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Só Uma Breve Soneca: Entre Cicatrizes e Flores

Foi tudo muito rápido. Mal receberam o alerta e os capangas já estavam no quintal. Quando o sensor acusou, saíram pela garagem derrubando o portão. A arma comprada anos antes só foi lembrada tarde demais. Pela primeira vez, passaram pelo bairro sem admirar as buganvílias que tingiam as fachadas brancas dos casarões. 

 Isso é mesmo real? Júlia pressionou os olhos e retomou o fôlego; Jaime enxergou de canto de olho sua expressão e teve um calafrio.

Depois de tudo, uma coisa não havia mudado: o Barão nunca esteve ausente. Mesmo enquanto esteve preso, sua sombra sempre pairava sobre eles; um fantasma sorrateiro, rindo entre as cortinas, murmurando ameaças nos corredores.

A perseguição foi intensa. As ladeiras exageradas do Santa Teresa impunham uma única rota. Desde o estouro do primeiro vidro, Júlia só pensava na filha no ventre; Jaime dividia os pensamentos entre ela e a fuga. Uma pontada de culpa atravessou o coração. Se tivesse sido mais cauteloso; se tivesse planejado melhor. Cada solavanco, um aviso. E enquanto o carro serpenteava pelas ruas estreitas, o espectro implacável que já os assombrava por anos se aproximava.

Um disparo para cima mandava-os parar. Júlia cobriu a cabeça com os braços. O motor do carro gritava.

— Segura firme!

A curva fechada fez o estômago de Júlia revirar. O medo a sufocava, mas estava lúcida: agora era diferente; tinha Jaime, tinha o bebê. Tinha uma chance. O Barão havia levado sua juventude, sua inocência. “Não vai levar mais nada” – o mantra a mantinha firme.

Num movimento brusco, esfolou a lateral do carro em um canteiro de dálias. O toque suave no braço da amada tentou amenizar – um gesto familiar, um lembrete de que não estava sozinha. Quando sentiu na mão a cicatriz no pulso, lembrou-se das muitas pelo corpo. Memórias invadiram a mente dos dois.

Jaime se lembrou de tentar entender a sensação que Júlia descrevera sobre anos passados, quando olhava pela janela da mansão nas manhãs de primavera. A luz banhava o extenso jardim com sua serenidade ilusória, incapaz de aplacar o desprezo por aquele homem que, pensava, tinha lhe tomado a chance da maternidade. O único consolo vinha dos buquês de cipó alho que chegavam pela parede até sua janela no terceiro andar.

Júlia levou a mão no ventre e olhou para Jaime. Lembrou-se de como as coisas mudaram quando Jaime apareceu. Ele veio com uma esperança que ela não conhecia. Comprada, usada e, por fim, trocada, finalmente pôde ir atrás de verificar se seu útero ainda podia gerar vida. O desejo de ter um filho, de construir algo que fosse deles, era ao mesmo tempo tentador e aterrador. Quando o teste deu positivo, uma mistura de alívio e temor. Uma razão pela qual viver, um motivo para continuar e o medo de falhar. Helena estava vindo. Calma, minha florzinha. Uma nova estrela havia surgido no céu, brilhando só para eles.

Depois da violência, dos remédios e das drogas forçadas, a gravidez era um verdadeiro milagre. A nova vida estava só começando, mas o Barão era um presságio sombrio às margens da sua felicidade.

A elegância do bairro logo ficou para trás. Cada vez mais longe de casa, não conheciam bem aquelas vielas. A inocência não importava, eram intrusos em desvantagem. As ruas se tornaram um cenário de desolação. Latas de lixo se empilhavam; um monumento à decadência. O vento desfilava seu cheiro de desleixo, abandono. As janelas quebradas das casas eram olhos vazios observando a caçada com um silêncio cúmplice. O concreto rachado e as curvas fechadas pareciam comprimir o espaço que precisavam para escapar. A cidade não estava conspirando, só havia se acostumado.

O carro de trás derrapou. Os farois dos perseguidores ficaram para trás por um momento. Jaime aproveitou para fazer uma manobra arriscada, entrando numa rua que não conhecia. O olhar dizia “confie em mim”. Motor e luzes desligados. Ficaram em silêncio absoluto, apenas suas respirações ofegantes quebrando a regra. O ronco do motor se aproximou e passou direto pela entrada do beco. Deu certo. Júlia soltou o ar que nem percebia estar segurando. Jaime tocou sua mão; o gesto simples carregava promessas. No ventre, um chute suave. Ainda estou aqui.

