os dois ao chão. Na queda, arrastaram-se pelo chão molhado alguns metros e Alepo se levantou primeiro, ainda zonzo, lançando mão da primeira pedra que viu e arremessando-a sobre a cabeça do homem. O homem se levantou antes que a pedra o atingisse, de forma a receber todo o impacto em seu peito, o que o fez voltar ao chão. Antes que pudesse se recuperar, Alepo o agarrou por trás passando um dos braços em volta de seu pescoço e apertando com toda força que podia, impedindo que o homem respirasse. Mas o homem era forte, MUITO forte, e ele se levantou erguendo-o junto. Alepo foi arremessado, batendo com as costas no chão, o que o deixou sem fôlego. Depois disso vieram as pisadas na barriga, sem dó. Em seguida, Alepo foi pego por uma das pernas e erguido até uma altura suficiente para que o homem o chutasse com MUITA força nas costas, jogando-o mais à frente com a força do chute.  Foi tudo rápido demais.

Alepo já estava desorientado o suficiente para reparar na força espantosa do homem, que o segurava no alto com uma das mãos para golpeá-lo com o pé, como se não fosse nada de mais.

Sua QaNai o manteu resistindo e acordado, mas precisou assumir o controle. Ele entrou em Modo Nai, se chacoalhou e o homem largou-o ao chão. Pôs-se em pé rapidamente e foi na direção dele dando MUITOs golpes que passavam perto, mas não o atingiam. O homem se esquivava com facilidade e parecia MUITO calmo, mas a QaNai de Alepo também estava calma e dando o melhor de si, usando todos os limites do corpo de seu hospedeiro.

Alepo tinha treino, mas não o suficiente. Em Modo Nai, era forte, mas não como aquele homem; era ágil, mas não como aquele homem; era veloz, mas não daquele jeito. Sua QaNai se espantava com as pancadas que levava pelo impacto que causavam na couraça que formara na pele e não conseguia acompanhar aqueles movimentos.

A luta se seguiu e, em um momento qualquer, sem drama ou um golpe espetacular, Overim apareceu, ainda sobre o cavalo.

– Solte-o! – gritou alto, interrompendo o homem, dando um salto do cavalo até um ponto entre ele e Alepo.

Alepo estava desgastado, com o corpo em MUITAs partes esfolado e MUITAs marcas de impacto.

– O que quer com ele? – perguntou com voz audível em meio ao barulho da chuva.

– Com ele?

O homem apenas riu e avançou a toda velocidade na direção de Overim, que entrou em Modo Nai de imediato e esperou até o momento certo para esquivar do golpe, que foi dado com as unhas da mão anorme semicerrada que QUASE acertou seu rosto.

– Ele é o atraso, meu alvo é você. – alegou o homem, preparando um novo movimento.

Overim não só observava Jio, mas também o orientava. Podia sentir a ferocidade dos golpes da QaNai, que nitidamente não tinham intenção apenas de atordoar ou deter o sombrio adversário. 

O homem tinha os braços MUITO longos e ainda assim usava-os tão rápido quanto Overim. 

Enquanto desenrolava a troca de golpes, Alepo se levantou, já no controle do corpo, e pegou um instrumento cortante na bolsa de seu cavalo, já em pé assistindo silencioso àquela situação. Como da outra vez, aguardava o momento mais propício para agir. Mas ele não estava bem.

Overim aproveitava o tempo sob controle de Jio para observar tudo que podia naquele homem. Tanto em seu jeito de lutar como seu aspecto visual, que ajudaria a identificá-lo caso o desfecho ali não fosse como esperava.

O homem tinha um cabelo jocoso, mas que no conjunto o deixava tenebroso: cobria apenas a parte baixa da cabeça, mas não o topo, deixando visível uma marca atrás de sua orelha, um símbolo que Overim não conhecia, mas não esqueceria. Sua outra orelha tinha um corte como que de um brinco arrancado à força e havia uma cicatriz profunda em forma triangular num de seus ombros.

Numa oportunidade, Jio fez o mesmo teste que Overim fizera na primeira vez, desferindo um soco que colidiu propositalmente com um soco de seu oponente. O choque foi estrondoso, com som como de pedras quebrando. Dessa vez, foi mais bem-sucedido, agora em Modo Nai, fazendo o homem se afastar após baque.

– MUITO bom. – sussurrou o homem, sacudindo a mão.

O homem recomeçava sempre MUITO feroz, mas não parecia estar levando aquilo como algo perigoso para si. Mantinha-se calmo e analisava Overim tanto quanto era analisado. Tentava feri-lo mortalmente, mas sem conseguir usar tanto aquela mão que recebera o golpe.

Overim conseguiu encaixar um golpe forte e longo com o pé na boca do estômago, que empurrou num solavanco o homem. Alepo viu ali sua oportunidade e tentou cortá-lo. Ele avançou. 

Algo terrível aconteceu.

– Não! – gritou Overim, sem perceber que reassumira o controle, tamanha foi a força de sua expressão ao ver seu amigo sendo cortado pelo abdômen de fora a fora com sua própria arma.

O golpe de Alepo havia sido facilmente esquivado pelo homem que, diferente das outras vezes, estava atento ao bote que Alepo certamente daria a qualquer instante. Foi fácil aproveitar o movimento do braço do jovem contra ele mesmo.

Overim, de um salto, se pôs a chutar o rosto do homem, que também se machucou com o ataque cortante de Alepo, com um talho no braço que fazia derramar sangue. A partir daí, teve o rosto chutado com força várias vezes, até que os chutes repentinamente pararam.

Overim olhou para o lado e viu seu amigo de joelhos. O homem se levantou e esperou a reação de Overim, que olhava pasmo o sangue tomar o chão, misturado à chuva que não parava.

Uma cena paralisante. Aquele corte não tinha jeito. Um corte longo e profundo que por pouco não jogaria as entranhas de Alepo pelo chão. 

Alepo só pôde olhar mais uma vez para o rosto de Overim, com um olhar como se pedisse perdão pelo momento. Suspirou, caiu com a face para o chão molhado. Dali, não voltaria mais para casa. Não voltaria mais para sua família e amigos. Não disputaria mais pelo calor de Luanda.

– O que você fez! – clamou o jovem, em meio aos gritos que dava, se esquecendo por um instante da presença do homem que causou aquela dor.

O homem era forte e certamente podia ainda contra Overim, mas preferiu deixá-lo aos berros pranteando pela tragédia. A angústia de Overim pareceu tão profunda que, por um momento, aquele homem soube que, de fato, corria ALGUM risco MUITO maior do que pelo sangue que perdia.

Overim nem viu quando foi que o homem se foi, só soube que ele não estava mais lá longos minutos depois, quando por fim concebeu a morte de Alepo. Overim passou longo tempo ali lamentando, chorando com grande amargura e ódio a morte do amigo, decidindo com o resto de lucidez que lhe sobrava o que faria.

Ele precisava fazer uma COISA, e teria ALGUM tempo, pois a chuva caía e Overim sabia que ninguém passaria por ali enquanto ela durasse. Precisava se concentrar, esconder com o melhor fingimento que nunca praticou e aproveitar a última oportunidade que teria de pedir um certo ensino a QoNoxa, sem que o sábio entendesse o motivo. Um ensino para completar sua vingança.

Overim arrastou o corpo de Alepo para baixo de uma árvore, onde prendeu também o cavalo, e foi até a casa de QoNoxa.

– Vô! – chamou-o lá de fora.

– A chuva te pegou? Entre logo!

QoNoxa notou o olhar aflito e perturbado do jovem. Seus olhos estavam inchados, mas Overim fazia questão de disfarçar, ora coçando os olhos, ora tossindo, para dar mais motivos para aquele aspecto.

– Me conte logo, o que você tem?

– Nada demais. Estou aqui porque fiquei pensando sobre aquele homem, o que nos atacou na estrada.

– O que pensou?

– E se eu não puder detê-lo? E se eu nem sequer estiver lá quando ele reaparecer? Eu preciso de algo mais, preciso de algo que só conheço uma pessoa que pode me dar.

O velho logo concluiu o que achou mais óbvio.

– Filho, a lâmina não é minha, e mesmo que fosse, nas mãos de um homem é apenas uma lâmina. Talvez inquebrável, pelo que dizem, mas só uma lâmina.

– Não quero a lâmina!

QoNoxa pôs-se a refletir. Não imaginava do que se tratasse, mas via a urgência e aflição naqueles olhos.

– No que está pensando?

– Uma vez me disse que conseguia matar alguém sem encostar. Lembra?

– Você não precisa disso, filho. Não agora.

– E quando vou precisar? Só quando alguém perder a vida? Quando eu fracassar? Quando eu não tiver mais tempo?

– Por que está falando desse jeito? Mal parece você.

A conversa seguiu com Overim argumentando incessantemente de forma perspicaz, que não foi o que convenceu o velho, mas sim o receio de que ele soubesse de algo mais do que apenas aquilo que dizia ou que se tratasse de um medo há MUITO tempo sendo acumulado e refletido sobre suas aventuras misteriosas – seus sumiços e perda de memória.

– Vou te ensinar, mas…

– Dá sua palavra? – interrompeu Overim, preocupado em prendê-lo a uma promessa, caso não desse tempo de aprender antes que QoNoxa descobrisse sobre o trágico fim de Alepo.

– Dou minha palavra. Mas agora me dê a sua de que vai usar isso apenas como último recurso e jamais por ódio, mas por ser a única opção e COISA certa a fazer.

– Eu prometo!

Overim nem sequer ouviu direito a frase.

– Amanhã cedo começamos, isso se seus amigos não aparecerem.

– Não! Precisa ser hoje! Por favor! Nós não podemos dar motivos pra eles ficarem com mais preocupação ainda, MUITO menos descobrir sobre algo tão extremo.

A partir daí foi outro impasse, com QoNoxa não vendo motivo para tanta afobação e Overim insistindo e argumentando. Por fim:

– Diga logo, do que preciso além das mãos? Preciso entender ALGUMa outra COISA? Como funciona? Como é que se mata alguém numa luta sem escostar? É com magia, não é?

Ele tagarelou até tirar a paciência do velho, que aceitou ensiná-lo.

A noite foi longa, com MUITOs conceitos, MUITAs explicações, teoria atrás de teoria, etc. ALGUMas COISAs Overim tinha que perguntar várias vezes, não só pela dificuldade, mas pela falta de concentração, pois não tirava de sua mente o fim que levara seu amigo.

A técnica era MUITO bem elaborada, com uma mistura de elementos criada pelo próprio QoNoxa, que usava um complexo selo escuro, mesclado a um círculo mágico, feitos na palma da mão. O selo escuro tinha propriedade parecida com a do selo dos QaFuga, mas foi desenvolvido pelo sábio. Primeiro, era feito o círculo mágico na mão, depois o selo. O selo servia para lacrar com total segurança o círculo mágico que, por sua vez, evocava aquilo – o que quer que fosse – que, ao ser conjurado pelo minúsculo círculo, surgia furioso ao perceber-se em uma prisão (o selo). Uma vez rompido o selo, aquilo que havia sido conjurado tragava de uma vez só o primeiro espírito que lhe fosse apresentado, sem se saber para qual fim.

A energia tomada no exercício dessa técnica, devido à força que o selo exigia, era tanta que podia causar fraqueza, tontura ou até desmaio no usuário. Ao menos foi o que aconteceu QoNoxa, assim como com a única pessoa a quem ele havia ensinado a técnica – um aprendiz ousado, morto na última guerra contra os hakais.

Com o “truque” então aprendido, QoNoxa viu algo que ainda não tinha visto antes: Overim, de repente, chorando como criança.

– Filho? O que houve?

Overim começou a contar, detalhe por detalhe. Revelou o que o levou até a casa de seu mestre e o motivo de tanta insistência.

– Tem certeza que ele não estava mais vivo?

– Sim! – confirmou Overim, ajoelhado com as mãos no rosto.

QoNoxa o pegou pelo braço sem saber o que dizer. Só sabia que tinham que tirar o corpo de lá.

– Levante! Venha logo!

A chuva ainda caía, agora não tão forte como antes. QoNoxa e Overim montaram os cavalos e partiram para a estrada atrás do corpo. Quando chegaram lá não encontraram nada: nem o corpo, nem o cavalo, nem o sangue, que havia sido lavado pela chuva. Procuraram por um tempo e foram em direção à casa de Alepo. Chegando mais perto, viram que ALGUMas pessoas estavam chegando até a casa, mesmo na chuva. Entraram na casa e se depararam com Berim, Luanda e seus pais, além de ALGUMas outras pessoas em volta do corpo no chão da casa, com Alef e seu pai chorando sobre ele. Triste cena que partiu ainda mais o coração de Overim, que chorou outra vez amargamente.

Filis, pai de Alepo, ao perceber a demora do filho mais novo, tinha saído em busca dele e, depois de MUITA procura, resolveu olhar a estrada, onde encontrou o corpo. 

Torna-se desnecessário narrar o clima do lugar, com a infelicidade, raiva e desorientação de seus familiares e amigos, que não conseguiam sequer admitir aquela penosa verdade.

Overim estava decidido: ia atrás daquele homem, a distância não importava.

Jornada pela vingança 

Overim saiu da casa de Filis sem que QoNoxa notasse, num minuto de distração, e foi para casa a cavalo. Já era de madrugada, mas contou aos seus pais sobre a tragédia; estava estarrecido. Passou aquelas horas restantes antes do dia clarear preparando mantimento, troca de roupas e armas. Assim que a luz raiou, pôs suas COISAs no cavalo, montou e saiu disparado em direção ao rio. Já sabia boa parte de seu trajeto: subiria o rio Igon Sanza até as Águas de Agazohu e, de lá, seria guiado por um mapa que pegou de QoNoxa até o rio Sampta Lunga. Ao chegar ao rio, a única informação que teria era que o território dos pinages ficava depois de uma corredeira.

Coincidentemente, Ailin também havia partido do planalto numa direção parecida: Novo Mundo. Insatisfeita e extremamente inquieta com a demora nas ações do conselho, Ailin não aguentou ficar parada e foi atrás de respostas. Saiu um dia antes de Overim.

*****

O comércio de Novo Mundo era agitado e via-se pessoas de MUITOs lugares diferentes. Havia vários tipos estranhos por lá, e isso fazia com que a aparência um pouco diferente de Ailin não chamasse tanta atenção, já que Bukie não ficava à vista, mas em um cesto. Ela tentou falar com ALGUMas pessoas, mas a maioria não queria se esforçar tentando entender o que ela perguntava, talvez por causa do idioma ou de seu sotaque forte, e alguns poucos que se dispuseram simplesmente não tinham informações relevantes para ela.

Ailin insistiu na investigação por dias. À noite, saía da cidade pelo lado que chegou até lá e descansava em ALGUM lugar que considerasse seguro pelos arredores. Durante o dia, tentava não parecer suspeita, então, depois de interrogar alguém, logo mudava de lugar e esperava longamente outra oportunidade. A busca já estava começando a irritá-la, pois parecia que não traria resultado ALGUM, até que resolveu observar alguns homens sendo levados por oficiais do exército de Hura que ela via constantemente. Ailin seguiu-os para fora da cidade, através da saída pelo outro lado, até um lugar cujo acesso era uma entrada no chão, camuflada, parecendo um tipo de calabouço. Se escondeu e ficou observando o lugar por horas, vendo homens entrando e saindo, mas também mulheres, o que deu a ela uma ideia. Entendendo os horários de troca de turno dos oficiais e tendo calculado a quantidade de gente que havia constantemente lá dentro, era hora de agir.

