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Redemar

— Para estibordo! — gritava um dos meus tripulantes, tentando se agarrar ao mastro o mais forte que podia — depressa, capitão!

— Não dá, o leme não obedece! — gritei irritado, tentando me equilibrar sobre o piso escorregadio.

As águas hostis do mar aberto jogavam o navio de um lado para o outro, e junto da ventania impiedosa voavam mapas e roupas para fora do convés. Tentando me manter de pé, forcei a direção do barco para estibordo, mas o mar era violento demais, danificando a proa do navio e consequentemente o restante do leme. O céu era cinza, coberto pela cumulonimbus que causara a tempestade. Raios iluminavam os olhos dos tripulantes já desanimados a continuar.

Naquele dia, minha vida passou diante dos meus olhos. Minhas mãos doíam, e doíam muito, cada uma sangrando por causa da força para salvar meus companheiros. O frio que fazia arrepiou cada parte do meu corpo. O doce som das trovoadas que normalmente marcavam desafios divertidos havia se transformado no requiem de nossa morte.

Os baús adquiridos depois de tantas lutas simplesmente eram virados de cabeça para baixo e todos os tesouros rolavam rumo ao oceano. As moedas de ouro escapavam dos dedos daqueles que tentavam agarrá-las. Os colares de pérola se desfaziam num piscar de olhos. Relíquias antigas afundavam na água e no esquecimento, e tudo isso graças a ambição de um homem tolo, que arriscou a vida de cada um pela busca de um tesouro impossível. Então o mapa que tentei seguir escapou do meu bolso e voou diante de mim. O X que marcava a localização do nosso objetivo se desmanchou no meio da chuva, e foi ali que eu vi como as coisas viravam pó com facilidade.

— Uma rocha! Desvia logo, merda!

— O imbecil do capitão esqueceu como se navega e quebrou a droga do leme!

— Merda, capitão Zephyr, estamos ferrados!

Meu coração, acelerado como um espadarte, dera-me um prelúdio do que iria acontecer. Assim que o navio colidiu com a enorme rocha que tentávamos evitar pedaços de madeira foram lançados ao ar. Meu melhor amigo teve o peito atravessado por uma das pontas da rocha, seu coração fora arrancado para fora violentamente. Como se já não bastasse essa cena horrorosa diante dos meus olhos, meu amigo e primo foi arremessado em cima do pedregulho, morrendo na hora pela pancada. Meus tripulantes padeciam um a um e, de repente, anos de aventuras foram afogados junto com a alma de cada pirata. O navio que marcou tanto as nossas vidas se desmanchou em questão de segundos, tingindo de vermelho vivo o mar que agora havia virado sepultura dos meus amigos.

Com a costela quebrada, boiando numa das tábuas do que restara de um navio, vi ao longe a silhueta de uma pessoa que parecia me encarar durante alguns minutos. Minha visão turva me impediu de ver mais que um leve borrão negro no meio do oceano, mas por algum motivo ela não se aproximava de mim. O fio de esperança que ainda tinha foi lentamente se dissipando, e antes de finalmente fechar os olhos, sussurrei:

— Me perdoem… pessoal…

Aos poucos, o som das maré calma da costa encheu os meus ouvidos de paz, sentia a areia fazer cócegas em meus dedos enquanto o sol aquecia a minha pele morena. Sentando-me devagar, uma dor aguda pressionou minhas costelas, fazendo-me segurar o lado ferido no mesmo instante, mas para a minha surpresa estava enfaixado, sem as minhas roupas de cima. Ao conferir pela segunda vez notei que meu peitoral estava limpo de arranhões e cortes! Olhei para os lados e não vi ninguém. Estava sozinho na praia de uma bela ilha, isolada do resto da civilização, ilha essa que nunca havia visto em mapa algum mesmo com anos de experiência.

Limpei a areia do corpo e tentei me levantar, porém sem sucesso, minha perna também estava quebrada e aparentemente alguém lhe havia feito um péssimo torniquete. Para evitar pensar no passado, rastejei para mais perto do mar, sentindo a maré ir e voltar molhando minhas mãos. Ao olhar para o horizonte e não ver nada além de um céu azul e ensolarado uma lágrima desceu pelo rosto, havia perdido tudo que eu tinha, havia perdido minha noção de ‘eu’ da noite para o dia.

De repente…

— Quem está aí?! — virei bruscamente para trás, tentando adivinhar a origem do som que tinha ouvido.