Júlia tomou a mão de Jaime e a colocou sobre sua barriga.

— Ela tem um futuro lindo, Ju. A vida que não tivemos.

O passado ainda os perseguia; aquela era uma promessa pela qual valia a pena lutar. 

A distração não foi suficiente. Farois famintos os encontraram. Jaime só teve tempo de ligar o carro e os para-choques se chocaram. Lutou para manter o controle, as mãos suadas escorregando no volante. Saiu em disparada. Segundo turno.

— Será que isso nunca vai acabar? 

A fala abafada de Júlia fez Jaime engolir seco.

— A gente vai sair dessa! – gritou Jaime. 

Júlia segurava o cinto de segurança com força, os nós dos dedos brancos, já com dores no pescoço de olhar para trás. A outra mão pressionava a barriga. O carro os seguia de perto; os farois sequer oscilavam.

— Eles não vão desistir! 

No grito de Júlia, o pavor tomando conta da voz. A sombra sinistra do Barão era quase palpável.

Jaime apertava o volante, os olhos fixos na estrada, mas sentia o peso de tudo o que não conseguia dizer. Ele a havia colocado naquele pesadelo.

O barulho do motor ecoava como um grito aflito pela avenida vazia que acabara de recebê-los. A cidade assistia indiferente ao espetáculo, enquanto o céu negro e sem estrelas relutava em anunciar a tragédia. O medo deu lugar à súbita confiança. Mas a vida é um leitor sem paciência que vira a página de uma vez sem dar chance ao personagem.

Quando um brilho intenso vindo no sentido oposto o cegou por um instante, o carro serpenteou. Ambos os carros bateram. Vidros, ferro distorcido, cheiro de gasolina. Escuridão.

Um dos espectros do Barão se aproximou do carro com o calcanhar sangrando. Moradores saíram de imediato para confirmar o que ouviram. O incidente não venceu a sombra que, fugindo, deixou um rastro cruel. 

Júlia ficou desorientada. O vestido florido estava sujo, esfolado, manchado de vermelho. Apressou-se a pôr as mãos sobre o ventre e não sentiu Helena. Não sentia nada. A constatação precipitou-a numa dor que parecia arrancar-lhe a alma. Contorcia-se no asfalto, enquanto o sangue escorria pelas pernas. Viu-se sozinha; a pior sensação – a quebra de uma promessa. Uma mão firmou na barriga, a outra arranhava o asfalto tentando segurar a realidade que lhe escapava. Quando Jaime finalmente voltou a si, Júlia tremia delirante, com um olhar de desolação que ele jamais esqueceria. 

Naquele dia, o sonho acabou.

Júlia acordou horas depois no hospital. Não havia lágrimas, apenas um vazio. O horror que consumia todo o ar do consultório sumiu quando veio a confirmação já esperada. Depois que o médico falou, todas as vozes cessaram. O transe em que voltaram para casa permaneceu por vários dias.

Na primeira noite, não dormiram; houve só exaustão. Pela manhã, Júlia fez seu único murmúrio: “por que, meu Deus?”, olhando para o nada. Jaime emudeceu e apenas segurava sua mão, tão perdido quanto ela. Dormiram o pior sono de suas vidas, enquanto nem a chuva ousou exprimir seu pesar na janela do quarto — enviara seu vento de rude sopro.

No quarto ao lado, o berço vazio; suas paredes permaneceram geladas, sem conhecer o som do riso infantil. A pelúcia, intocada pelos dedinhos. Cada canto trazia a lembrança da vida que não viria. Enquanto Jaime não podia sequer olhar para a porta do quarto preparado para Helena, Júlia mal saiu de lá nos primeiros dias. A vida de Jaime voltou a não ter enredo; a de Júlia, um novo cativeiro para os olhos inchados.

Jaime sentiu que não suportaria sair de casa para sentir os olhares que a seguiam, carregados de pena e uma curiosidade mórbida. Na casa, se multiplicavam os vultos. Sabiam que capangas vigiavam o tempo inteiro. Mas havia mais.