Esperou que ALGUM oficial saísse. Saíram dois juntos. Ailin deixou Bukie perto da entrada do calabouço, seguiu-os até a cidade e, quando se aproximaram de uma multidão, iniciou seu plano.

Ailin passou apressadamente na frente dos oficiais e esbarrou propositalmente em um homem que aparentava ser facilmente irritável. O homem reagiu de imediato empurrando seu ombro. Ela voltou e o olhou com cara de desprezo, e resmungou algo que ele não ouviu. O homem a princípio ficou com ALGUM arrependimento ao ver que se tratava de uma jovem aparentemente frágil e tão linda, mas essa reação dela o fez mudar de ideia. Ele a empurrou de novo, agora um pouco mais forte e ainda sem nenhum receio pela presença dos oficiais, que simplesmente pararam para ver o desfecho. Ela continuou resmungando, agora claramente provocando, com um sorriso curto na face.

– Domar ka hatu? – perguntava o homem furioso, sem que Ailin tivesse a menor ideia do que significava.

Ela retrocedia conforme o homem zangado avançava.

– Domar ka hatu? Soma domar ka hatu? – insistia nervoso, se aproximando dela mostrando a palma de sua mão aberta, como se fosse dar um tapa.

Ailin para de se mover. Olha-o fixamente e deixa que ele se aproxime mais. De repente, um grito:

– Buhh! – e ri.

Com a provocação tão infantil, o homem se assustou e, ainda mais furioso, tentou dar o tapa que queria, mas Ailin se esquivou e deu um golpe rasteiro que derrubou o homem estabanado. Antes que ele levantasse, ainda levou um belo chute nas nádegas. Ela se afastou e um dos oficiais segurou-a pelo braço por trás. Fingindo uma simples reação instintiva, Ailin deu com o cotovelo no queixo do oficial. Deu para ouvir a batida dos dentes a MUITOs passos dali.

Ailin nem olhou para trás, mas percebeu que o outro oficial vinha em sua direção. Assim, fugiu para o lado do calabouço. Os dois a perseguiram e o homem vinha logo atrás, mas Ailin vendo que o homem também vinha, como não podia correr o risco de tê-lo atrapalhando seu plano, despistou os oficiais, deu a volta neles e surpreendeu o homem com um chute violento nas costas, perto do pescoço, que o fez cair desorientado. Correu o máximo que pôde e saiu na frente dos oficiais ainda antes do fim da cidade. Fingiu um tropicão e se deixou ser pega. Os oficiais não foram nada gentis, mas o que fizeram foi para ela sem relevância.

O calabouço era grande, com homens e mulheres detidos ali. Ailin foi levada para lá e jogada numa cela com outras mulheres. O ambiente causava asco, era fétido, úmido e escuro. Ailin esperou que os oficiais se afastassem, o que levou MUITOs minutos, pois se sentaram próximo de sua cela e conversaram por um tempo. Quando achou oportuno, gritou um não tão alto “Hakalam torkai enil”, uma frase de motivação, de força moral, MUITO conhecida pelo povo Hakal que, por causa do sotaque e do nome de Hakalam, dificilmente seria compreendida por alguém de fora da Família Hakal. Essa frase era entoada por Aodin antes de todo ataque que o exército faria: “no final, os frutos de Hakalam vencerão”. 

Ailin repetiu a frase ALGUMas vezes, e cada vez dizia mais alto. Esperava que se Elinon ali estivesse e ouvisse, logo responderia. As repetições pareceram vãs, mas demorou até que ela por fim desistisse.

No dia seguinte, tentou conversar com ALGUMas mulheres de sua cela, mas eram idiotas e maldosas, provavelmente prostituas presas por COISAs imbecis. Já estava pronta para seguir com a segunda parte de seu plano quando ouviu de volta a frase “Hakalam torkai enil”.

– Quem é você? – perguntou Ailin, curiosa ao ouvir aquela frase num sotaque tão diferente.

– Conheço seu povo, conheço sua história. Lutei lado a lado com seu grande guerreiro.

– E quem é você?

Insitiu, perguntando compassadamente.

– Noa, mas isso não importa. O que importa é: o que faz aqui?

– Estou atrás de um amigo. Pode me ajudar?

– Quem é seu amigo?

– O nome dele é Elinon, é um dos conselheiros do Planalto Hakal. Esteve aqui no ataque feito pela minha família, mas desapareceu e não creio que esteja morto.

Suspirou audivelmente.

– Você se deixou prender para investigar? Há maneiras mais fáceis. – comentou Noa.

– Vai me ajudar?

– Estou preso, não é?

– Com isso eu posso ajudar. E você, pode me ajudar?

– Se você tivesse o talento que aquele guerreiro tinha, eu arriscaria, mas… – Noa riu baixo, insinuante.

Com a conversa, as mulheres começaram a se agitar na cela e, antes que uma confusão maior começasse, Ailin assoviou da forma que havia combinado com Bukie e em seguida deu um berro que fez as mulheres calarem a boca, mas também chamou a atenção dos oficiais, que vieram correndo, deixando a entrada livre para Bukie. Ele se esgueirou rápida e silenciosamente até lá dentro, desviou dos oficiais e entrou na cela, saltando direto até o pescoço de Ailin. Vesek Akruel.

Ailin arrebentou num golpe só as grades e socou os oficiais, deixando-os no chão sem reação. Ela ainda gritou com as mulheres fazendo sinal para que não saíssem dali, mas nem precisaria. Aquele olhar junto com o que tinham acabado de ver foi o suficiente para que a maioria permanecesse imóvel, ALGUMas em estado de choque.

Saiu olhando calmamente cela por cela, ouvindo MUITOs gritos e manifestos de todo tipo das pessoas ali detidas. ALGUMas celas eram mais difíceis de se enxergar, o que tornava necessário gritar com os detidos a fim de que cooperassem por bem ou por mal. Não levou MUITO tempo até ver que Elinon não estava em nenhuma das celas, mas foi tempo o BASTANTE para que outros oficiais chegassem.

– Agora vai me ajudar? – perguntou de frente para a cela de Noa.

Noa, assustado, apenas assentiu com a cabeça. Via pela segunda vez em sua vida a Vesek Akruel – Incrível! – pensou.

– Se tem algo seu aí, pegue.

Ailin arrebentou as grades da cela de Noa que, ainda assustado, disse:

– Vamos sair daqui logo, preciso te mostrar uma COISA. Você vai ter uma surpresa. Elinon, não é? – comentou Noa, o que deixou Ailin MUITO ansiosa.

Antes que tentasse contra os oficiais, viu que os dois primeiros já estavam recuperados e em pé, só esperando reforço. A Vesek Akruel era uma visão assustadora mesmo para os ali presentes que já haviam presenciado outros hakibas extravagantes, como o de Sadi. Ainda assim, estavam dispostos a tentar detê-la, afinal, não podiam mesmo imaginar a encrenca em que se meteriam.

Antes do quebra-pau começar, um número razoável de oficiais e moradores se reuniu em torno da entrada do calabouço; minutos antes, alguém havia levado até a cidade a informação de uma possível rebelião nas celas que se espalhou rápido, fazendo com que alguns curiosos e metidos a defensores da cidade também viessem olhar.

Ailin saiu quebrando tudo. Foram MUITOs chutes e socos, todos com força, mas tentava não ferir gravemente ninguém, apesar da raiva que sentia por aquele lugar. Estava indo bem, tudo MUITO fácil, até que surgiu um guerreiro dentre eles, o renomado capitão Huber, irmão de Hura.

Ao ver os movimentos de Ailin, Huber não teve dúvidas de que podia e devia atacá-la com tudo que pudesse. Uma roda se formou ao redor dos dois depois que Huber deu um brado, afastando os outros oponentes de Ailin. Um verdadeiro combate começou.

Foi um grande espetáculo. Huber não usava magia, apenas força bruta. Era veloz e MUITO habilidoso. Nos primeiros golpes, sequer usou espada, mas se irritou com a zombaria que Ailin começou a fazer, ao dar um tapa fraco em sua nuca depois de um golpe seu que pegou apenas o ar. Ailin não era tão infantil ao ponto de desperdiçar um golpe num momento importante. O que houve foi que sua mão não alcançou o suficiente o adversário. Mas ela usou a situação para transparecer segurança.

Huber desembainhou sua espada finalmente. Não era MUITO grande, mas tinha o corte largo e pesado, QUASE como um machado. O primeiro golpe não veio com tanta força quanto ele poderia ter dado e Ailin, percebendo isso, testou sua potência, recebendo a pancada no braço sem esquivar. O resultado foi impressionante: nenhum arranhão! O impacto foi totalmente absorvido. A Vesek Akruel era formidável e havia alcançado já um nível extraordinário, que assustou seu adversário e o fez temer. 

Em alguns momentos, uma ou outra pessoa tentava interferir no combate, mas sem MUITO efeito e sempre com a repreensão de Huber, orgulhoso. Ele não conseguiu acertá-la diretamente fora dos pontos protegidos nenhuma vez, o que teria sido fatal. Ainda assim, alguns golpes foram bem doloridos. Ailin já via nele o cansaço e ela mesma já mostrava-se sem o mesmo pique. Alguns já apostavam que o vencedor venceria pela resistência. Ela mesma, depois de ALGUM tempo, já não sabia que fim aquilo teria, mas também não via como escapar e já sentia levemente a ação da insegurança e incerteza em seus golpes. Até que algo mudou o jogo.

Noa tentou interromper a luta em defesa de Ailin, que QUASE não atacava, mas Huber o pegou pelo pescoço, cuspiu em sua face, largou-o no chão e o atacou na parte mais interna do ombro, QUASE no pescoço. Foi terrível. O golpe abriu um corte que ia até perto do coração, tamanha foi a força que investiu. O homem estava aberto.

Ailin instantaneamente mudou de humor e, obviamente, de objetivo. Sua única esperança tratada como nada, morta por aquele homem em sua frente. Não sairia dali até que cada homem com olhar cruel e injusto estivesse morto.

Para o azar dos oficiais, os guerreiros mais experientes, com exceção de Huber, estavam todos com Hura, MUITO longe dali.

Pulou por cima do homem agonizando e cravou entre o queixo e o pescoço de Huber o apêndice da Vesek Akruel de sua mão direita. Ailin salivava raiva. Saltou para o meio da roda de pessoas em torno de si e esperou de olhos abertos quem tentasse contra ela. Estranhamente, não demorou. Sempre há os “corajosos” tremendo de medo.

Alguém ergueu uma espada e morreu. Outro gritou, atacou e morreu. A cada morte Ailin corria o que podia em direção oposta à cidade, até que não restasse dos guerreiros presentes quem pudesse se manifestar contra ela, se não uns poucos impedidos por amigos, familiares ou pelo medo. A maioria não tinha mais coragem. O único mago presente na cidade não ousou combatê-la; ele não sabia ainda, mas seria culpado e castigado severamente quando Hura voltasse e soubesse.

Ailin tomou um cavalo qualquer, correu em volta da cidade até o outro lado, pegou seu cavalo e partiu de volta para o Planalto Hakal. Sem Elinon, sem informações, mas com parte de sua fúria satisfeita e deixando um grande sinal de perigo para Hura.

*****

Overim chegava às Águas de Agazohu enquanto Ailin ainda estava no calabouço. No momento de sua partida de Novo Mundo, Overim já estava a caminho do território dos pinages.

“Pinage” era como um apelido. Não era como aquele povo chamava a si mesmo, mas era como a maioria dos povos os chamava. Tudo na aldeia tinha aspecto hostil. Só entrava lá quem era de lá, quem era conhecido do povo ou quem não tinha juízo (provavelmente, nem futuro).

A aldeia era pequena, toda cercada, mas sem torres de vigia. Na entrada, havia um portal feito com ossos humanos, mas sem crânios, o que não o tornava menos afugentador e, na verdade, causava ainda mais calafrios. O caminho até a entrada era fechado por árvores e demarcado por mais ossos e postes bizarros cujas pontas soltavam fumaça vermelha e preta. Em direção a esse lugar cavalgava Overim, ainda distante.

No trajeto até a aldeia, Overim avistou um grupo de pessoas indo na mesma direção, se aproximou deles e ficou a uma distância segura. Ao que parecia eram pinages, o que deduziu pela cor da pele da maioria e o tamanho avantajado que tinham. Guardou o mapa, agora sem utilidade, e seguiu de longe o grupo até o vilarejo.

Ao chegar na aldeia, viu que no portal da entrada havia MUITOs símbolos gravados, dentre eles o símbolo que marcava a pele do assassino de Alepo. Viu também que não seria fácil de entrar, pois não era como os vilarejos e cidades que conhecia. A aldeia tinha apenas uma maneira de entrar a cavalo e, ao redor de todo o resto, troncos cruzados com pontas afiadas apontando para fora que tornavam difícil o acesso até mesmo a pé. Havia, porém, um rio que atravessava a aldeia.

Overim deixou o cavalo num ponto da mata que podia observar da árvore mais alta que encontrou perto da aldeia e observou o lugar por dias, folgando apenas nos momentos em que ia até o seu cavalo. Seus suprimentos já estavam começando a acabar quendo, finalmente, avistou aquele homem, o único com o cabelo do jeito que ele se lembrava.

No mesmo dia, ele o viu entrando e saindo MUITAs vezes da mesma casa. Assim que escureceu, Overim deixou o cavalo e entrou na aldeia pelo rio. O quieto Jio o tempo todo ficou alerta. Foi à casa que imaginava ser daquele homem e, MUITO bem camuflado ao ambiente, tentou ouvir o que se passava lá dentro.

“É ele!”, pensou Overim, ao ouvir uma das vozes, mas não entendia uma só palavra.

Também não sabia ainda como agiria, pois, por mais forte e ágil que fosse, ali dentro da aldeia não teria chance, precisava pegá-lo sozinho e tentar imobilizá-lo a fim de fazê-lo revelar o motivo de seus ataques antes de vingar o amigo.

O homem facilitou. Overim respirou aliviado quando o viu sair da casa com uma grande caixa nas mãos indo em direção ao portal. Ele o seguiu.

Na caixa, havia objetos ritualísticos que levaria até uma caverna próxima dali, onde seu povo realizava cultos às suas divindades e fazia oferendas. Overim aproveitou a oportunidade entrando na caverna logo atrás do assassino.

Provavelmente, haveria uma cerimônia especial talvez no dia seguinte. Apenas um segundo homem estava na caverna quando o assassino entrou. Havia tochas iluminando boa parte do lugar, mas não foi difícil se esgueirar às sombras. Os dois homens se puseram a arrumar o ambiente com os apetrechos enquanto o odor que saía de ALGUMas daquelas COISAs encobria o cheiro do QaFuga, que nem sequer havia levado isso em conta.

Overim não queria arriscar enfrentar os dois de uma vez, então planejou pegar o outro primeiro (que era bem menor que o assassino), trazendo-o para fora da caverna e depois adentrá-la atrás do seu verdadeiro objetivo.