Uma pessoa surgiu de trás da vegetação que marcava o limite da praia. Era uma mulher branca, de cabelos lisos e longos, negros como seus olhos. Segurando nas mãos uma tigela de barro ela paralisou ao me ver acordado, e mostrando-se assustada deu alguns passos para trás.

— Quem é você? Foi você quem fez tudo isso?

Ela não disse nada.

— Não vou ferir você, venha aqui.

A mulher não parecia saber ao certo o que fazer, seus olhos transitavam entre os meus e o horizonte logo a frente, sua inocência estava estampada em seu rosto como reflexo de sua doçura. Ao se aproximar, a jovem que aparentava ter uns 25 anos mostrou-se semi nua, com apenas algumas folhagens tapando suas partes íntimas mais baixas e deixando os seios amostra. Rapidamente cobri meus olhos e virei o rosto envergonhado.

— Pelo amor de Deus, vista-se, mulher! Tenha um pouco de decência!

Sem falar nada, tombou a cabeça e continuou se aproximando de mim como se não tivesse entendido minhas palavras, colocou a tigela no chão ao meu lado e afastou-se levemente em seguida. Tímida, evitava contato visual direto toda vez que eu olhava para ela, mas com sinais sutis da cabeça indicava que eu tinha que tomar o líquido do recipiente que entregara.

— Não ouviu o que eu disse? Vista-se, você não tem roupas? — o silêncio permaneceu — responda, mulher! Não tem língua também? E o que é isso que colocou nessa vasilha? Foi você quem fez todos esses remendos em mim?

A mulher decidiu então parar de me encarar e dirigiu-se ao meio da vegetação. Ali coletou alguns cipós e folhas e fez para si um sutiã improvisado, retornando à praia com seu caminhar desengonçado, quase como uma criança que estava aprendendo a andar. Desconfiada, sentou-se ao meu lado e observou o nascer do sol, dirigindo olhares curiosos a mim esperando que eu tomasse a sopa. Revirei os olhos e joguei garganta a dentro o líquido frio, saturado de sal e amargo que segurava nas mãos.

— Argh, que nojo, do que isso é feito? — perguntei, olhando para dentro do caldo — algas? algas e… o que é isso? pernas de animais marinhos? E por acaso usou água diretamente do mar para fazer isso? Você é péssima com tudo isso, não me leve a mal.

Com um rubor nas bochechas, a moça irritada jogou em mim um punhado de areia que caiu nos meus olhos e os fez arder, o que me fez derrubar a tigela para coçá-los. Então, além de ter os olhos vermelhos, havia ficado sem comida.

— Argh! O que deu em você?!

Ela mostrou a língua e cruzou os braços.

— Desculpa por ter zoado suas coisas, ta legal? Fui idiota, admito.

Era desconfortável como ela não falava absolutamente nada, apenas me encarava e encarava o sol se pôr, mas através de seus olhos negros pude ver o reflexo do crepúsculo revelar sua gentileza. A maneira como encarava o mar de maneira deprimida e evitava encostar na água era curiosa, para dizer o mínimo.

Com o passar das horas a jovem continuou tratando dos meus ferimentos, limpando meus cortes com água do mar e uma mistura pastosa que só ela sabia a origem. Me alimentava com aquela água que chamava de sopa e também me deu um cobertor de folhas para me aquecer.

Entregou minhas roupas superiores limpas e secas e também refazia o torniquete de tempos em tempos. Eu a orientava, dizia como fazer e com o que deveria fazer, e ela por sua vez seguiu minhas instruções sem dizer uma única palavra.

Não sabia se deveria confiar nela, mas algo em seus olhos me dizia para fazê-lo. Talvez fosse o modo como suas mãos tremiam ao se aproximar de mim, talvez por medo de minha pessoa ou só por medo de me ferir. Lembrei-me então da silhueta negra em alto mar e da coincidência de ter acordado em uma ilha isolada. No mesmo instante, rebati a mão dela com força, encarei-a assustado.

— O que quer de mim?!

Ela me encarou com os olhos doces, os desviou para baixo e se afastou com medo.

— Desculpa, eu só… não sei em quem confiar…

Parecendo entender minha situação, escreveu na areia a palavra ‘Isla’ e logo depois apontou para si mesma, esse era seu nome. Apresentei-me como Zephyr, ex capitão de um navio que perdera tudo que formava sua identidade. Logo eu e Isla nos tornamos mais próximos.