O balouçar das cortinas da sala, delicadamente bordadas esperando a nova fase, parecia sem propósito. Eram fantasmas que não podiam ser removidos.

Outrora cheia de expectativas, a casa havia se transformado em um mausoléu. Cada objeto era um lembrete do que poderia ter sido e, agora, do que ainda poderia acontecer — o Barão ainda queria os documentos que estavam com eles.

Se, por um lado, sair de casa parecia insuportável, por outro, parecia inviável.

No sexto dia, Jaime se pôs a lavar a louça acumulada. depois que Júlia se trancou no quarto. Sozinho, ele já esfregava aquela caneca como se fosse o teste mais importante da vida quando encontrou uma mancha determinada a não sair. Com os olhos cada vez mais abertos — eu preciso limpar isso —, a pressão da esponja aumentou, aumentou e aumentou até o movimento perder o compasso e a caneca escapar, se despedaçando e molhando o piso. No quarto, Júlia tapou os ouvidos. Na cozinha, muitas gotas mais se juntaram ao chão.

Foi uma só a vez que Júlia pegou Jaime, de olhar opaco, encarando a gaveta do revólver. E uma só, a vez que Jaime viu Júlia, de gestos nervosos, segurando com mãos trêmulas a corda comprada para o balanço jamais feito. Cada palavra não dita se acumulava nos seus ombros.

Por todos os lados, excessivos detalhes das expectativas findas. Da esperança, só sua ausência. E a sensação da presença do Barão sufocava o pouco de vida que restava.

Os fantasmas se multiplicaram.

As paredes carregavam ecos de conversas não terminadas e inquirições não feitas. O piano não mostrava mais seu sorriso; compunha o ambiente funéreo. A música deu lugar ao chiado de uma rádio aleatória, na tentativa de que as notícias, quaisquer que fossem, afastassem a sensação de perseguição à penumbra.

A partir de um certo ponto, não havia mais comunicação entre os dois e o desconforto das assombrações internas da casa suplantou o temor do que havia lá fora. Mas Júlia segurava as lágrimas, o rosto endurecido. Por dentro, se perguntava mil vezes “por que comigo?”. Teve ódio do livro preto em destaque na estante; colocou-o no canto quase inacessível. Lembrou-se da vizinha que, semanas antes, perdera o filho atropelado por um bêbado; um menino feito, cheio de sonhos. Mas a minha filha não teve nem chance; nem pôde tentar

Jaime não aguentava mais, precisava superar e só não sabia como. Não se importava mais se estava sendo vigiado e seguido. Vagava todos os dias no mesmo horário perdido em algum canto da cidade sem avisar aonde ia. Júlia sentia-se largada, cercada apenas pelo som dos próprios passos e uma angústia crescente.

A vizinhança era ainda menos atraente; Júlia fizera amizades desde a mudança e guardou histórias que Jaime não se importaria em conhecer. 

A essa altura, os vizinhos já cochichavam pelas esquinas, alimentando fofocas sobre o casal. Diziam que Jaime estava com uma amante, uma moça jovem e bonita do escritório, “ela sabe, mas não faz nada”. Diziam que ela estava perdendo o juízo, que conversava sozinha pela casa. 

Foi em uma dessas noites que Júlia finalmente rompeu o silêncio. 

*****

Ao sair pela porta para esperar o retorno de Jaime, Júlia ouve um som vindo dos fundos. À luz da lua, ela se aproxima com sutileza e vê Jaime agachado ao lado de um buraco no canto do jardim, tentando posicionar uma lápide.

— O que é isso?

Jaime se assusta e deixa a lápide tombar.

— Não é nada, eu só…  — o olhar é de tristeza. — Eu preciso fazer isso, meu bem.

Júlia se deixa explodir e empurra com força o ombro de Jaime.

— Júlia, eu só…

Jaime não consegue completar a frase. Olha para baixo, em direção à placa caída. Júlia volta a falar:

— Um pedaço de pedra não vai trazer a nossa filha de volta!

Enquanto Jaime se abaixa para tocar a lápide, Júlia continua:

— Isso só vai fazer com que a ausência dela seja mais forte!

Jaime abraça forte a lápide suja.

— Não é um pedaço de pedra. É um sinal de que ela foi real, de que ela foi importante.

— Mas ela não está aqui!