*****

Um barulho lá fora. Um animal, o vento, fosse o que fosse… não custava conferir. O assassino saiu até lá, deu alguns passos e entrou novamente. Estava tudo certo, fazia parte do plano. Overim os observou por mais alguns instantes e, quando o assassino estava com as mãos bem ocupadas e o outro totalmente livre, fez o barulho outra vez. Dessa vez, o assassino continuou lá dentro e o outro saiu, exatamente como Overim queria. Ele provocou mais barulhos suspeitos fazendo com que o pinage andasse mais e quando estava longe o suficiente da caverna, Overim o surpreendeu com um golpe certeiro na nuca sem fazer nenhum som. Pronto. Agora, dentro da caverna.

O pinage estava já terminando suas preparações e Overim o observou mais um pouco, curioso. Assim que terminou, se ajoelhou e, com aquela voz grave e limpa, pôs-se a entoar uma espécie de oração cantada. Overim sentiu um calafrio mas, incentivado por Jio, pulou sobre o pinage que parecia ter previsto o movimento: desviou bruscamente seu corpo e pôs-se em pé.

– Alepo! – exclamou surpreso. – Te procurei MUITO e agora você veio até mim. – disse com um sorriso cruel no rosto.

Ele não pôde ser encontrado na aldeia antes por Overim porque não estava lá. Acabara de voltar de QeMua, onde passou dias observando a vila à sua procura.

– Alepo? Você o matou e vai me dizer o porquê!

O ódio de Overim por aquele homem só não era maior do que sua certeza de que havia algo a mais por trás de tudo aquilo. No entanto, o olhar entregou do pinage pareceu dizer que ele não viu sentido nas palavras de Overim. A princípio, ambos pensaram que se tratava apenas de um problema de comunicação, visto que não falavam de berço o mesmo idioma.

– Por que matou Alepo? – insistiu mesmo assim.

Overim já sabia o que ia fazer. Pretendia derrubar parte do teto da caverna atingindo um ponto crítico que acreditava que fosse desabar facilmente; já estava prestes a fazer isso. Ele deixou escapar uma olhada rápida para cima, que fez com que o pinage entendesse o plano e corresse para cima dele. Overim entrou em Modo Nai imediatamente e acertou com força o queixo do pinage, que caiu, mas rapidamente o golpeou com um chute rasteiro no tornozelo, levando-o também ao chão. Num salto, pôs-se sobre Overim, agarrou seu pescoço com as duas mãos e pressionou com toda a força que tinha. Os dedos de trás encaixaram na coluna que talvez se quebrasse se fosse uma qualquer. Mas não aquela, não a de Overim em Modo Nai. Entretanto, o problema não era só a força, mas aquelas unhas afiadas como navalhas, duras como pedra, que já estavam fazendo Jio se empenhar.

O pinage sentiu seus pulsos serem pressionados pelas mãos de Overim, que não mais tentavam afastá-los de sua cabeça, mas apenas isso mesmo: esmagá-los.

– Ahhh!

O pinage berrou e tentou aplicar ainda mais força, Jio fez o mesmo apertando seus pulsos. Ficou impressionado com a concentração do jovem QaFuga que não se abalou ao ver que não podia respirar. Ora, ele não imaginava como eram os seus treinos e quanto tempo passava debaixo d’água. Ele não sabia quanto tempo Overim levaria para desmaiar, mas sabia que seus pulsos estavam QUASE no limite para quebrar; podia-se ouvir estalos altos vindo de dentro dos braços. Desistiu do estrangulamento e puxou seus braços na tentativa de que o QaFuga o soltasse, mas Jio não tinha essa intenção. O pinage então avançou com as mãos novamente, agora sobre o crânio de Overim, que pensou que aqueles dedos viriam sobre seus olhos e dessa vez foi ele quem desistiu, Jio acatou.

As unhas? Bem, Overim também podia ter algo similar. Jio concebeu a ele garras. Garras tão fortes como aço.

Antes que aquelas mãos conseguissem tocar seu crânio (ou seus olhos), Overim supôs que o pescoço do pinage fosse mais fácil de perfurar que qualquer outra parte descoberta, além de estar bem próximo de suas mãos. Jio virou o rosto de Overim para a esquerda com MUITA velocidade enquanto acertava o pescoço com a mão direita, deixando a mão esquerda do pinage livre que, no reflexo, não continuou o intento. Antes, reagiu ao ataque afastando a garra com o antebraço. Jio avançou com a outra mão no pescoço novamente e MUITOs golpes certeiros se seguiram, mas alguns nem tanto. Todos, porém, com tanta velocidade que fizeram o pinage se afastar, rolando para o lado, saindo de cima dele.

– Não pode me furar. – disse o pinage, passando a mão pelo pescoço intacto. Curiosamente, Overim compreendeu perfeitamente.

Overim finalmente começava a entender de fato o perigo que estava enfrentando. Aquele pescoço tantas vezes golpeado não tinha sequer um arranhão. “Como é possível?”, se perguntava. Feri-lo era possível, já que os apertões no pulso o fizeram gritar e mudar de estratégia. Então, o que havia acontecido?

No primeiro encontro deles, Overim lembrava-se bem de um golpe na cocha que surtiu MUITO efeito, além da finalização, feita por uma pedrada na fronte. Lembrava-se também do segundo encontro, quanto, em Modo Nai, golpeou contra um soco desferido pelo pinage, causando nele expressão de dor. – Qual seria o segredo dele agora? – perguntavam-se, Overim e Jio.

O foco e frieza daquele homem inquietavam Overim, que perguntou:

– O que é você?

– O que eu sou?

A distância era segura. Ele riu e baixou os braços. 

– Sou “pinage”. É assim que nos chamam? Sou como você: alguém com MUITOs segredos. Somos iguais, mas você tem menos sorte.

Antes que ele continuasse:

– Não somos iguais! Sou QaFuga e…

– E o quê? Ninguém é como vocês? Acha que não conheço sua espécie? – interrompeu o pinage.

Overim não conseguiu pensar em uma resposta antes que o pinage continuasse:

– Suas arrogantes sanguessugas e uma história com um acsi são suficientes pra se sentirem especiais, não é? São os “filhos de Taacón, o desbravador”, mas vivem isolados num território grande que ninguém mais quer e não conhecem nada fora de lá. Aliás, não conhecem nem os segredos do próprio líder que convenceu o acsi a ajudá-los.

– Como ousa? Você não conhece meu povo e não devia ter ido até lá!

– E você, o que conhece do meu? Sabe a profanação que é entrar aqui sem se purificar? Sabe o que todos terão a obrigação de fazer?

Jio cortou a conversa e avançou sobre ele pronto a cravar suas garras onde quer que fosse. O pinage, percebendo isso, se deixou ser atingido. Após o golpe, se afastou novamente.

– Não vai me furar, eu já te disse. Sanguessuga arrogante.

Overim queria o controle, mas Jio estava MUITO alterado e continuou atacando. Enquanto desferia os ataques, Overim tentava persuadi-lo sem sucesso e passou a fazer um esforço enorme para retomar as ações de seu corpo. Nunca antes havia entrado em um desacordo tão gritante com sua QaNai. O pinage percebeu algo estranho e especulava qual seria o problema; não tinha certeza, mas podia apostar que era algo entre hospedeiro e sanguessuga.

– Problemas com seu amiguinho arrogante? Eu sei como é.

Jio fixou os olhos nele. Ele continuou:

– Sim, eu sei como é. Por que acha que não consegue me furar? Eu também não estou sozinho.

Após dizer isso, atacou Overim ferozmente. Atacava e debochava do clã QaFuga. O deboche não era nada. Mas Overim e Jio ficaram inseguros com a afirmação anterior e estavam MUITO confusos. Será que o pinage havia conseguido também uma QaNai? Mas como conseguiria debochar da espécie e ainda manter o controle sobre ela?

Jio parou por um segundo:

– Você é hospedeiro? – perguntou Overim.

– Não como você, mas funciona bem. – respondeu o pinage, retomando os ataques.

Jio estava tão assustado quanto Overim e agora um pouco desorientado, perdera o foco. Já não atacava como momentos antes, não para matar, e passou a seguir o plano original de Overim, que era primeiro colher informações, depois a vingança.

De repente, o ar começou a ficar mais pesado e aquele homem, sabendo o motivo, começou a rir enquanto lutavam. Ele olhava para os lados como se estivesse sentido a presença de mais alguém. Por um momento, Overim também pensou ter visto alguém, depois imaginou que fosse só uma impressão, mas tinha certeza que uma outra energia se fazia presente ali.

Os dois continuavam se atacando e se afastando.

– Está sentindo, sanguessuga? Sabe o que é?

Apesar de ser algo difícil de acreditar, ele notou que Overim de ALGUMa forma também conseguia sentir aquela outra força que havia adentrado a caverna.

Jio começou a sentir uma sensação diferente, difícil de descrever. Sentia como se o corpo de Overim estivesse sofrendo uma tentativa de invasão. Uma opressão MUITO forte veio sobre ele, que não conseguia mais manter o foco. Overim não tinha chance sem a Nai, mas com Jio no controle naquele estado, o final do combate estaria já decidido.

– Você luta bem com essa ajuda, mas o que fará sem ela? Como é saber que vai lutar sozinho contra alguém que não está só? Espero que a sanguessuga arrogante não perca nenhum detalhe de sua morte.

A caverna era toda preparada para receber as divindades que aquele povo reverenciava. Fosse o que fosse, estava ali e boa COISA não era, e parecia estar reivindicando suas exigências sobre quem fizesse uso daquele local. Afinal, o lugar não era só de reverência e memória, mas de invocação, e Overim, obviamente, não se enquadrava nos requisitos: claramente não era um dos seus. 

Talvez aquilo estivesse prestes a se manifestar de forma mais evidente, pois sentiu-se provocado pelo selo QaFuga que impedia qualquer tipo de possessão. Porém, algo a fez parar e observar.

Depois de MUITO conversar com o orgulhoso Jio, Overim viu que não tinha jeito e seria obrigado a usar o método que aprendera com QoNoxa. Ao proferir as palavras necessárias (que não sabia ao certo o que significavam, mas sabia o que simbolizavam), segurou firme o pulso apontando a palma da mão com o círculo de conjuração apontado para o pinage. A força que empurrava o selo podia ser sentida pela outra força – a que oprimia Overim na caverna – e foi o que a fez ter cautela e se distanciar lenta e sutilmente do lugar, deixando o pinage por conta própria. Overim percebeu.

– Quem está sozinho agora?

– Acha que eu estou sozinho? Você ainda não entendeu, não é? – murmurou o pinage, investindo um novo ataque furioso, mas aparentemente desesperado.

Overim então desfez o selo abrindo um talho na mão com a unha. Uma força o empurrou para trás. Foi assustador.

Algo MUITO poderoso forçou a passagem pelo círculo mágico em sua mão. Era como uma névoa que, ao olhar através dela, a luz sofria distorção – como acontece com o vapor – pela tamanha diferença densidade que causava noar. Ao mesmo tempo, causava uma sensação congelante que se misturava ao espanto que subia gelado pelas costas de Overim. Mas tudo foi MUITO rápido.

A névoa foi com velocidade impressionante até o pinage que, pelos movimentos que passou a fazer, parecia ter seus braços puxados. Ele resistia com um olhar profundo de terror que por um instante QUASEr fizeram Overim se arrepender. 

Agora, Overim precisava apenas manter o pulso firme até que a névoa voltasse por completo para o círculo e, teoricamente, o homem cairia morto.

Não foi o que aconteceu.

Após aquele momento de pânico do pinage e o assombro da névoa, Overim caiu de joelhos exausto enquanto seu adversário permaneceu em pé com olhos arregalados, transpirando MUITO.

Jio ainda não estava bem e agora sequer podia assumir o controle. Tentou motivar Overim para que se pusesse em pé e terminasse o que havia começado antes que o jogo mudasse. Overim estava pasmo e confuso com sua falha. Havia feito exatamente como fora ensinado.

O pinage começou a sussurrar lamentos invocativos esperando que aquela força de antes voltasse à caverna em seu socorro. Overim pôs-se em pé e, mesmo sem a menor disposição física, tentou golpeá-lo. Foi um soco desajeitado, fácil de se defender. O pinage estava também extremamente exausto, mas apenas empurrou sua mão e se afastou rapidamente. Sobretudo, estava abalado. Algo MUITO assustador para ele havia acontecido e agora estava evitando o combate, perdido e confuso. Overim achou que aquela reação fosse apenas medo pela visão e sensação pavorosas que o pinage tinha sofrido, mas ainda havia algo mais, algo que ele não podia ver nem sentir.

Desconfiado de que o seu socorro não viria, o pinage partiu para outra estratégia:

– Não quer saber por qual motivo o acsi ajudou seu povo?

Imediatamente, ao ouvir isso, Jio fez algo que um QaFuga jamais faria em condições normais: concedeu a Overim autonomia sobre a Nai, contanto que ele matasse o pinage imediatamente. Overim não entendeu o plano de Jio, mas pressionado pela condição imposta por ele, aceitou.

Na verdade, assumir o controle do Modo Nai nem sequer parecia algo possível. Talvez a QaNai estivesse delirando, pensou. Então, antes de pôr em prática a orientação de Jio, insistiu no que fora ali fazer: buscar informações.

– Quero saber apenas por que foi atrás de Alepo!

– Mas que…?

O pinage expressava estar confuso.

– Diga! Por que matou Alepo? – gritou, sem se importar se poderia estar atraindo a atenção de mais gente.

As peças se encaixaram Só então tudo fez sentido para o pinage. Cada fala de Overim nesse momento lhe veio à mente e compreendeu a situação toda.

– Você não é o Alepo?

– Meu nome é Overim! Quero saber por que estava atrás dele!

O homem só teve alguns instantes para pensar e dizer “fui pago por Marvam!” e ser golpeado ferozmente no pescoço por Overim, dessa vez surtindo efeito, dilacerando completamente a região, QUASE fazendo desligar a cabeça do resto do corpo.

Afinal de contas, a técnica de QoNoxa não havia falhado: o ser chamado pelo círculo na mão de Overim fez o que deveria fazer: tomou para si um espírito, mas não o do pinage – tomou o espírito que o acompanhava e mantinha seu corpo fechado, intocável.

O pinage sucumbiu, ao contrário de Overim que evoluiu e agora, embora não tivesse se dado conta, era ele mesmo como sua própria QaNai.

Mas de nada adiantava. Um remorso terrível caiu sobre Overim ao saber que tudo isso aconteceu por causa daquela simplória confusão das frutas no meio de QeMua.

Jio o alertou que saísse dali sem demora e foi o que fez. Correu da caverna queixando-se sobre sua imprudência, sobre COISAs que podia ter feito e não fez para resolver o problema com Marvam.

Overim nem chegou a entender por que daquela última vez o ataque havia surtido efeito. Também não pensou em como Jio havia feito para lhe conceder a Nai, nem por que ele fez isso justo quando poderiam ter descoberto o maior segredo de SeqaLi, o Utama que interagia com Zarath. Essas e outras perguntas importantes ainda não lhe haviam ocorrido, mas essa não era a hora; importante era voltar até a QeMua e informar aos anciãos sobre a cruel e infeliz atitude de Marvam.

