Ele estava parado, fingindo comprar alguma coisa enquanto fitava ela, que se encontrava no balcão da farmácia. Eles se conheceram na noite anterior, em uma dessas baladas de meio de semana. Tiveram uma noite incrível, a química foi surreal. Ela deixou escapar onde trabalhava. Ele disse onde morava. Se perguntava se deveria esperar alguns dias, mas não conseguiu se segurar.
Hesitou por um instante, mas como já estava ali, achou por bem continuar. Pegou algumas pastilhas para garganta para disfarçar e foi até ela para pagar, como um cliente normal. O lugar estava vazio e os dois estavam praticamente sozinhos ali. Ele tentou manter a calma, mas já chegou dando um sorriso de orelha a orelha. Ela olhou com uma certa estranheza e retribuiu o sorriso, mas não na mesma intensidade. Ele ficou confuso. Será que ela estava disfarçando? Não tinha ninguém ao redor para perceber. Também não bebeu tanto assim na noite anterior ao ponto de não se lembrar.
“Tá lembrada de mim?” – Questionou ele.
“Deveria?” – Ela devolveu a pergunta enquanto analisava o sujeito, meio que flertando com ele.
Ele tentava decifrá-la, mas sem sucesso. Ela estava flertando com ele enquanto parecia não se lembrar de nada da noite anterior. Ele ficou sem reação e achou melhor não insistir. Apenas acenou com a cabeça e se despediu com um sorriso amarelo.
Saiu da farmácia desconcertado, ainda tentando entender o que tinha acontecido. Algumas horas depois, já em casa, acendeu um cigarro na varanda, para relaxar, enquanto assistia o pôr do sol. Ela se aproximou, e, sem falar nada, subiu os degraus da varanda, passou por ele e entrou, deixando a porta aberta e um rastro de perfume no ar.
Ele deu um último trago no cigarro, deixando a fumaça escapar devagar antes de esmagá-lo no cinzeiro. Seu semblante sério e introspectivo deu lugar a um sorriso de canto. “Que mina maluca.” – pensou, entrando logo em seguida atrás dela. A segunda vez foi ainda mais intensa. Ela dormiu no calor dos braços dele. E ele acordou sem saber se era um sonho, pois ela não estava mais ali.
Alguns dias se passaram, e não tinha um dia em que ele não passasse em frente à farmácia, mesmo não sendo parte do seu trajeto rotineiro. Mas ele não tinha coragem de entrar. Não sabia se queria dar continuidade ou deixar as coisas como estavam. Seus amigos o consideravam o homem mais sortudo do mundo, afinal de contas geralmente eram eles quem tinham que sair de fininho depois de uma noite com uma desconhecida. Ele queria se conformar, mas não conseguia.
No dia seguinte prometeu a si mesmo que não passaria mais pela farmácia, e assim o fez. Mas o destino lhe pregou uma peça. Naquele mesmo dia, cruzaram-se em uma esquina qualquer — um encontro impossível se ele não tivesse mudado de rota. Não sabia se a cumprimentava com entusiasmo ou se fingia indiferença.
Não conseguiu se decidir, e ela passou direto, como se ele não existisse. “Bom, é isso.” — pensou o rapaz, tentando aceitar. Mas não conseguiu. Deu alguns passos, mas algo o puxou de volta.
Precisava falar com ela.
“Espere!” – Disse o homem.
A mulher parou, meio perdida – “O que foi?”
Olha, tudo bem se não quiser mais nada, mas a gente não precisa agir como desconhecidos, né?
“Um simples ‘oi’ não mata ninguém.”
Ela olhou no fundo dos olhos dele com uma expressão vazia, semelhante à de antes quando não o tinha reconhecido. Parecia que ela estava vasculhando algum vestígio dele em suas memórias.
Aquilo não fazia o menor sentido, afinal, eles tinham se encontrado há poucos dias.
Depois de alguns instantes, que mais pareceram uma eternidade, o semblante dela foi mudando.
Enfim, aparentava tê-lo reconhecido. Não disse nada, mas sua expressão mudou completamente e ficou muito mais amigável, com um sorrido no rosto. “Eu moro aqui.” – disse ela, apontando para um prédio em que os dois estavam parados em frente.
“Você quer entrar para tomar um café?” – Perguntou ela, enquanto abria a porta do prédio.
“Eu tenho um compromisso daqui a pouco” – Respondeu o jovem.
Não seja bobo, é só um café” – disse ela, sorrindo e, mais uma vez, deixando a porta aberta.