— Se não fizermos isso, quem vai lembrar? — Jaime aperta os dentes. — Quem vai saber o que perdemos? Se não fizermos isso, daqui um tempo só nós saberemos.

Júlia cai de joelhos no chão e Jaime solta a placa. O murmúrio entra rasgando em seu peito:

— Isso dói demais, Jaime! Eu não aguento mais!

Júlia leva a mão instintivamente ao ventre e sente a marca que jamais sumirá.

Silêncio.

Ele a toca no queixo.

— Meu bem, a lápide é só…

— Ela devia estar aqui!

— E nós ainda estamos aqui, meu bem. Nós ainda estamos. Eu só… eu só quero que, de alguma forma, ela possa ser lembrada.

— Eu sei! Mas por que você não me disse? Por que não me chamou?

— Eu achei que você… eu… me desculpe!

Júlia olha mais uma vez para a placa, deitada sob a roseira que projeta a sombra de uma rosa sobre o nome em baixo relevo. Eles se abraçam.

*****

Quando Jaime e Júlia puderam aceitar o luto em voz alta e expor a dor um para o outro, a agonia brotou dos olhos e regou o túmulo vazio, como uma oração muda pela criança que nunca conheceram. A dor pôde ocupar o lugar certo. 

No outro dia, Júlia viu pela janela a vizinha descendo as escadas como quem carregava o próprio caixão. O semblante pesado de alguém que também conhecia a perda. A morte vai levar tudo isso aqui mesmo; ninguém está imune. Júlia suspirou, afundada na poltrona da sala até adormecer. Acordou com uma sensação sobre o que devia fazer. Foi até a estante buscar respostas. Dessa vez, não mais na literatura à qual se agarrara nos últimos  anos como uma tábua de salvação para seu mar de misérias. Agora, daria uma chance ao que Jaime tanto insistia, algo mais antigo que a poesia, tão antigo e tão implacável que só pudesse ser confiável. Pegou o livro velho do canto da estante.

Entre leituras pesadas e reflexões inexperientes, cada pouco parecia um passo importante. E numa noite, Júlia sonhou.

Encontrava-se em um campo sem fim, onde o horizonte era apenas uma promessa. À sua frente, alguém de aparência etérea se aproximou. A impressão fantasmagórica não era intimidante. A jovem, por inteira resplandecente, usava uma coroa de louros. E conversaram.

Enquanto Júlia sonhava e compreendia, algo acontecia fora da casa.

A pancada da porta contra a parede a fez despertar. Naquele momento, Jaime entrava com uma das mãos para trás, levado por um homem feroz, conhecido de Júlia. Assim que os dois chegaram na sala, entrou também o Barão. Júlia correu até lá e, de olhos arregalados, tentou entender o que estava havendo e se aquilo estava mesmo acontecendo.

Antes que o pavor tomasse Júlia por completo, Jaime se aproximou.

— Está tudo bem. Ele já vai embora.

O Barão não se aguentava em sua arrogância.

— Viu só? Não finja que você não tem mais nada a perder. Você ainda…

— Você matou a minha filha!

O outro sujeito apertou seu braço e o lançou ao sofá.

— Como é? Eu matei? Você matou a sua filha. E foi consequência de tentar me ferrar. Agora, pare com essa choradeira! 

Jaime levou um segundo para processar o que ouviu. Diante de si, apenas um homem. Só um homem. Levou a mão à parte interna do casaco. E o Barão continuou:

— Pare de pensar no cadáver do bebê que não nasceu, que nunca foi, que nunca será. E que, no fundo, não faz diferença! Ela nunca existiu e, mesmo que tivesse existido, seria apenas mais uma vida entre milhões, insignificante neste mundo sem sentido. Me traga logo os… 

Pela primeira vez na vida, sentiu-se o homem que sempre quis ser. Jaime assumiu o controle. O homem ao lado era… nada: a bala indiferente o acertou enquanto a outra mão de Jaime erguia-se para agarrar a garganta do Barão.

Jaime saboreou por alguns segundos antes de dizer:

— O que foi que você disse?

A boca do cano tocava a barriga; o Barão não ousava se mexer. Mesmo assustado e com a traqueia quase torcida, não pôde deixar de olhar para o ponto de onde veio a voz:

— Você está errado! — gritou Júlia.