Os dias haviam se passado tão rápido que ele não percebeu ter deixado de ir ao Vale das Preces no dia apropriado. Isso também pesou em sua consciência, mas era agora uma questão secundária.

Saiu atordoado de lá com MUITAs informações e questões a resolver, exigindo MUITO do cavalo, o que o fez parar mais vezes que pararia normalmente. Foi uma viagem longa, mas por fim chegou a QeMua e foi direto à casa de Filis. Filis estava na frente de casa e viu Overim chegando.

– Por onde esteve? Todos estão preocupados!

– Fui atrás daquele homem! O pinage!

– O que aconteceu?

– Descobri tudo! Foi obra de Marvam!

Overim contou tudo a Filis. Falava correndo, gaguejava, atropelava as palavras, estava MUITO afobado e aflito. Alef estava por perto e ouviu parte da história, o suficiente que estava vinculado ao nome de Marvam, e saiu à sua procura. Filis e Overim, que não o viram sair, foram até QoNoxa contar o motivo da tragédia. Conversaram longamente sobre o que fazer com Marvam. O caso era grave, outros anciãos precisariam ser consultados.

Enquanto isso, Alef foi até a cidade e encontrou Marvam, que sabia apenas da morte de Alepo e do sumiço de Overim, mas não imaginava que seu plano tivesse sido descoberto. Foi surpreendido por Alef enquanto negociava com alguém em sua quitanda.

– Você! Você matou meu irmão!

Marvam teve uma reação MUITO rápida jogando a barraca na direção de Alef para atrasá-lo enquanto corria para o meio do povo. Alef o perdeu de vista, mas continuou procurando. Pouca gente viu o que aconteceu e quem viu não deu importância. Voltando para casa depois de ALGUM tempo, Alef encontrou Luanda e Berim.

– Overim voltou. – contou cabisbaixo.

– Ele voltou? Quando? – perguntou Luanda.

– Ele está bem? Onde ele está? – Berim perguntou e seguiu com os olhos o rumo da casa de Alef, que foi para onde ele apontou.

– Ele descobriu que tudo não passou de uma vingança idiota!

Alef chorou. Luanda o abraçou. Berim, já de pé, foi seguindo rapidamente em direção à casa de Alef.

– Foi tudo culpa dele mesmo! Dele e daquele louco, o Marvam! – completou.

Luanda apenas o ouviu.

Berim, ao longe, fez sinais com as mãos. Favia chegado na casa de Alef e não tinha ninguém lá dentro. Luanda e Alef seguiram para lá. Os três ficaram esperando, lamentando e remoendo tudo aquilo outra vez.

Uma reunião foi feita com os anciãos e alguns líderes guerreiros. Foi decidido que Marvam seria julgado e, se condenado, punido com morte. Mais ALGUMas pessoas foram avisadas e todos saíram em busca de Marvam, com exceção de Overim e Filis, que foram proibidos desta finalidade por precaução. Os dois foram até a casa de Filis, onde pretendiam esperar até que o mandante do assassinato fosse encontrado e capturado. Ao chegar, encontraram Alef, Luanda e Berim, fartos da dor daquele assunto.

Luanda pegou Overim pelo braço e o afastou dali para fazer ALGUMas perguntas.

– Como você está?

Ela via as marcas em seu rosto e pelo corpo, via também o olhar abatido, mas sabia que ele era mais resistente e valente que o comum. Ele nada respondeu.

– Alef ouviu sua conversa com o pai dele. Ele está dizendo que a culpa é sua, mas eu não quis pedir explicações. Do que ele está falando?

A pergunta irritou Overim que não soube o que dizer e a afastou com o braço, indo quieto em direção à casa, onde estava Filis. Filis e Overim não conversaram com os três aquele dia. Até o cair da noite nenhum sinal havia de Marvam. O provável era que tivesse simplesmente deixado o lugar para nunca mais voltar. QoNoxa, pensando nisso, foi buscar Overim e o levou para sua casa.

Logo pela manhã, uma notícia bizarra chegou até QoNoxa: Marvam havia se suicidado no meio da cidade e deixado um recado escrito: FilucQoNoxa Boza MenVuli. ElatUag Vulioi, que traduzido é “o discípulo de QoNoxa destruiu minha vida. A pessoa errada morreu”.

O curandeiro foi depressa até a casa de Overim chamá-lo e em seguida foram até o local juntos. Uma multidão havia se aglomerado como não se via em QeMua havia MUITO tempo. A maioria estava confusa e horrorizada. MUITOs já acusando Overim mesmo sem ter informação ALGUMa sobre os fatos, enquanto outros comentavam alto que o louco das frutas “foi tarde”.

A única expressão no rosto de Overim foi de insatisfação e não escondia isso. Anciãos e outros homens tentaram dispersar a multidão e levaram o corpo dali, mas aquela imagem e a frase deixada não saíram mais da cabeça de todo o povo. Mesmo que Overim e QoNoxa tivessem todo tempo do universo e conversassem com cada QaFuga, um por um, explicando todos os detalhes da fatalidade, sempre haveria alguém disseminando exageros e mentiras, despertando o ódio e o medo, motivando contenda, assim como é em todos os lugares.

A pouca informação, a falta de explicação de Overim e o ódio secreto e profundo de Alef por ele foram a composição perfeita para que até mesmo Luanda duvidasse de Overim. Luanda começou a passar MUITO tempo com Alef, primeiro consolando e sendo consolada, mas depois era mesmo sua única companhia, já que Berim acabou por se desentender ficando do lado de Overim, dando a ele o benefício da dúvida. Por fim, veio o óbvio: Luanda cedeu às tentativas de Alef, que sentia-se MUITO ligado emocionalmente a ela. Para ela, foi apenas por ressentimento, a forma que encontrou de esquecer Overim, se isso era possível. 

Por outro lado, Overim a cada dia interiorizava mais a dor da perda do amigo e a culpa por não ter conseguido protegê-lo. Ele não treinava mais e QUASE não saía de casa. A antiga sensação cruel de solidão lhe alcançara novamente e, não bastasse isso, ele se remoía por não ter ido até o Vale das Preces no dia certo.

Num desses dias, com a ansiedade maior do que em qualquer outro dia, Overim foi sozinho até a estaca de Zarath e lá pôs-se a chorar e gritar enquanto segurava as argolas, puxando com toda a força. Um desabafo necessário, mas que o fez passar mal do estômago, que até pediu ajuda a Jio, que demorou a socorrê-lo, fazendo com que ele se lembrasse de algo importante que desde o combate com o pinage não havia refletido ainda: ele podia ter o controle sobre a Nai.

Nesse momento, Overim entrou em Modo Nai e continuou puxando as argolas. Deu gritos ainda mais altos, gritos de amargura e todo tipo de sentimento triste que alguém poderia acumular. Os gritos e a força demasiada exercida pelas argolas eram uma tentativa de alcançar alívio. Então, continuou e continuou, até que algo surpreendente e mirabolante aconteceu: a corrente se moveu!

Overim pensou estar maluco e imediatamente parou de puxar. Pensou várias COISAs tentando dar uma explicação razoável àquilo que sentiu e por um instante até supôs que fosse um possível tremor de terra que confundira com o movimento das correntes. Após segundos pensando nas hipóteses mais improváveis, tentou outra vez: segurou as argolas e puxou com toda força que pôde. Nada aconteceu. 

Não tinha mais aquela motivação anterior. Quem sabe até mesmo estivesse apenas imaginando COISAs, diante de tanto estresse. Uma COISA era certa, Overim dominava a Nai e nunca tinha ouvido falar de outro QaFuga que o fizesse.

Foi para casa fazendo testes diversos, enrijecendo partes específicas do corpo e tentando dar formatos e aspectos diferentes à proteção subcutânea, entre outras COISAs. Quando chegou em casa, tentou conversar com Jio, que já não o respondia fazia MUITO tempo. Insistiu BASTANTE, mas ele não se manifestou. Foi quando ele ameaçou trazê-lo para fora. Jio respondeu.

Os dois tiveram uma longa conversa, mas de poucas frases. No final das contas, Overim compreendeu algo incrível: qualquer QaFuga poderia exercer domínio sobre boa parte das funções da Nai, principalmente usá-la em luta. Mas as QaNai eram orgulhosas e egoístas, e apenas por mero capricho não concediam esse benefício. Overim achou aquilo tudo um absurdo; ter visto e ouvido sobre tantos de seu povo que morreram por não terem entrado em Modo Nai a tempo e saber agora que o motivo era meramente o capricho daquelas sanguessugas? Era nojento, asqueroso, difícil de suportar.

Algo mais lhe veio à mente: por que Jio não o deixou ouvir do pinage sobre o segredo do antigo Utama? O que estava por trás do acordo com o acsi? Que relevância isso teria para Jio ou qualquer QaNai? Overim bombardeou Jio com perguntas desse tipo, mas ele não respondia. Ele poderia ameaçá-lo outra vez ou simplesmente puxá-lo para fora, mas a ameaça não seria eficiente para sempre. Bastava para aquele dia.

Passou a noite pensando em todas aquelas novidades e algo maligno foi crescendo dentro dele. Pela manhã, já se sentia diferente. Saiu de casa cedo com uma missão. Procurou aquelas antigas crianças vizinhas que zombavam dele, que caçoavam, insultavam, batiam e riam. Encontrou dois deles e viu já tinham porte físico de homem. Apesar de terem a mesma idade, aparentavam ser bem mais velhos que Overim. 

Os dois rapazes estavam sentados em banquinhos na frente da casa de um deles. Overim passou por eles e os encarou até que um deles se irritou.

– O que foi? Perdeu o respeito, queixudo? Vai fazer o que fez com o Marvam?

Ouvir aquilo foi ainda melhor que o esperado. O ódio se apropriou de sua mente e foi na direção do rapaz com um semblante de ira tenebroso. Chegou com o rosto bem pertinho dele:

– Acha que ALGUM dia já tive respeito por um cretino como você? – sussurrou Overim, no ouvido do rapaz.

O rapaz afrontado sentiu medo, mas seu orgulho o fez dar mérito às suas ações de criança, ações específicas às quais Overim detestava se lembrar. Empurrou Overim com a mão direita, mas teve rapidamente seu braço torcido sem nem entender o movimento. O grito dele fez com que o outro se levantasse e tentasse acudi-lo, levando um chute na boca não MUITO forte que fez sangrar sua gengiva gotejando no chão e o afastando de Overim, que ainda torcia o braço do primeiro rapaz. Overim soltou o braço e deu um tapa forte em sua orelha, rindo em seguida.

– Foi isso que você virou? E você? É só isso que vocês têm para o amaldiçoado de cabelos vermelhos?

Mais gente passava por ali. Para os rapazes, era talvez o momento mais constrangedor e humilhante de suas medíocres vidas sem ação e sem importância, mas para Overim era o início de uma fase; o nascimento de um rapaz depressivo.

Overim ficou conhecido na vila toda por conta do incidente com Marvam. Cada ação sua – como a situação com os dois rapazes – tratava de moldar de forma MUITO negativa a opinião que tinha-se dele. No entanto, houve um desentendimento entre os QaFuga e moradores de um vilarejo não MUITO distante de QeMua que envolveu um episódio de estupro e assassinato que revoltou e uniu toda a vila em prol de uma ação em resposta à falta de atitude o governo do vilarejo envolvido. Anciãos e guerreiros traçaram medidas furtivas e acharam conveniente chamar Overim para essa operação. Todos estavam contando com ele, menos QoNoxa, que se opôs e não quis se envolver quando viu que a maioria era a favor de tê-lo como agente de QeMua. Porém, Overim recusou ajudar seu clã e desfez do pedido de um dos anciãos que foi pessoalmente convocá-lo.

Dias se passaram e Overim sequer teve vontade de ir ao encontro de seus sentimentos no vale. Não saber o que lá havia e tanta angústia no peito eram dessa vez fator de desmotivação, ao contrário de antes, pois não conseguia superar a depressão – ou não queria.

*****

Ailin também MUITO se angustiou por não ter ido até o vale enquanto foi a Novo Mundo, por isso foi outras vezes até lá, com esperança de que algo acontecesse. Afinal, não sabia o que exatamente esperar de todas aquelas informações que tinha sobre sua falta de memória. Mas havia um outro motivo mais forte do que antes. Ela, agora, sabia mais do que Overim, mesmo sem adentrar o Silêncio. Por isso, chegou a entrar no lugar outras vezes fora dos dias que Overim deveria aparecer. Obviamente, não encontrou ninguém por lá.

Ter ido ao vale no dia em que Overim não foi e ter esperado por tantas horas sem nenhum sinal dele foi algo extremamente confuso. O sentimento eufórico de alegria ao receber suas memórias no Silêncio não deixava que a tristeza por não vê-lo lá tomasse conta de si, ao passo que fora de lá, logo esquecia, e só assim não sofria.

Mas Ailin tinha algo MUITO importante a dizer a quem quer que fosse seu companheiro do vale. Como ela sabia que era disso que se tratava? Bom, um fator havia mudado o rumo de tudo e era importante que ela encontrasse Overim o mais rápido possível. Embora não tivesse encontrado Overim, pelo menos não sabia da situação em que ele se encontrava.

Em QeMua, o clima era de festa. O grupo ofensivo não teve baixas na operação e tudo se resolveu, mas Overim nem sequer sabia das notícias e MUITO menos dos detalhes. Seu pai nem arriscava incomodá-lo. O clã todo sabia que QoNoxa o estava treinando tempos antes e, portanto, provavelmente seria uma grande promessa para a vila. Contudo, ter recusado a convocação era uma afronta, um desrespeito e, além disso, vergonhoso para seu mestre.

A recusa de Overim foi desonrosa para sua família, fazendo com que eles discutissem, afetando intimamente a relação com seus pais. Perder o carinho dos pais e vê-los constrangidos pela sua atitude talvez fosse mesmo a única forma de fazê-lo acordar para a vida novamente. Ter chegado a esse ponto foi seu limite, mas ainda precisava de algo para desencadear uma reação.

Overim ficou MUITO aflito por ter decepcionado seus pais e começou tentar encarar as COISAs de uma nova forma, mas não foi algo súbito. Contudo, tudo mudou quando QoNoxa foi até sua casa num dia qualquer e pediu a Naité que para falar a sós com o rapaz.

– Oi, filho. Sou eu. – disse QoNoxa, entrando pela porta do quarto.

Overim estava deitado de bruços.

– O que quer? – balbuciou sem se mover.

– Olhe para mim enquanto eu falo com você.

O tom foi sério. Overim o olhou.

– Diga.

– Até quando vai se comportar como uma criança mimada? Tem ensinei tanto e… pra isso? Não importa o que diga, é impossível que esteja satisfeito com a tristeza que fez acometer seus pais.

O velho lhe disse MUITA, mas MUITA COISA. Nada foi agradável, mas MUITO necessário e ele mesmo sabia. Por ALGUM motivo, ele desejava ouvir aquilo, ansiava por aquilo, mas ainda assim por um momento se irritou com o ataque inesperado de palavras de seu mestre. Só não conseguiu interrompê-lo.

– Cale a boca! – gritou QoNoxa, quando Overim pareceu tentar dizer algo. – Vim aqui te mostrar uma COISA, não tagarelar indistintamente.

