Estou sozinho; até meu psiquiatra me abandonou, disse que não vai mais atender seus pacientes, mas na prática me abandonou. Parece-me que é como as coisas se encaminham em minha vida: todos para os quais eu tenho algum apreço acabam por me abandonar. Isso me faz lembrar sobre um caso de amor — e por que não dizer abandono? Sobre o amor, eu conto agora; sobre o abandono, espero um dia esquecer. É um desses no melhor estilo “baseado em fatos reais” — não é essa a frase que usam nos filmes?
Aqui é bem real, um pedaço da minha vida. Foi inesperado, talvez por isso mesmo tenha sido tão arrebatador. Um mero encontro casual, acho que para os que acreditam nisso, foi destino. Trata-se do puro acaso de um encontro casual numa rua qualquer, ela colocava parte de sua mudança no carro, eu passava por ali apenas para cortar caminho por uma rua arborizada, enquanto tentava fugir de um calor escaldante e pensando que nada é tão bom quanto a sombra de uma árvore em um desses dias de verão infernal. Quando passei por ela, ofereci ajuda, não sei o motivo, talvez por educação mesmo, pois apenas percebi sua beleza depois que lhe dei a mão, pura gentileza de minha parte.
Ela aceitou e só então trocamos olhares. Lembro que a quatro mãos terminamos rapidamente, não sabia então o que fazer, como ela também continuou imóvel acabei por perguntar:
Quer um café?
Ela aceitou. Caminhamos em silêncio até uma cafeteria, meu coração batia forte, eu percebi que a situação era estranha e que seria importante dizer algo, mas nada saiu. Felizmente foram apenas alguns passos, o constrangimento foi breve, logo, cada um pediu um café e nos sentamos nesses banquinhos desconfortáveis das cafeterias.
Finalmente, fui então capaz de iniciar uma conversa, mas que, pelo menos inicialmente se pareceu com um interrogatório: nome, onde mora, ocupação… Porém, em algum momento percebi que ela não havia tocado no café. Ela seria então um pouco como eu, ou seja, alguém que não gosta de café, esse era meu desejo íntimo. Eu disse então:
– Eu não gosto de café. Até agora sequer molhei os lábios.
– Eu também não.
Ela sorriu, mexeu o café com a colherzinha e acrescentou:
– Mas no cardápio não havia outra opção.
– Não.
– Era só café, café, café…
Agora estávamos sorrindo alegremente. Meu coração palpitava, eu havia sido fisgado. Ficamos um breve tempo em silêncio, mas logo voltamos a falar. Foi assim que tudo começou. Nos encontramos mais vezes e logo estávamos juntos. Alma gêmea sempre foi uma coisa de adolescente, pelo menor era o que eu achava, e, então, vi-me com uma parceira, uma amiga, uma amante. Tudo junto e misturado, como dizem por aí. Lembro da primeira vez que viajamos juntos e no final das contas deu tudo errado. O táxi quebrou indo pro aeroporto, ou furou o pneu, algo assim, antes disso o ar-condicionado havia pifado e era um desses dias absurdamente quentes, em que o asfalto começa a ficar grudento.
Pegamos um segundo táxi, mas não sei se teve algum acidente ou talvez uma manifestação, mas estava tudo parado e por coincidência o ar-condicionado também estava quebrado. Resolvemos ir a pé. Foi minha idéia e, agora confesso, uma dessas bem idiotas, logo percebi após breve caminhada, tive certeza absoluta quando finalmente chegamos no aeroporto. Olhei para ela, cansada, suada e esbaforida, com tudo isso e apesar de tudo isso me sorriu de volta, como se minha idéia idiota pudesse ser relevada. Ou talvez fosse realmente amor, sim. Acho que sim. Daí havia uma dessas greves de sei-lá-quem no aeroporto e por isso demoramos horas para finalmente conseguir um lugar ao Sol, ou seja, um avião velho que chacoalhou o tempo todo com a turbulência. A companhia aérea perdeu as malas, no destino o tempo estava chuvoso e na volta a greve no aeroporto continuava. Mas só por estar com ela do meu lado, com aquele sorriso encantador, tudo valeu à pena, o nosso amor sempre valeu à pena. Ou aquela vez, quase casados, conversando na cozinha:
– Prefere pratos de inverno ou verão?
Nunca havia pensado em algo assim. “Eu apenas cozinho” foi a única coisa que passou pela minha cabeça na hora, mas, de repente, ali estava eu na situação de encarar minha baixa curiosidade em refletir sobre as coisas que faço. Eu apenas fazia sem pensar no que quer que seja. Um pouco constrangido com minha própria ignorância disse:
– Não tenho uma preferência. São várias receitas boas e nunca consegui escolher.