Mais de uma década ao lado de Júlia, e o Barão não reconheceu aquele olhar. Ela não estava chorando, nem assustada. Jaime cresceu com a reação de Júlia; o olhar fixo fulminava aquele à sua frente. Sim, você está errado, seu verme. A minha filha não é insigni…

— Estou falando com você, Jaime.

Confuso, continuou administrando a pressão na garganta.

— O quê?

— Está errado sobre a nossa filha. Ela não é só uma memória. E se você quer voltar a viver, precisa entender isso.

— Do que você está falando, Júlia? Isso não é hora!

—  Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, que amanhã morreremos!

Jaime afrouxou a mão. Sabia de onde vinham aquelas palavras.

Antes que seu olhar tomasse outra forma, virou-se para o Barão:

— Vá embora daqui, agora.

O Barão saiu sem nenhuma palavra mais e sem olhar o fiel empregado ao chão.

As mãos de Jaime tremiam. Uma primeira gota tocou o chão.

Ele ainda não sabia ao certo o que havia feito, nem o que precisava fazer. Não entendia o que Júlia queria que ele aprendesse. E ela continuou.

— A Helena não sofreu. E ela ainda existe. Ela só nunca despertou — a voz tomou um tom delicado e sublime. — Quando ela entrou naquele corpinho, que ainda se formava, estava dormindo. Dormindo. Tudo que ela conheceu foi sonho. Você não precisa se preocupar com ela, nem por ela. Ela só sonhou. Helena nem sabia que tinha nome.

As pernas amoleceram. Jaime soltou o peso num dos joelhos em cima do sofá. Os olhos incharam. 

— E nesse sono, seu espírito se foi. Porque Deus não a enviou à Terra pra sofrer. Não, não. Foi uma alma especial, Jaime. A Helena é especial. Deus a enviou somente pra dormir. Só uma soneca. Um sonho rápido e a chamou de volta. Ele a quis de volta e ela voltou.

— Como… quem te disse isso?

— Do mesmo jeito que ela desceu, ela se elevou acima da Terra. Passou pela atmosfera, pelas estrelas no céu e entrou em uma luz tão brilhante que, pela primeira vez, ela acordou. Quando ela despertou, já estava envolvida em um sentimento de amor. Nós nem sabemos o que é isso, não é? Amor puro, incrível. Mas ela, sim. Claro que sim, ela era pura. Nunca fez mal a ninguém. Como poderia? Ainda não havia nascido. Nem foi enviada para nascer aqui.

— E nós já sentimos tanta falta!

— Sim, mas ela não está sozinha. Está em casa. Há gente lá com ela. Eles a amam. E quando Deus beijou a cabeça dela, quando Ele disse o nome dela, ela cresceu. É o que eu acho. Num piscar de olhos, ela se tornou perfeita. O corpo como teria sido no melhor dia dela na Terra. A idade perfeita. O auge dela. 

Jaime desabou.

— Vão contar pra ela sobre o papai aqui na Terra, sobre você, meu bem. E sobre a mamãe, que um dia também estará lá. Então, ela já está feliz. Vai ficar ainda mais. Será pura alegria por toda a eternidade. Em partes, não é isso que o Céu significa? Não mansões, nem rios de diamantes, nuvens de algodão ou asas de anjos. Seremos amados. E não estaremos sozinhos. É por isso que suportamos tudo isso nesta grande e triste rocha azul. Não estaremos mais sozinhos.

Um vento entrou suave; o céu, pintado de laranja e rosa, trouxe sensação de paz. Júlia tomou a mão de Jaime.

— Ela está feliz. Nós a amamos e isso nunca mudará.

Jaime sorriu e a puxou para mais perto.

— E eu a verei todos os dias quando olhar para você, até que a encontremos.

O cadáver ao chão não mentia: talvez um novo fantasma assolasse o casal. Mas a página já podia ser virada. Não em rendição, nem superação, só uma aceitação serena.

Os dias que se seguiram foram marcados por uma quietude peculiar. Não havia mais medo das palavras ou palavras presas na garganta, tampouco a necessidade do muito falar para o silêncio esconder. E Júlia pôde reorganizar o quarto: as roupinhas foram dobradas com cuidado e guardadas; a memória, preservada. Enfim, o breve descanso.

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