QoNoxa puxou da cintura o couro que protegia a NeixaOin. Tirou a lâmina da proteção e, segurando-a firme, pressionou sobre a mão de Overim.

A expressão no rosto de QoNoxa era péssima. Overim o observou e percebeu que apesar daquele horror que sentia, não era algo que lhe causasse tanta dor e tristeza quanto todo o mal que fizera a tantas pessoas que amava. Ter agido com arrogância e desprezo por tanto tempo, sob qualquer desculpa que fosse, por fim o envergonhara. Nesse instante, ele se lembrou de quem era.

QoNoxa não disse mais nada, nem se despediu. Guardou a lâmina e se foi. Overim passou longas horas refletindo e chorando na quietude de sua vergonha, mas no momento oportuno saiu e abraçou seus pais, pediu perdão e choraram juntos. Desabafou e contou detalhes sobre tudo, COISAs que mesmo antes da depressão não contaria. Estava agora de volta, de bem com a vida, pronto para finalmente usar seu talento em benefício de outros.

No outro dia, foi atrás de Berim e conversaram também MUITO. A próxima parada era a casa de Luanda, de quem estava com uma saudade gigantesca e torturante. Mas Luanda não estava em casa e sua mãe disse que era provável que ela estivesse na casa de Alef, e para lá foi ele. Ao chegar na casa, viu-a casa aberta e entrou, chamou por Filis e por Luanda, mas ninguém respondeu, avançou mais para dentro e passou pelo embaraço de ver e ser visto por Luanda e Alef deitados nus um sobre o outro no quarto.

– Perdão! – gritou, saindo de lá rapidamente.

Correu dali em direção à casa de Berim sem pensar no que estava fazendo. Poucos segundos depois, apenas levando o tempo para se vestir, Luanda saiu da casa de Alef.

– Overim! – chamou-o com a voz trêmula.

Ele parou e a esperou de costas. Assim que ela se aproximou, ele disse:

– Me perdoe, Luanda! Eu só queria mesmo me acertar com você. Eu sei que fiz besteira…

– Overim… – ela queria dizer algo, mas ele prosseguiu.

– Eu sei que eu fui um covarde e agi de forma estúpida, mas tudo vai ser como antes, eu…

– Overim! Escute!

Assim conseguiu que ele ouvisse.

– Nada mais é como antes, o Alepo morreu. Ele morreu! Não posso mais te ver, Overim. MUITA COISA aconteceu, você precisa entender.

– Eu também lamento pelo Alepo, mas…

– Você não entendeu. Vou me unir ao Alef.

O jeito como Luanda proferiu a frase foi claro: eles haviam firmado promessas, estavam noivos e viveriam como um casal num futuro próximo, assim como mandava a tradição QeMua, que, mais simples que os casamentos burocráticos de outras tradições, prezava apenas pela bênção dos pais e o desejo de formar uma nova família.

Overim não teve mais palavras e ficou apenas olhando Luanda, que lhe deu as costas e voltou à casa de Alef. Ele saiu dali lentamente, sem rumo. Apenas pensava em todas as vezes em que QUASE se entregou aos encantos dela, que tanto dava a entender que era isso o que mais queria. Todos aqueles momentos de intimidade do quais se lembrava pareciam agora mentira, pareciam mesmo COISAs só daqueles momentos, COISAs sem valor ALGUM. Todos os traços de arrependimento que tinha sobre ter negado os tentames de Luanda se foram. Só quando chegou em casa percebeu que aquilo também não podia abatê-lo e voltou à casa de Berim.

Eles não entraram nesses assuntos, antes, falaram sobre o rumo dos jovens aspirantes a guerreiros do clã. Berim estava mais forte e ágil, havia se empenhado nos treinos que sozinho continuou com QoNoxa durante todo aquele tempo. Berim estava até tentando ensinar três QaFuga, ainda MUITO jovens: Delam, Bard e Lia. Três jovens especialmente talentosos, que com pouca idade já haviam manifestado o Modo Nai, mas numa idade em que isso já era propício, não tão jovens quanto Overim era em sua primeira vez.

Overim foi persuadido por Berim a ajudar a treiná-los e no dia seguinte já começaram. O treino ao qual Overim os submeteu não era tão rigoroso como o que fora submetido por QoNoxa, e era mais específico, com um único foco: dominar a Nai. Overim passava a maior parte de seu tempo agora treinando com Berim e os três jovens, a quem contou tudo que sabia sobre a estaca, a lâmina e até sobre os pinages, mas toda vez que o assunto parecia ir rumo ao mistério da Nai, Jio o fazia parar de ALGUMa forma, fosse amistosa ou não. Com isso, ele não avançava em seu intuito, pois estava evitando qualquer tipo de perturbação. Assim, o foco dos treinos era a perfeição e requinte tanto do uso quanto da forma; do aspecto prático, mas também do estético.

Fazer aquilo ocupava MUITO de sua mente, só não tanto ainda ainda como aquelas lembranças sobre as idas até o Planalto Hakal e o problema com a perda de memória. Havia tanto mistério em torno daqueles assuntos, mas ao mesmo tempo Overim estava se esforçando MUITO para não sucumbir a nada, nem mesmo a essas lembranças e aos fatos sem explicação que havia passado. O dia em que normalmente iria para o vale chegou, mas os tantos receios e suas decisões extremas para combater o estresse e a depressão o levaram à conclusão triste e infeliz de que deveria continuar sem ir até lá.

Ailin, por outro lado, já tinha ido até o local inúmeras vezes, não só nos dias propícios e óbvios, mas ia sempre que a ansiedade a atacava; foram MUITAs vezes. Aliás, todos os dias acordava e lia o que ela escrevera: “ugif liuk” (“dalém vale”, um lembrete de onde deveria ir). Dia após dia, depois de ler a inscrição, abraçava a pintura ganhada de Overim e vertia em lágrimas tão aflitas quanto era possível sem compreender exatamente o que estava acontecendo.

Tanta impaciência provinha de algo importante que escondia de todos. Oilavo, Sane, Ainan, os conselheiros… ninguém sabia o que Ailin estava passando, ninguém imaginava o que ela poderia estar passando, mas todos sentiram mudanças em seu comportamento.

*****

No planalto, preocupados com as implicações que giravam em torno de Ailin, tendo em vista as profecias antigas, assim como o presságio e suposições de Tsaron, os conselheiros se reuniram secretamente com ele.

– Tem mais informações? Se ela se revelar um problema, precisamos estar preparados! – disse Moren, apesar de não crer que fosse o caso.

– O que mais descobriu sobre o que ou quem será o “poder estranho”? – perguntou Gotsen, a respeito do que mais o intrigava.

– Eu entendo a pressa de vocês e entendo que prezem pelas informações que colhi com MUITO esforço todos esses anos, como o próprio Poema Mordaz diz, “que dizer dos que observam o ministério do estudo com olhos de desprezo e pisam seu conhecimento com sandálias arrogantes?”, mas…

– Vá logo ao que nos interessa, Tsaron. – apressou Tsarat.

– Bem, o que eu quero dizer é que vocês poderiam MUITO bem estar com MUITO disso na cabeça também, todos os documentos estão à disposição de todos, não é? Sei que levaria ALGUM tempo para ler tudo e assimilar, mas seria MUITO mais fácil se todos vocês pelo menos já soubessem o que está escrito acerca de nosso passado e nosso destino.

– Concordo com QUASE tudo, Tsaron. Não concordo que as profecias tenham traçado nosso destino. Pelo contrário, eu as vejo como uma saída, um alerta que, se não nos servir de orientação, nos levará à ruína. – argumentou Moren.

Tsaron ergueu as sobrancelhas e coçou a cabeça.

Tsarat não via desse jeito, mas também achava que de ALGUMa forma as profecias eram uma direção, porém direção que apontava para algo certeiro, como se servisse de alento. Tsarat não se manifestou sobre o que pensava.

– Moren, se levar em conta que MUITAs profecias já se cumpriram e principalmente as que tinham ALGUMa previsão mais específica de data e olhar como é que foram cumpridas, verá que tudo leva a crer que Nuhat tudo calculou, inclusive suas intervenções.

– Vamos voltar à questão, Tsaron: descobriu algo novo? – insistiu Tsarat, dando alguns tapinhas sobre a mesa.

– Por que não repassamos o que temos? – sugeriu Gotsen.

– E o que temos? – perguntou Lansan, um dos conselheiros.

Todos olharam para Gotsen.

– Bem, sabemos que algo “estranho” fará Daxa tremer e que…

Tsaron o interrompeu:

– Por que está insistindo tanto nessa profecia, Gotsen? Ela é sobre outro assunto, é sobre Daxa e sua derrocada, não sobre nós.

– Tem certeza? Estou pensando sobre isso faz tempo e até me senti um tolo por não ter ligado as COISAs antes. Pra ser sincero, achei que só eu é que não tinha percebido ainda.

Ninguém entendeu nada.

– O que está querendo dizer? – perguntou Moren.

– Não está mesmo evidente pra vocês? Ora, a causa de nossa ruína parece ser a mesma da ruína de Daxa!

– Como chegou a essa conclusão? – indagou Tsarat.

– É simples! No poema profético…

– O Poema Mordaz? – questionou um dos conselheiros.

– Sim! Bem, o poema é sobre nossa família ter se afastado do que Nuhat esperava de nós, não é? Por isso diz: “dias com a Vida, dias com o Grande, já se passaram, não voltam mais”, diz também que teríamos um momento longo de paz, mas que isso apenas estaria encobrindo o futuro desastroso. E nos leva a crer que é isso que desencadeará a vergonha de Daxa, pois…!

Gotsen gesticulava quando foi novamente interrompido.

– Um momento! – disse Moren. – Tsaron, pode citar essa parte do poema?

Tsaron assentiu com a cabeça. Respirou fundo, pensou um pouco e, então, de cabeça, fez a declamação mais excitante e aterrorizante daquela parte do Poema Mordaz que eles ouviriam ou veriam em toda sua vida.

O silêncio assombrou conta da sala por infinitos cinco segundos. Até que os pelos das nucas declinassem para baixo novamente.

– Percebem agora? – provocou Gotsen, como se dissesse “é o suficiente pra vocês?”.

Todos ficaram atentos.

– Como ninguém notou isso antes? – contestou Tsarat, olhando fixo para Tsaron.

– Não entendi ainda, do que estão falando? – perguntou Moren.

– Nosso mais experiente linguista não anda lendo MUITO, não é? – gracejou Gotsen.

– “Último suspiro da chama”. – resmungou Tsaron.

– Como é?

Moren ainda não havia entendido.

– Sim! “Arde desde dentro, como fornalha, até que seu último suspiro solta”. A última frase da poesia está falando do mesmo elemento que Otsa usou quando profetizou sobre o oponente de Daxa. Excelente observação, mestre. Excelente!

– Então, nem você havia visto a ligação entre elas?

Gotsen se sentiu inteligente, mais do que era.

– Não, não mesmo. Mas agora me parece tão evidente!

A reunião continuou e tinham então novas informações e suposições para lidar. Alguns temiam a possibilidade de que as profecias apontassem para Ailin e insistiram que o pressagistas fosse falar com ela de forma apropriada, assim como o instruíram ali. Ele aceitou.

No outro dia, preparou-se logo cedo, mas foi até Ailin apenas ao findar do dia claro. Pediu a Oilavo para conversar com ela, mas pediu também que ele permanecesse presente.

– Ailin, você tem visita.

Ela logo veio, curiosa.

– Tsaron? O que houve? Aliás, o que eu supostamente fiz? – brincou Ailin, pois sempre que ouvia o nome de Tsaron era encrenca.

Tsaron riu, Oilavo mais ainda.

– Vamos direto ao ponto: sabe que MUITA gente quer você longe do planalto, não sabe?

– Presumo que sim.

– Conhece as alegações? Já pensou sobre elas?

– Conheço ALGUMas. Parecem tão distantes do que eu sou que procuro não pensar MUITO. Mas o que houve?

– Nada de mais, só achamos necessário que você soubesse de tudo que está acontecendo, todos os boatos e de onde eles vêm.

– Acharam necessário? Você e quem?

Ailin não deixou escapar o furo que Tsaron deu logo no início – um trapalhão mesmo.

– Ah! Bem, eu quis dizer…

– Vamos, me diga logo. Ou veio até aqui pra mentir?

O tom de Ailin foi seco o suficiente para que ele abrisse o jogo.

– Vou ser sincero. O conselho quis que eu viesse, mas eu concordo com os motivos. E…

– O conselho? – interrompeu Ailin, já com receio.

– Sim, não se irrite com isso. Tem COISA MUITO mais séria pra se preocupar.

– O que é mais sério que o conselho armando um esquema pra cima de mim?

Tsaron sabia que não podia deixá-la pensando assim sob hipótese nenhuma.

– Não é isso, Ailin. Me escute.

– Estou ouvindo. – disse Ailin, com aquele olhar sério.

– Eles apenas me enviaram aqui pra que você conheça melhor as profecias, pois acham que de ALGUMa forma podemos nos esquivar das tragédias profetizadas, isso contanto que seja possível desviar nosso caminho do erro também profetizado.

– Eu não acredito nisso. Mas de que profecias exatamente está falando?

– São MUITAs, na verdade. Vou lhe falar das principais. Uma é sobre um “poder estranho” que viria a nosso favor ou apenas contra Daxa, não sabemos. Outra delas é sobre aquele que o “desafiaria em campo aberto”, falando com certeza do mesmo indivíduo. Há então as relações entre as COISAs, como por exemplo a profecia sobre a “chama quieta” que de repente causaria revolta. O mesmo texto diz que isso começaria de dentro, e isso não é claro, mas pode ser significar que seja alguém da família. O detalhe é que a descrição dessa chama é idêntica à descrição da chama que castigará Daxa. Entende onde quero chegar?

Esticando o braço, Ailin fez um sinal gesticulando com a mão para que ele parasse de falar. Uma pausa para pensar. 

– É MUITA informação, já esqueci metade! – Ailin sorriu.

Oilavo riu sozinho, apesar do desconforto da conclusão que tirou do que ouviu.

– Não precisa explicar de novo. O que quer dizer é que o responsável pelo juízo de Nuhat sobre nós será o mesmo responsável por nos vingar do Vapor de Ferro? Mas isso não faz sentido!

– Não faz sentido, mas é o que os documentos parecem dizer, concorda?

– Posso até concordar, mas…

– Se concorda, – interrompeu Oilavo. – só tem que decidir se acredita nas profecias ou não.

– Exato. – concordou Tsaron.

Ailin pensou um pouco mais. Ansiosa, passava as mãos sem parar na face e cabelo. Oilavo estava também refletindo, em pé com braços e pernas cruzados, encostado na parede. Tsaron, sentado, baixou a fronte sobre as mãos fechadas com os dedos das mãos entrelaçados.

– Que silêncio fúnebre! – observou Ailin. – O que pretende que eu faça com essas informações?

– Bem, me responda o seguinte: o que faria se percebesse que as profecias apontam pra você?

– Não sei. Quais as possibilidades afinal?

– Me diga você mesma. O que alguém que preza por sua família deveria fazer diante de qualquer ameaça eminente?