Conforme os dias se passavam, sentia meus ossos magicamente voltarem ao normal. A dor diminuía gradativamente e eu já conseguia caminhar sem ajuda. Aproveitando a melhora repentina, comecei a me prontificar para construir uma jangada. Isla apenas me tratava como sempre, evitando contato visual e sem dar uma pista sobre quem era além de seu nome. Evitou perguntas sobre sua história ou de onde havia surgido, negou ter outras pessoas naquela ilha além de nós dois e também recusou-se a responder o fato de evitar a água na minha presença. Apesar disso, nos divertíamos observando as estrelas, ela se interessava pelo monólogo das minhas aventuras e se mostrava preocupada com a minha depressão. Senti que Isla era uma boa amiga, pois além de gentil, seus olhos negros me cativavam e seus cabelos sobre o vento eram mais belos que as ondas do mar. Sentia Isla perder o brilho a medida que a jangada ficava pronta. Nossa amizade foi se fortalecendo e meus preconceitos com ela se anulando.

Certa madrugada, quando fui terminar a jangada, a vi contemplar o oceano de pé. Com passos lentos até o mar, antes de tocar as águas, ela me encara.

— Então, você está pronta para a despedida?

— …

— Muito obrigado por cuidar de mim.

Isla então entra na água. Suas pernas se transformam numa bela calda de peixe, com escamas negras que refletiam a luz da lua. Seus cabelos negros sobre a água, sua delicadeza em contraste com a calda de tubarão, davam a sua beleza indescritível um toque do meu passado. Ela deixa sobre a madeira uma concha arco-íris reluzente. Nela havia um bilhete que dizia:

“Ao amor que nunca poderei ter, boa sorte sem mim dessa vez.”

Pelo horizonte ela desapareceu, Novamente sozinho estava eu.

Guardei com muito carinho o presente que me dera,

Esperando pelo dia em que a veria em uma nova primavera.

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Plot Execução Escrita Estilo Desafio

Como o Luciano disse uma vez: “uma história de amor é muito vago, que amor é esse?”
Aqui temos uma história de amor, mas não é um amor romântico que o enredo nos faz acreditar quando no começo nos vemos com uma versão mais fantasiosa de Pocahontas; mas, sim, uma história de amor fraternal, onde duas pessoas se envolvem sem monopolizar. Nas palavras de Epicuro, é o máximo que a sabedoria da felicidade pode proporcionar na vida.
E, ao final, parece que o capitão Zephyr parece ter compreendido isso.
Há, no entanto, algumas inconsistências ao longo da narrativa; especialmente 2: os ferimentos (ele se diz curado na praia, mas aí ela continua cuidando dele por dias e depois ele diz que houve uma melhora repentina – se levou dias, não foi repentino) e tempo verbal (o conto troca do passado para o presente, mas isso é relativamente normal, eu só estou salientando aqui que isso aconteceu e acaba se destacando de forma negativa).
Nada que uma revisão não resolva.

Plot Execução Escrita Estilo Desafio

O plot possui uma ideia interessante, porém, alguns problemas do ponto de vista de lógica me quebraram a imersão. O maior exemplo é o evento incidente, que neste caso é o naufrágio do navio. Para quem entende de navegação, o naufrágio que foi retratado na narrativa foi pouco crível. Não seria um problema, afinal, este não é o propósito do conto, mas é este evento que faz com que ele “inicie”.

Portanto, no que diz respeito a execução, não gostei do personagem principal. Primeiro, porque ele é um péssimo capitão. Segundo, ele parece um babaca. Terceiro, acho que ele é viado, pois ser cuidado (ter os ferimentos tratados e ser alimentado) por uma mulher seminua numa ilha deserta e ainda assim reclamar é um péssimo sinal. Neste caso, um conto de amor, cujo efeito é causar a sensação do amor romântico, cujo personagem envolvido não gera empatia para com o leitor, não é uma coisa boa. Além disso, a mulher da ilha, parece um tanto quanto passiva em relação a este amor. Ela não oferece um desafio, não provoca e, portanto, não sinto a química do amor no conto, apesar da relação amorosa ser claramente retratada.

Do ponto de vista de escrita, ela é média. Acho que poderia ser melhor, mas entendo como um processo evolutivo, e todos temos essa oportunidade ao longo de nossa jornada de escrita. Eu posso dar várias dicas, mas, no final, a melhor dica que eu posso dar é: leia bastante; você desenvolverá muito sua prosa a partir disso. O estilo é pouco convincente, mas não me incomodou. Quanto ao desafio, eu não o considero como 100% feito, porque, um gesto de amor é diferente de um gesto de amizade, e muito do que vi aqui insinua o amor, mas não o confirma. Somente o final, e não sinto que a relação deles foi propriamente desenvolvida.

De resto, acho que é um conto válido.