Ela por outro lado tinha uma posição clara sobre o assunto, gostava das sobremesas do inverno e dos almoços de verão. Compridas mesas no jardim ou em algum parque, toalhas floridas, guardanapos decorados, a leve brisa ou mesmo o ar parado, toda a gente reunida. Familiares, amigos, estranhos que se tornam amigos de ocasião, de uma única ocasião. Uma lembrança única, semi-escondida em algum canto da cabeça, talvez uma página do livro da vida ou nem isso, apenas um parágrafo curto, aquele dia, aquela mesa, aquele almoço de verão. Aquela salada russa, aquele frango grelhado, um creme de milho, um arroz, os acompanhamentos naquela tarde de verão. E não nos esqueçamos da limonada com gosto de infância. E por fim, uma torta de maçã, daí já é uma sobremesa de inverno, em um almoço de verão. “Licença poética” ela diria antes de experimentar o molho de tomate e sorrir com a descrição dum almoço de verão.
– No frio fica difícil montar um dia desses.
Sim. Ninguém vai querer passar frio, a mesa longa e vazia será pouco convidativa, uns poucos corajosos talvez apareçam. Mas e a comida? Logo esfriará, dai começa a garoar…
– É um desastre. Melhor ficar com o almoço de verão mesmo.
– Acho que sim.
– É o que digo. O molho está bom, se quiser posso colocar pimenta. Gosta de comida picante?
Não. Porém achei que soaria simplório demais, por isso disse, pensando em cada palavra, mas tentando soar natural ou ao menos não ensaiado:
– Acho que tudo deve ser dosado, pensado, nem sempre a pimenta encaixa bem. Não pode ficar insosso, é por isso que existe o sal, mas fora isso…
Parei de falar pois não estava soando bem, claramente escolher as palavras não estava dando certo. Mas ela disse:
– Sempre é possível suavizar a comida. Um pouco de leite ou creme de leite, quem sabe.
Ou evitar pimenta a qualquer custo. Teria que educar ela nesse ponto. Bem melhor comer sem pimenta.
– Pode diminuir a ardência de uma pimenta, basta mergulhar cada uma em uma vasilha com leite.
– E funciona bem?
– Claro.
– E esse leite depois? Serve para alguma coisa?
– Melhor jogar fora, porque se for beber, olha, isso, sim, é leite de macho.
– É.
– Nunca fiz na verdade. Mas farei, é bom experimentar. Dizem que funciona, mas apenas saberei mesmo depois que tentar.
Poderia falar também de outras coisas, das discussões sobre cinema, que se expandiam, lembro um dia quando ela perguntou:
– Melhor James Bond? Sean Connery ou Roger Moore?
– Os livros são melhores que os filmes.
– Isso é trapaça. Perguntei sobre os atores dos filmes.
– Sempre me chamam de trapaceiro.
– Coitadinho. Qual o favorito?
– Na verdade meu favorito é Timothy Dalton, não fez sucesso mas era o mais próximo do James Bond do livro.
– Gosto de Ian Fleming?
– Não. Acho que não gosto desse tipo de livo. E você?
– Gosto de filmes e Sean Connery é o meu favorito.
– Acho que serve.
– Claro! Mas as melhores trilhas sonoras estão nos filmes de Roger Moore.
– O quanto todo esse sucesso tem a ver com os roteiros? O quanto o ator pode melhorar um filme com roteiro ruim?
Conversamos sobre isso também, ela se saiu com uma frase única:
– Se os ovos estão perfeitos frite-os. Mas se a gema partiu faça-os mexidos.
A frase foi boa e encerrou a discussão, sem entretanto dar uma solução. E o roteiro? A pergunta ficou perdida no passado, sem uma resposta definitiva, apesar da frase formidável. Havia sempre algo mais, algo que só ela sabia, alguma curiosidade, comentário ou rumor, que ela encaixava na conversa e tudo ficava mais colorido:
– Dizem que a atriz era amante do diretor. Por isso ela está no filme, apesar de não ser o papel que ela costuma fazer.
Se isso era verdade ou não, pouco importava. Era uma explicação plausível, na maior parte do tempo só queremos isso. Poderia ainda contar sobre aquela vez que montei a cadeira e tive um probleminha com a perna esquerda, mas ninguém mais aguenta me ouvir falar sobre essa merda. Fiquei até com fama de chato. Quando entrei no hospital e vi o médico sorrindo sabia que tudo daria certo, mas daí ele ficou sério e percebi então que na verdade ele sorria para a enfermeira bonitona.
Sei que ele usou outras palavras porém a única coisa que eu entendi foi que eu havia sido abandonado. Na saída ouvi alguém comentar que era um lindo dia de verão, mas nada disso me importava pois minha esposa havia acabado de morrer.
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Plot Execução Escrita Estilo Desafio
O plot é bem fraco, até difícil de resumir. A exeução também não é lá essas coisas, mas os personagens são bem apresentados. A escrita tá muito zoada na pontuação. O estilo achei que deixou a desejar, porque, junto com a execução, deveria (imagino) causar o impacto do luto no leitor, mas não causa. Cumpre bem o desafio.