Oilavo começou a rejeitar a ideia de tê-lo permitido conversar com Ailin. Não gostava de pensar no que ele estaria sugerindo, ou o conselho. Mas apenas observou. Ailin começou a divagar sobre as hipóteses:

– Acho que o certo diante da consciência de uma ameaça seria avisar o conselho, mas se é difícil se a ameaça for a própria pessoa que a descobre. Talvez, diante das profecias, deixar a família ou, como os mestres pensam, tentar mudar seu destino se for possível.

– E será que você…

– Talvez se matar… – disse antes que Tsaron terminasse a frase.

– Espere aí, Ailin. – se intrometeu Oilavo. – Que bobagem é essa?

– Se eu for mesmo grata à minha família e amá-la, devo estar disposta a morrer por ela. Não é isso que os valentes aprendem? Ainda mais se eu mesma for o problema.

Ailin disse isso num tom aparentemente tranquilo, mas por dentro algo a consumia. O motivo da tristeza tinha nome e endereço, mas nada disse sobre o que começou a deduzir.

– Acho que já está bom por hoje, Tsaron. Já está escuro lá fora. Vamos marcar essa conversa pra outro dia.

O olhar de Oilavo enquanto o convidava a se retirar foi mais convincente que as palavras. Tsaron, meio sem jeito, se despediu e foi até a casa de Tsarat contar os detalhes da conversa com Ailin. O conselho se reuniu com ele no dia seguinte e gostaram do rumo que a conversa havia tomado. Se deram por satisfeitos por um tempo.

Por outro lado, Ailin não estava nada bem. Não podia se estressar, por causa do seu segredo, mas com tudo aquilo em mente era impossível. Ela, ao contrário do que todos deduziam, tirou conclusões completamente diferentes sobre as profecias e não tinha nenhuma dúvida de que fossem sobre Overim, ou melhor, da pessoa com quem sabia que estava se encontrando dia após dia. 

Na verdade, fazia já um bom tempo que não se encontravam, mas Ailin só se lembrava disso quando adentrava o Silêncio. Lá dentro, não tinha dúvida ALGUMa: as profecias eram sobre Overim.

Fora do Silêncio, ainda que “não o conhecesse”, nem soubesse de onde ele era ou mesmo tivesse lembranças sobre ele, podia deduzir que ele certamente era a maior chance de cumprir as profecias do que ela. Mas apenas pensar sozinha sobre isso dificultava seus pensamentos. Ela sabia precisava de alguém para se abrir e, antes de resolver ir até Ainan, foi para o vale novamente.

Assim que retornou de lá, mais segura, mas já começando a perder suas memórias, foi ter com Ainan. Após contar todas as profecias que se lembrava e as relações entre elas, disse também:

– Agora pense comigo. Eu não sei o que acontece quando eu vou até o vale, mas sei que me encontro com mais alguém lá e, te peço, não me pergunte como eu sei, mas não tenha dúvida de que isso certamente é verdadeiro. Esse alguém MUITO provavelmente não é daqui, então é um estrangeiro.

– Ailin, não estou duvidando de você, mas é MUITO difícil engolir sua certeza de que há sempre alguém no vale te esperando no dia certo. Hoje esse alguém estava lá?

Ailin não tinha como saber e enfatizou a questão da memória. Depois, levou Ainan até sua casa e mostrou a pintura.

– O que acha que é?

– Ah, uma pintura…

– Quem você acha que é a menina?

– Parece você. Quem a fez?

O retrato era bem feito apesar do pouco material que o autor teve em mente, mas os poucos traços lembravam Ailin facilmente.

– Onde acha que eu o consegui?

– Não sei. Onde?

– Um dia eu voltei do vale com ele nas mãos. Só me lembro disso.

Bukie pôs os olhos em Ailin.

– Na verdade, eu só sei disso porque Bukie me fez lembrar. – sorriu mostrando os dentes para ele.

– Está querendo dizer que essa outra pessoa da pintura foi quem a deu pra você?

– O que mais seria?

Ainan se convenceu, mas ainda pensava que poderia haver outras possibilidades.

– Bem, vamos dizer que você esteja certa sobre isso. Sua única preocupação é que ele seja o escolhido só por ele ser estrangeiro?

Falando desse jeito, até pareceu bobagem da parte de Ailin, mas havia uma outra COISA que ela não podia revelar e buscou outros detalhes para argumentar. Ela só podia falar sobre COISAs que pudesse revelar, não queria contar um certo detalhe, decisivo em suas certezas, mas foi preciso.

– Na última vez que eu fui até lá, voltei com isso. – Ailin havia marcado a própria pele desenhando um QaFuga da forma que eles retratavam em sua tradição oral e seus relatos escritos: um homem estilizado com um círculo no ventre.

Quando Ainan viu aquilo ficou amedrontado de imediato. Começou a transpirar e rapidamente ficou ofegante. Fez de tudo para esconder o tremor das mãos, sem sucesso. Mexia o queixo com a boca aberta como se fosse dizer algo, mas nada saía.

– Entendeu agora? – perguntou Ailin.

– Ailin, sabe que isso muda tudo, não sabe? Tem que contar aos conselheiros!

– Não! Não posso contar. Não ainda. Preciso ter certeza sobre essas profecias, por isso te chamei.

– Mas qual sua dúvida? Por mais que alguns tutores tentem nos fazer achar que o problema com eles acabou, MUITA gente ainda tem tanto medo de um ataque QaFuga que não se pode nem pronunciar o nome da tribo sem gerar discussão! Agora você me diz que está se encontrando secretamente com um QaFuga que não conhece, num local sagrado e ainda tem dúvida de que a constatação da cena exata de terror que qualquer hakal descreveria sobre as profecias seja problema suficiente pra contar aos conselheiros?

Ailin mal conseguiu pensar no que responder e Ainan continuou:

– Por Nuhat! Agora eu entendi porque você tem tanta certeza de que a pessoa que você se encontra é a que cumprirá as profecias! – o que se seguiu foram várias meias frases com meias palavras, travando na garganta aos gaguejos e falta de fôlego.

– Fique calmo, Ainan, por favor!

– Ailin! Ele… ele…! Ele é um estrangeiro e a profecia diz que “o poder surgirá estranho e o fará tremer”, não é? Estranho de estrangeiro, e ele é estrangeiro, certo? A outra diz “chama quieta, que assim se espalha”, depois diz “arde desde dentro, como fornalha”, não é? É sobre alguém que tem uma COISA dentro, como um… sanguessuga? Ailin!

Imagine se Ainan soubesse que Overim era chamado de “foguinho” por causa da cor dos cabelos. Certamente desmaiaria.

A conversa entre eles durou ainda MUITOs minutos. Ailin tentava convencer Ainan de que precisava de mais tempo, enquanto ele tentava convencê-la de que era preciso levar tudo aquilo ao conhecimento do conselho. A conversa terminou sem que entrassem em acordo, mas Ailin não imaginava que ele fosse sair dali e ir direto entregá-la a Moren, o mestre com quem tinha mais intimidade.

Moren ouviu tudo e se espantou, parecia uma grande mentira. Seria possível? Foi com ele até Tsarat para que juntos se questionassem, mas ele estava com Tsaron. Moren esperou ALGUM tempo afoito que a conversa deles terminasse, até que julgou ser necessário interromper:

– Precisamos conversar agora, Tsarat! É sobre um QaFuga e é importante!

Tsarat e Tsaron se espantaram, pois estavam justamente conversando sobre esse povo. Quando Moren contou o caso, os dois ficaram pasmos. A profecia sobre a qual conversavam segundos antes parecia dizer que um QaFuga seria inserido no seio da família Hakal por um dos seus e que isso originaria uma nova guerra entre eles, causando a destruição de MUITOs de ambos os clãs. Isso estava na profecia de Otsa sobre o dragão e o verme – eles entendiam que o dragão fosse um haka, e o verme, uma QaNai. No impulso, foram até Secaji Diba conferir o quão próximo dos termos da profecia esta ocasião estava. Era difícil não se apavorar com o que leram. A parte que mais improtava dizia:

“E vi um dragão prateado que saía do sul e ia para o norte; e descendo o dragão prateado do céu, encontrava um verme; e o dragão prateado trazia consigo o verme, e havia paz entre dragão e verme. Mas havia um dragão vermelho e este dragão não compreendia. E houve confronto entre o dragão vermelho e todos os outros vermes; e os vermes eram mais nobres que o dragão, que pelo fogo de seu próprio conselho os matou a todos; vermes e dragão pereceram”.

Atônitos com o disparate de Ailin, planejaram uma forma de detê-la o mais rápido possível, sem que houvesse necessidade de agredi-la.

O conselho se reuniu pela manhã no dia seguinte para discutir os detalhes da missão já idealizada por Tsarat. Consistia em detalhes simples, porém cruciais, mas que se não feitos corretamente, com toda descrição e sutileza, se Ailin desconfiasse e a situação saísse do controle, poderia ser fatal.

Foram tão meticulosos que antes que clareasse o dia já estavam apostos em volta da casa de Oilavo para a operação. Lordi, o haka de Tsarat, foi posto a fazer sons peculiares a uma distância segura da casa, numa frequência que, sabia-se, só outros hakas e crianças conseguiam ouvir. Bukie ouviu, pensou em acordar Ailin e antes que decidisse alguém bateu à porta. Sane foi até lá atender, já que Oilavo não estava na casa, pois MUITAs manhãs saía bem cedo a fim de vender suas redes no primeiro horário, que considerava o melhor, na feira da cidade. Bukie foi atrás dela silenciosamente. A porta foi aberta e pôde enxergar lá fora quem era: Tsarat, que disse algo baixinho a Sane e apontou na direção de onde talvez viesse o som que Bukie estava ouvindo. Sane saiu pela porta e ambos foram para o lado apontado por ele. Bukie não se aguentou de curiosidade e saiu pouco depois. Não avistou Sane nem Tsarat, mas de repente foi surpreendido por Moren e Lansan, que, em hakiba, o imobilizaram e levaram rapidamente dali aos berros. Ailin imediatamente levantou e correu até lá fora desesperada, desnorteada por ter acabado de acordar.

– Bukie? Bukie! – gritava.

Tsarat estava com Sane do outro lado da casa a alguns metros.

– Me desculpe, Sane. Não queria que fosse assim.

– O que está havendo? – perguntou Sane, antes de correr para a porta da casa.

– Onde está o Bukie?

Ailin ainda estava sonolenta e seus olhos ardiam com a luz, mas tinha certeza de que algo ruim havia acontecido. Não demorou até que alguns outros mestres aparecessem.

– Ailin, precisamos que você venha conosco. – disse Tsarat, enquanto via Lordi se aproximar.

– O que fizeram com Bukie? Me diga!

Ailin parecia estar a um passo de explodir em raiva.

– Ele está seguro com Moren, não tem porque se preocupar. Mas precisa vir conosco. Pode fazer isso?

Tsarat mostrava-se calmo. Ailin estava confusa e sua vontade instintiva era de lutar contra todos eles se precisasse, mas não podia. Havia outro acontecimento que não a permitia agir instintivamente, o que facilitou a ação dos mestres. Ailin foi levada até a prisão do planalto, de onde certamente seria impossível escapar sem Bukie.

Sane foi atrás de Oilavo e os dois seguiram imediatamente para a sala do conselho. Provocaram confusão com os mestres que lá estavam, inclusive Tsarat, que precisou entrar em hakiba para mostrar que estavam levando aquilo MUITO a sério. Oilavo e Sane também entraram em hakiba, mas apesar do tumulto e dos ânimos exaltados, logo respeitaram a posição do conselho e acataram o pedido de Tsarat para que voltassem para casa. Saíram de lá agitados e angustiados, mas sabiam que Ailin não receberia injustiça ou precipitação. Só mais à noite um grupo foi com Tsarat até a casa de Oilavo explicar tudo que sabiam.

A notícia correu velozmente pelo planalto e a associação secreta de Ailin com um QaFuga gerou medo e revolta, levando um grupo grande de inconformados a se juntar em manifesto em frente à prisão. Parte do segredo de Ailin estava na boca de todo o povo, mas apesar de toda vergonha que sentia, a cada instante o outro segredo que guardava seguro fazia com que não se importasse com todo o mais. Ainda tão longe do dia seguro do próximo encontro, mas nenhuma expectativa de que teria chance de descer até o vale.

*****

Longe dali, Overim enfrentava problemas mais simples. Ele ainda sofria com os olhares presunçosos e comentários maldosos quando atravessava a cidade. Era difícil manter-se tão calmo, longe de encrencas, ouvindo toda vez as acusações terríveis que faziam sobre ele, que alguns até falavam em tom bem audível para afrontá-lo. Não eram só seus QaNai que concentravam dentro de si grande orgulho e arrogância, mas os próprios hospedeiros.

Alguns homens respeitados por sua bravura e qualidade em guerra, no entanto de caráter desprezível, estavam reunidos consumindo bebidas fortes já fazia ALGUM tempo quando Overim, Berim e seus três discípulos precisaram passar ali perto para comprar cordas, com os três jovens conversando alto e sem noção do volume.

– Mas que som irritante é esse? – provocou um dos homens. – Vejam, é o som dos amiguinhos da fagulha covarde!

– Não fale assim, você vai acabar se suicidando! – ironizou outro deles.

Os homens riram alto e Berim não se conteve:

– Calados, bando de beberrões!

Um deles se levantou, mas outro segurou seu braço, fazendo-o se sentar novamente.

– Se acalme, Berim. Não tem problema. – disse Overim, pondo a mão em seu ombro.

O homem que impediu o outro de se levantar, um barbudo, jogou a caneca que tinha na mão perto do pé de Overim e disse:

– Tem certeza que é para seu amigo que precisa pedir calma, covarde? Você matou o Marvam e o filho do artesão, e agora quer…

– Eu não matei o Alepo! – interrompeu Overim, virando o rosto rapidamente para o homem, silenciando-o por um segundo.

Os três jovens nesse momento já estavam alterados, nervosos e trêmulos, com suas QaNai alertas. Delam, o mais velho dos três, conhecia o mais debochado daqueles homens, pois era amigo do seu pai. Era a única COISA que o impedia de se levantar e causar confusão.

O barbudo já havia bebido MUITO e queria insistir na provocação, mas não sabia o que dizer, não teve nenhuma ideia. Então, levantou-se e foi em direção à caneca que estava no chão, MUITO perto do pé de Delam. Ao pegá-la, empurrou o jovem com o ombro. O homem que Delam conhecia levantou rapidamente e tentou prevenir que ele não iniciasse um conflito, mas antes que ele chegasse perto o suficiente Berim pensou que ele tivesse a intenção oposta e se colocou entre os dois. O homem alcançou o barbudo pondo a mão em seu ombro:

– Deixe os meninos pra lá. – disse com um sorriso no rosto. – Te pago outra rodada, vamos lá.

– Tire as mãos de mim! – esbravejou o barbudo.

Berim se intrometeu mais uma vez:

– Ouça seu amigo.

– Como é que é, COISA redonda?

Berim era ainda um pouco gordo, mas detestava quando era tratado assim. Overim viu que ele estava prestes a socar o barbudo.

– Não, Berim. – segurou firme seu braço. – Acalme-se.

– Não, o quê? A COISA redonda ia me devorar? – debochou o barbudo.

O outro homem tentou arrastá-lo de lá, mas não conseguiu. Outros homens se levantaram, ainda sem indício de suas intenções. Um deles, quando chegou perto, passou a mão nos cabelos de Lia. Bard bateu em sua mão – Não a toque! – gritou.

Overim passou o braço sobre os ombros de Bard e Lia que estavam mais afastados e os conduziu para fora da roda que se formou.

– Já chega, vamos sair daqui. – disse Overim, olhando para Berim e Delam.

O barbudo deu um chute na bunda de Berim, que não aguentou a provocação e o golpeou com vontade no rosto. 

Após o soco, o barbudo tentou também acertá-lo, mas ele desviou o rosto girando o troco inteiro acertando com o cotovelo em cheio na têmpora esquerda, derrubando o homem em cima de rolo de corda, já desacordado. Overim o puxou para trás, ainda com esperança de que pudesse evitar que a briga envolvesse mais gente, mas um dos homens chutou sua perna por trás na altura do joelho que o fez se desequilibrar. Antes que caísse no chão, puxou-o pela gola fazendo com que ele tocasse o chão primeiro e usou a força do puxão, e uma das mãos apoiadas ao chão, para rodar o corpo na direção dele, golpeando-o no peito, parando com um dos joelhos sobre seu ventre.

Levantou-se rapidamente e ficou entre os homens e Berim tentando afastá-los erguendo as palmas das mãos com os braços estendidos.

O problema era que apesar da briga ter sido iniciada por Berim, o alvo das provocações desde o início era Overim.

– Você vai sair daqui bem machucado, fagulha. – disse um dos homens.

O barbudo viu que os três jovens estavam em Modo Nai, mas não aparentavam ser bem evoluídos, pois não tinham tantas estrias e não engrossaram tanto a pele. Apesar disso, comunicou sua QaNai para entrar em Modo Nai, pois cria que seria atacado por eles quando atacasse Overim.

– Vamos ver o que o curandeiro te ensinou.

Os outros homens apenas observavam, pois achavam que poderiam facilmente com eles, mesmo com os três em Modo Nai. Afinal, eram crianças com suas Nai aparentando ainda um estágio simples.

No entanto, Overim não deixaria que os três se envolvessem em seu problema sob nenhuma circunstância e, já que parecia não ter outro jeito, a única forma seria lutar. Antes de ter certeza olhou para trás.

Berim não expressou reação.

– Faça! – disse Bard.

Os outros dois concordaram fazendo sinal com a cabeça.

– Mostre, Overim. – pediu Lia.

Foi o suficiente. Overim sorriu e voltou os olhos para aqueles homens lentamente. Overim entrou em Modo Nai, mas de uma maneira MUITO sutil que só ele conseguia. Sua Nai parecia ainda mais simples e menos desenvolvida que a dos jovens, que os homens nem sequer podiam notar. A primeira impressão que tiveram foi de que ele não estivesse conseguido auxílio de sua QaNai. Instantes depois, o barbudo atacou com forca aquela caneca na direção de seu rosto. Vê-lo se desviar com tanta facilidade e ainda rir, fez com que acreditassem que estava zombando deles, enfrentando-os sem o apoio da Nai. Um absurdo.

Overim estava decidido não só a lutar, como a fazer disso uma diversão. Ele pegou outra caneca. 

– QUASE! Quer tentar de novo? – ironizou, lançando-a delicadamente ao barbudo, que a agarrou no ar.

O olhar cínico de Overim deixou o barbudo MUITO irritado, que estourou a caneca apertando com uma das mãos.

– Não vai se esquivar da minha mão! – esbravejou.

– Mostre-me.

Não teve dificuldade nenhuma em se desviar dos socos e chutes daquele homem. Fez isso QUASE sem precisar sair do lugar, o que enfureceu excessivamente o barbudo, que já não estava no controle. Acabara de entrar em Modo Nai e pensava ser o único dos dois assim.

Também irritados, outros dois daqueles homens puseram-se a atacá-lo, fazendo com que ele precisasse desviar alguns golpes com as mãos e até segurar ALGUMas das pancadas. Assim, o barbudo conseguiu tocá-lo.

– Podem me avisar quando eu puder começar? – debochou Overim, fazendo vibrar os três jovens. A provação fez que os dois homens também entrassem em Modo Nai. De fato, eles não tinham como saber que Overim estava em Modo Nai também, já que falava normalmente enquanto lutava, mostrando estar sob controle.

Overim olhou para trás e sorriu, fez um sinal que Berim e os três souberam do que se tratava: ia manifestar a ZetaUzi (pele de metal) – técnica desenvolvida por ele. A forma que estava usando até então já era impressionante, mas essa agora seria a maior demonstração de controle da Nai que QeMua iria testemunhar por décadas.

Sua pele ficou extremamente lisa, que até reluzia. Somente Berim e os três jovens haviam vislumbrado aquela condição da Nai de Overim até aquele dia. A técnica era uma promessa da qual tinham visto apenas relances repentinos nos treinos de Overim. Para aqueles homens, foi algo tão surpreendente que até o temor lhes demorou a chegar. Antes disso, todos os homens o atacaram, sendo sete ao todo.

Depois de alguns golpes desviados, Overim começou a deixar que acertassem alguns. A princípio, acharam que estivessem conseguindo ser mais rápidos que ele, mas logo perceberam que era proposital. Ora, ele simplesmente parou para receber os golpes! Sua pele não tinha o aspecto do Modo Nai e eles ainda não compreendiam com que estavam lidando. Sem que percebessem, uma multidão havia se juntado em volta, mas numa distância segura, visto que a briga envolvia alguns dos mais perigosos guerreiros do clã, incluindo o seu principal e mais conhecido matador: Frezza, o maior responsável pelo êxito QaFuga na operação do episódio em que Overim se recusou a ajudar.

Frezza tinha braços MUITO fortes e seus golpes eram os únicos que estavam sendo perigosos de fato. Overim não se preocupou com a defesa, mas começou a golpear Frezza da mesma forma que era golpeado. Socava seus socos de frente e chutava de bico seus chutes. Gradativamente, Overim foi revelando a perfeição que atingira no controle de sua Nai. Sua pele já estava com aspecto exato de metal, a única diferença era a coloração. Mas os que estavam em sua volta (dentre adversários e expectadores) só puderam comprovar quando um golpe de Frezza rasgou parte de sua vestimenta, deixando-o somente com as calças, mostrando peito e costas reluzentes.

– É um demônio! – alguém gritou.

Pode parecer bobagem, mas a dedução ingênua e precipitada foi o que MUITOs ali pensaram e também amedrontou aqueles homens que com ele lutavam, embora isso também tenha os feito dar seu melhor.

Overim perdeu o bom humor. Havia tanto ódio naqueles olhares, tanta maldade, tanto orgulho nos “heróis” de QeMua, que tudo perdeu a graça. Viu que nem com o que havia alcançado seria visto de outra forma pelo seu próprio povo. Em meio àqueles ataques tão ferozes, quando todos ali esperavam que o tal demônio derramasse sua fúria, ele repentinamente baixou os braços, não queria mais aquilo. A pele que reluzia deu lugar a uma outra seca e estriada, como eles estavam acostumados – o Modo Nai bem executado, mas da forma habitual.

Deu um pulo para trás se afastando dos homens, olhou para Berim e os três, baixou a cabeça por alguns instantes e gritou:

– Chega!

Aos olhos deles, Overim parecia ofegante, com olhar cansado.

– Você começou isso, nós vamos terminar! – disse o barbudo.

– Foram vocês que começaram! – exclamou Delam, colocando-se à frente de Overim.

– Ele começou isso quando trouxe revolta a QeMua, quando se acovardou da convocação, quando causou a morte do filho do artesão – disse Frezza, que em seguida estapeou o rosto de Delam com as costas da mão.

É difícil dizer o que causou o que se viu em seguida e se foram as acusações de Frezza, talvez mais especificamente a terceira delas, ou se foi a agressão a Delam. O que importa é que, para a infelicidade de Frezza e os outros, Overim não estava ofegante, mas sim com um ódio crescendo no peito, um ódio tão voraz que precisava devorar algo, algo que se mantinha sob controle por ter sido posto a devorar sua profunda tristeza, mas que a partir daquele momento fez questão de não reprimir mais, e podia devorar qualquer outra COISA.

Overim ficou com um olhar perdido, procurando como direcionar e descarregar todo aquele ódio, frustração e a própria tristeza.

Vendo isso, Berim atacou Frezza em defesa de Delam, já que Overim não se movia. Houve um choque altíssono do punho enrijecido contra o antebraço do guerreiro. Berim estava forte, mas Frezza era superior e experiente em batalha. Após o impacto, usou as costas da mão novamente para estapear o rosto de Berim, antes de empurrá-lo para trás. Berim definitivamente não era páreo, nem o alvo.

– O que é isso? Quer morrer?

Frezza não queria nada com Berim, era Overim quem precisava ser humilhado.

– Morrer? – perguntou Overim, em voz baixa.

Todos o olharam fitados.

– Morrer? – agora gritou. – Você nunca mais vai matar ninguém.

A pele mais uma vez reluziu, desta vez para ser melhor aproveitada. Quando Frezza viu aquilo, se movimentou para avançar contra ele, mas o barbudo o impediu, queria vingar sua vergonha. Overim não deixou nem sequer que ele erguesse o braço, antes, saltou de onde estava acertando com o joelho em seu queixo. Por mais rígido e estável que fosse o Modo Nai daquele homem, o golpe de Overim foi como uma marretada sobre uma pedra. Um a menos.

Na sequência, os outros cinco homens envolvidos e mais alguns que chegaram depois também avançaram sobre Overim.

Ele não estava mais se divertindo, não se tratava mais de provar ALGUMa COISA; ele simplesmente não podia ver mais aqueles olhares, aqueles mesmos homens de sempre, os arrogantes de QeMua; precisava deixar um alerta gritante e inesquecível, uma lembrança que serviria aos próximos guerreiros da vila – um massacre sem o menor receio, assim como eles gostavam de agir.

Empregou toda sua fúria, manejada por toda sua habilidade, usando todo seu potencial belicoso contra aqueles homens, quantos fossem – não contou – e quem quer que fossem, dos quais, rapidamente, respirando permaneceu apenas aquele que escolheu ponderar.

– Só resta você, Frezza.

A pele de Overim ainda reluzia.

Frezza estava paralisado. Seus únicos movimentos resultavam do tremor de suas mãos. Overim não se sentiu motivado a continuar.

Deu um abraço apertado em Berim. De ALGUMa forma, seu amigo sabia que era uma despedida.

– Cuide deles. – olhou para os três jovens.

– O que vai fazer?

– Perdi meu lugar em QeMua. – disse Overim, sorrindo para os três.

Avistou QoNoxa chegando, ainda MUITOs metros dali, fez sinal com o punho cerrado sobre o peito curvando sua fronte em reverência ao maior mestre de todos. Correu para sua casa.

Lá estavam seus pais, sem saber de nada ainda. A breve despedida foi sadia, já haviam passado situações tristes juntos, com sensações terríveis, mas essa passava certeza, confiança, era libertadora. Mais difícil foi, depois, ver o grupo enorme de QaFuga vindo detê-lo, dispostos a matá-lo se preciso fosse, sem que de fato tivessem ALGUMa chance de fazê-lo, mas também sem encontrá-lo.

Retomado o caminho abandonado havia MUITOs meses, nem se lembrava quantos, veio o choro MUITO sonoro. O choro mais cortante de sua vida, mas também sua decisão mais importante: encontrar a menina de suas pinturas, de seus sonhos, de suas alegrias esquecidas – agora não tão mais menina – e encarar sua sorte com ela, enfrentando qual fosse o motivo que até então os impedia de uma vida juntos. Agora nada importava além daquela verdade, sua salvação.

Cada detalhe naquele percurso o fazia se lembrar de algo. Chegando perto da colina, avistou aquela rocha, ainda com as marcas de uma pintura antiga dele e de seu mestre; o choro escorria.

Ele se aproximava da estaca de Zarath quando percebeu que os homens se aproximavam dele, vinham em cavalos velozes, alguns já bem perto. Sabia que não devia prosseguir levando-os para o seu lugar, mas machucá-los não era mais sua obrigação. E eles não seriam páreo para ele. Sem saber ainda o que fazer, seguindo apenas seu instinto, decidiu arriscar uma COISA. Olhando a estátua do acsi à sua frente, de súbito, uma fé como que vinda de fora interveio sobre seu poder de efetuar, lhe deu autoridade para decidir e resolver. Sem entender por que, ele sabia o que fazer para tornar a iminente luta em algo desnecessário.

Overim, ainda com o choro audível, desceu do cavalo. Sem nenhum receio, sem nenhuma dúvida e sem hesitar, agarrou as argolas como nunca um homem havia feito. Toda a libertação por sua decisão, assim como toda sua tristeza pela despedida, embora também toda sua alegria no que lhe sobreviria no vale estavam sobre aquelas argolas. Não só isso. A maciez de seu controle sobre as amarguras e os medos – obtida pela virtuosíssima lâmina, o requinte e esmero de sua sensibilidade – adquirido no rio amargo e o envoltório sutil, porém constante, advindo do Silêncio, o tornaram um ser único. Tão único quanto a menina que o aguardava confiante.

Não sabia qual fim teria aquele ato, mas ele puxou. E puxou ainda mais. E agora já podia sentir o ranger das correntes enterradas no chão.

Os homens se aproximavam. Alguns já não mais sobre seus cavalos, porém, sem pressa para o que quer que decidissem fazer. Afinal, era inusitada a cena do jovem aos prantos segurando e tentando puxar as argolas, disposto a dilacerar seus braços por isso. Quão inusitado foi ver o distinto dominador da Nai, cujo fulgor da pele refletia o ardido brilho dos céus em seus olhos. Quão mais inusitado ainda – e assombroso – foi naturalmente não entenderem e temerem o tremor que se sentiu sob os pés, que aumentou, aumentou e aumentou, até que, num súpeto balanço imprevisto e violento: eis a barreira, jorrando feroz e impiedosa, atingindo os céus em busca do seu criador. Sim!

QeMua dos MUITOs guerreiros agora de rostos pálidos e dos corações saltando, dos olhos hiantes, das bocas babadas e respiração interrompida; dos oponentes irresolutos e das suas vozes que sumiram.

QoNoxa já estava ali. Esfregava forte o dente da hiena que nem viu que seu cavalo, o outro cavalo, que até pouco levara o jovem até lá, passara logo ali, correndo assustado. Com documentos antigos nas mãos, horas atrás se preparando para mostrar ao jovem seus temores, suas suspirosas deduções sobre quem seria aquele citado em tantas profecias, sobre quem carregava aquela extraordinária tarefa que infundia terror, o detentor da sina, do fado, dos intentos de Nuhat. Ainda não sabia o que simbolizava o dragão de suas tenebrosas visões, mas não teve dúvida de que era chegada a hora. Seu discípulo a quem preparara para os fins secretos do acordo com seu pai que não mais cumpriria e Overim jamais saberia, pois já tinha outra finalidade, redigida pela vontade da Fonte da Vida. Era o que tudo indicava.

As argolas agora voltavam à sua posição. A barreira, vista por todos ali apenas em ilustrações, se esvaiu. Overim deu seu último bramido e as soltou.

Olhou cansado para os presentes, seu olhar continha compaixão. Havia se tornado um grande guerreiro e sabia que podia matar a todos ali presentes. Aliás, todos nesse momento sabiam. O jovem deu as costas e retomou seu rumo descendo o rio lentamente, mas só até sumir por entre as árvores, quando retomou o ritmo de sua jornada, agora sem o cavalo, só com seus calçados de borracha de sempre, já desnecessários. Seguiu sem nenhum incômodo até o vale, e não pela falta de ALGUM, mas pelo foco. Sua vida como era se findara e uma nova o aguardava; não parou um segundo; foi-se, movido pela voz que nunca tivera parado de gritar em seu peito, a sensação que o arremessava para o seio de Ailin.

– Só mais uma noite! – dizia a si mesmo. 

Mais uma última noite no Silêncio e libertaria Ailin do peso de sua família e da culpa. Fugiriam, formariam finalmente uma família longe dali. Assumiriam a responsabilidade…. “Só mais uma noite”. Só mais uma noite e tudo seria perfeito, se existe a perfeição. “Só mais uma”.

Não sabia sobre as profecias dos hakais; não teve a chance de fazer ponderação ALGUMa. Assim, corria ao encontro do que cria que lhe aguardava. Ora, a ignorância não abala o que está escrito. Era por isso que se contava a todos.

“…Dragão, que pelo fogo de seu próprio conselho os matou a todos; vermes e dragão pereceram”

*****

Ailin se enfraquecia na prisão, afastada de Bukie que, lânguido, aguardava o desfecho da triste situação injusta. O conselho já havia pautado sobre os problemas que resultariam de um longo afastamento de Ailin e seu haka, mas o julgamento prévio sobre os atos da jovem se estendia devido à discussão fantasiosa mui inflamada sobre uma conspiração por parte da mesma.

Ailin precisava ver seu companheiro do vale, precisava contar-lhe algo deveras importante e, mais que isso, precisava sair dali e garantir a proteção deste seu segredo, um segredo que guardava em seu interior. Guardava-o lá de fato e não podia escondê-lo já havia ALGUM tempo, nem com a MUITA roupa das semanas anteriores. Não fosse o isolamento, tudo já estaria revelado.

O frio havia sido seu amigo, mas estava deixando a região. As tantas roupas, volumosas e ornadas de forma pertinente, se tornaram um incômodo que, junto à ansiedade da proximidade daquele dia, tornavam-se insuportáveis.

Um dos valentes às ordens do conselho que vigiava a prisão, em uma de suas espiadelas secretas, presenciou o que ninguém esperava. Saiu dali apressado, com olhos arregalados, pronto a entregar a notícia, mesmo que isso revelasse sua má e vergonhosa conduta. Encontrou Moren no caminho até a sala do conselho.

– Mestre!

– Que olhar é esse, meu amigo? – reparou Moren.

– Eu vi uma COISA! Não vai acreditar!

– Diga logo.

Moren sentiu um frio na espinha. MUITO surpreso e preocupado com as implicações da notícia, foi ter com os demais conselheiros. Já na sala, não se conteve:

– Ela está esperando um filho! Ailin! Ailin está esperando um filho! – disse em alta voz, sem pensar nos efeitos disso.

– Como sabe? Quem é o pai? – perguntou Gotsen.

– Ainda não sei, mas…

– Nem pense nisso, Moren. Não sejamos tão loucos em deduzir tamanha perturbação para nossa família. – interrompeu Tsarat.

– Mas e se for? – questionou Gotsen, já tão tenso quanto Moren.

– Não quero nem imaginar isso precipitadamente.

A porta estava aberta, alguém lá fora ouviu.

Enquanto os conselheiros discutiam e se preparavam para ter com Ailin acerca do que lhes foi contado, o rumor cresceu lá fora, se estendeu pelos ouvidos assanhados e houve desordem no planalto.

O conselho foi avisado, havia um manifesto em frente à prisão onde Ailin estava. Todos querendo tomar uma medida imediata de retaliação, vingando o nome da família Hakal, manchado pela detentora da Vesek Akruel, então enjaulada, mas, ao que sabiam, não sem motivo. Nada pior poderia acontecer do que descobrir que a eminente valente, metida num escândalo de conspiração, cujo perfil apontava negativamente para as profecias do clã, pudesse estar mesmo esperando um filho de um QaFuga. Se os mestres não fizessem nada, em pouco tempo a desordem alcançaria um nível sem volta. O ódio aos QaFuga veio novamente à tona e estava na mente, nas palavras e nos olhos do povo no planalto, o descontrole era iminente. Ailin sentia o perigo se aproximar. Não era a única COISA que se aproximava.

Overim não estava MUITO longe dali. Vinha com a mente completamente perdida diante da visão em sua mente, aquela que lhe inspirou as pinturas e que direcionou seu ânimo ao desconhecido, mas não incerto, Vale das Preces. “Só mais uma noite!”, pensava. 

Ah! Se imaginasse que corria na direção de um filho, um presente ainda não entregue, cuja mãe MUITO ansiava conhecer!

Ao avistar o vale, correu para dentro dele como se ali fosse sua casa, com MUITA naturalidade, sem nenhum receio. Tinha as melhores expectativas. Estava impossibilitado de pensar que pudesse estar sendo seguido por um grupo QaFuga depois de tudo que haviam presenciado horas atrás.

Entretanto, Frezza havia sido impulsionado a levar o grupo em perseguição a Overim por Alef, que fez uma cena escandalosa na vila exigindo que a bravura e lealdade dos guerreiros fossem postas à prova mediante as circunstâncias.

Após perceber que o rastro de Overim levava até próximo ao Planalto Hakal, o grupo QaFuga diminuiu a velocidade. Seguiram receosos até a encosta da montanha e de lá alguns mais sensatos não tinham certeza se deveriam prosseguir. A maioria transbordava o desejo de vingança; afinal, maioria essa que nem sequer viu a luta em QeMua. Alguns tão somente presenciaram a inesquecível feita do jovem, quando acionou barreira, mas o ódio e a motivação grupal os cegava, fazia-os afirmar que não tinha a ver com sua força ou destreza.

Lá do alto do planalto, o vigia daquele turno que cuidava a ponte avistou o grupo na encosta. Enviou seu haka que avisasse os líderes do clã imediatamente. Querendo mostrar ALGUMa valentia, o jovem vigia desceu até lá.

– Quem são vocês?

Nem todos o viram e poucos o ouviram, pois um burburinho havia se iniciado enquanto ele ainda descia até lá. Um dos QaFuga MUITO alterado pelo nervosismo foi na direção do vigia sem nenhuma comunicação com o restante do grupo. O QaFuga foi chegando mais perto e o inexperiente vigia ficou tão sem reação que não conseguiu nem pronunciar a frase travada em sua língua endurecida pelo pavor. Quando conseguiu se mover era tarde demais. O homem o pegou pelo pescoço e derrubou sua lança.

Faga omba? – gritou impaciente – Faga di QaFuga?

O hakal estava ficando sem ar e não entendia aquelas perguntas. O homem insistia em perguntar sobre o paradeiro de Overim, mas de todas aquelas repetições, apenas uma palavra chamou sua atenção: QaFuga.

Alguém no grupo fez com que Frezza visse a cena. Foi depressa deter o grosseiro homem antes que terminasse por matar o inocente jovem. Ao gritar com ele, soltou o vigia ao chão já QUASE sem forças, mas teve ainda condições de, sutilmente, sair quieto em direção à ponte enquanto os dois homens discutiam exaltados. Mal começou subir quando outros QaFuga, vendo que fugia, foram atrás dele por instinto, o que o fez correr demandando toda sua energia. Ao chegarem no começo da ponte, pararam temerosos, e o jovem continuou.

Em poucos minutos, uma multidão hakal tomada pela ira foi até a ponte querendo sangue QaFuga. Dentre os revoltos, havia MUITOs valentes. Os conselheiros ouviram os boatos sobre o grupo no pé da montanha somente quando uma grande quantidade de hakais já havia se deslocado à saída do planalto. Quando os primeiros hakais avistaram o grupo, o vigia apontou o dedo – eram eles. Correram enlouquecidos unidos aos seus hakas gritando furiosos e descontrolados.

A pequena parte do grupo QaFuga que estava ainda na ponte desceu às pressas se juntando aos demais. Frezza não teve como intervir, fosse com palavras (que ninguém entenderia) ou com gestos (que agitavam ainda mais os hakais). Mais uma batalha entre o clã QaFuga e a família Hakal se iniciara depois de longo tempo de paz.

Da prisão, Ailin ouviu comentários e gritos. Se angustiou, temendo que Overim estivesse dentre os QaFuga que lutavam. Precisava sair dali, precisava levar a notícia que mantivera em segredo por tantos meses, precisava descer até o vale e torcer para que ele lá estivesse, nem que fosse a última missão de sua vida.

Aproveitando o ensejo da bagunça, Bukie entrou sorrateiramente na prisão e se uniu a Ailin, que abriu com dificuldade as grades por estar sem a força que normalmente tinha. Ela correu até a ponte. De lá, viu a batalha. 

Seu esforço causou ALGUMa COISA. Ela ignorou.

Aquele também não era um dia qualquer, mas o dia memorial do Juízo de Nuhat que enfraquecia a influência do Silêncio. Assim como sentia-se inclinada a correr para o vale, cria que o mesmo desejo pudesse estar agindo sobre o dono de amor oculto. Foi inevitável pensar em Overim e que aquela ocasião talvez se tratasse do cumprimento de ALGUMas terríveis profecias; alertá-lo sobre isso era QUASE tão importante quanto fazê-lo saber que seria pai – e segurar o filho vivo no ventre.

Ailin, mesmo com a criança em seu ventre, desceu até onde a batalha era travada. Outra vez havia sido subitamente impelida a correr para o vale. Encontrou em seu caminho justamente Frezza, que botou os olhos nela e não tirou, depois de ver a curiosa Vesek Akruel, talvez mais assustadora do que o Modo Nai de Overim. Para o azar de Frezza, a semelhança não estava apenas no aspecto diferente. 

Ao se aproximar, Ailin sentiu um temor, colocando a mão na barriga, que a deixou numa disposição imediatamente ofensiva como nunca antes havia estado. O instinto de mãe pareceu ignorar tudo o que estava passando e explodiu em furor. O impasse entre os dois foi resolvido rapidamente, mas a duras penas.

Ailin venceu o assassino de QeMua. Com os braços MUITO feridos e a face ensanguentada com um corte perto da orelha, seguiu em direção ao vale, fazendo o que podia para espantar do seu caminho quem a atrasava. A violenta luta, a dor e o medo não podiam contra a felicidade que era pensar em encontrar seu companheiro de quietude e ansiedade solitária, que faria deixar no passado tanto sofrimento.

A cada passo, um oponente. Alguns eram apenas empurrados, outros destroçados pela destreza e determinação de uma mãe que protegia seu filho e de uma mulher em busca de seu amado. Estava QUASE lá.

A batalha toda estava acirrada e MUITOs corpos jaziam ao chão, compondo o cenário de ódio. Um cheiro forte de ferro estava cada vez mais forte; talvez fosse do sangue por toda parte. Via-se os hakais e os QaFuga, tão focados em sua animosidade que ninguém acreditaria que algo pudesse lhes chamar mais a atenção do que a batalha. E é assim que ele sempre vem. Quando nem os miseráveis agonizando no próprio sangue no chão poderiam imaginar algo pior, todos foram surpreendidos com o estrondo que, de repente, se ouviu. Um zumbido sutil, mas ouvido por todos e que subitamente aumentou, tornando-se como o sopro de um vento forte seguido de um trovão inesperado.

Rapidamente, tudo aquilo foi abafado pelo som da forte batida contra o chão. Todos sentiram. Todos, absolutamente todos empalideceram. Alguém gritou a confirmação que cada ser consciente presente sabia, mas não queria acreditar:

– Daxa!

Só então o cheiro extremo de ferro fez sentido. Cada coração ali presente mudou seu compasso. O ódio foi convertido em espanto e os golpes interrompidos no meio do caminho. A confirmação do horror veio quando ouviram o riso mais lúgubre que eles poderiam imaginar. O pavor se abateu sobre todos. QaFuga e hakais aterrorizados diante do Abominável.

E quando ele começa agir, não existe piedade.

O vigor de sua investida produziu elevado calor; um calor úmido com odor forte de ferrugem. Não, não somente o cheiro! O gosto da ferrugem impregnava a garganta. Que era aquilo? O Vapor de Ferro, surgido no pior dos momentos! Mas pior para quem? Era o que pensara Ailin, com um pingo de esperança.

Impossível não suscitar a lembrança das profecias e calcular o quão próximo dali estava Overim. Pensar que aquele que Ailin e QoNoxa concluíram ser o escolhido pudesse estar ali tão perto, tão pronto a interromper a ação do acsi. 

E enquanto um caos se estabelecia poucos metros do Silêncio, uma alegria avassaladora tomava os sentidos de Overim. O lugar o privava do caos a poucos metros dali. A alegria de estar de volta ao seu lugar, ao lugar de suas melhores lembranças, de seus melhores momentos, mas também o desejo irrevogável de sair dali de segurando a tão delicada mão e finalmente ouvir o tão imaginado som daquele riso sempre silencioso. – Ailin! – gritava, ainda que o som não irrompesse. O inflexível Silêncio o impedia de se expressar, mas o poupava do sofrimento de fora.

“Minha vida um silêncio,

silêncio que não mereço.

Ainda assim agradeço.

Mas anseio o próximo instante!

A chance de poder ouvir

da alegria um som constante!”

O Silêncio que silencia, mas que observa, que impõe, mas que compreende, que toma, mas que alegra. O Silêncio que agora exigia de si compensação.

Que alegria sentia! Pois bem! Lembrava-se de tudo: aquele sorriso, aquele cheiro, a suave pele, as macias curvas, tantos momentos de deleite, tantas sensações só ali descobertas… 

A deprimente alegria de Overim!

Segundos dali, Ailin olhava para o vale, desejando e esperando com toda sua certeza o momento em que o bravo se mostraria.

Precisou esconder o momento mais esperado, inserido no pior momento: a criança estava vindo. Era agora. Justo agora! QUASE perfeito; o pai ali tão perto!

Ailin precisou se esconder dos homens, mas não de Daxa – impossível. 

Tão perto, bastaria como que estender a mão…

Onde estás, Ailin? Por que demoras? Por que não vens? …Ora, por que não viestes? – Aquieta-te, Silêncio!

Ele viveu o silêncio!

E o que fez dele silêncio,

Agora gemia com tudo…

E o Silêncio, estava mudo.

Até eu, que vos narro, aflijo-me à luz daquele pensamento: “Só mais uma noite”. O suficiente para o cumprimento das profecias… Sim! Só mais uma noite… Não do final das profecias, mas do início delas.

O tempo no Silêncio traria o estrangeiro anunciado. Em breve, o riso de Daxa seria despedaçado, enterrado nas histórias antigas.

Na solidão do Eu, o Silêncio começava a restaurar algo que havia perdido. Mais uma noite e ele se manifestaria. 

—– (a água cochichava suas canções dançando entre as pedras)(e enquanto ele esperava no silêncio)