Ela entrou e ele ficou ali, parado, observando a porta aberta. Cada fibra do seu corpo dizia que era hora de ir embora, mas ele simplesmente não conseguia. E, mais uma vez, ele entrou atrás dela.
A essa altura os dois já pareciam antigos amantes, com um conhecendo cada centímetro do corpo um do outro, seus gostos, seus desejos, medos e frustrações, ainda que tivessem se conhecido apenas há poucos dias. Foi a melhor noite da vida dos dois. E ainda nem era de noite. Conversavam amenidades enquanto ela repousava a cabeça em seu peito esquerdo. Depois de um tempo, ouviu o coração dele disparar. “O que foi?” – Perguntou ela.
“Droga”- Pensou ele. Estava tomando coragem para perguntar sobre o elefante nada sala. Foi denunciado pelo seu próprio coração. Queria mais tempo para encontrar as palavras, mas já era tarde. A pergunta dela foi um ultimato para ele, que tinha que falar.
“Olha…” – Ele hesitou.
“Fala logo.” – Encorajou ela.
Eu preciso saber o que tá acontecendo entre a gente, saber se de fato tem alguma coisa acontecendo entre a gente…”
“Como assim?”
“A gente se conhece e tem uma noite maravilhosa. No dia seguinte você finge que nem me conhece. Então horas depois, no mesmo dia, você vai até a minha casa e a gente tem uma noite melhor ainda. Você vai embora sem avisar. A gente se encontra hoje novamente, você primeiro parece nem se lembrar de mim e depois me convida para entrar.” – resumiu ele.
“Quero dizer, eu estou acostumado com esses joguinhos, não tem nada demais, mas você não acha que tá exagerando um pouquinho?” – ele continuou, questionando.
Ela não sabia por onde começar.
“Não me entenda mal” – ele tentou se consertar – “Não estou julgando nem cobrando você de nada, afinal, a gente acabou de se conhecer. Só quero saber em que pé nós estamos. Só quero saber se existe “nós” em algum sentido ou se isso é só uma coisa casual”
Ela levantou e, sem pressa, começava a se arrumar.
“Eu não estava fingindo, eu não lembrava de você.” – Explicou ela.
“Como assim, você tem algum problema de memória?”
“Sim.” – Disse ela.
Tipo aquele filme do Adam Sandler que a mulher perdia a memória todos os dias e cada encontro com ele era como se fosse o primeiro?” – Perguntou ele, brincando e sorrindo.
“Não, não igual a essa porcaria de filme.” – Ela mudou completamente o tom.
“Eu tenho Alzheimer.” – Respondeu ela.
“Alzheimer?” – Repetiu ele, quase em um sussurro.
“Você não é muito nova para isso?” A incredulidade dele era visível, mas algo no olhar dela o fez perceber que não era a primeira vez que ouvia aquilo. É uma condição raríssima. É como ganhar na loteria, só que ao contrário.”
Ele piscou algumas vezes, tentando processar. As palavras dela pareciam flutuar no ar, enquanto tudo fazia sentido de uma vez só. Olhou para a mulher, agora vendo tudo de um jeito diferente.
Como ele não percebeu antes?
“Olha, desculpa estragar o clima” – Ela começou se a arrumar com um pouco mais de pressa.
“Não precisa se desculpar. Você tem que ir trabalhar, né? Então a gente se vê mais tarde?”
“Não precisa fazer isso.” – Ela se virou para o espelho, arrumando o cabelo.
“Fazer o que?”
“Fingir que o que eu disse não foi nada demais.”
“Tudo bem, você tem Alzheimer, e daí?”
“E DAÍ?” – Explodiu ela.
E daí que eu não lembro o rosto dos meus pais? E daí que eu posso não saber onde fica o banheiro da próxima vez que eu precisar? E daí que eu não sei se a minha pizza de muçarela é com anchovas ou sem anchovas? E DAÍ?”
Ela tapou o rosto com as mãos, deslizando para a testa e jogando os cabelos para trás, tentando se acalmar.
“Quer saber?” – continuou ela – “Foi ótimo te conhecer, mas você não precisa fingir que isso é só um detalhe, também não precisa fingir se importar e por favor me poupe desse olhar de pena.
“Posso perguntar uma coisa?” – Ele levantou o dedo. Ainda estava deitado entre os lençóis.
Ela não disse nada, apenas colocou as mãos na cintura, esperando a pergunta.
“Se você não queria nada sério, por que me disse aonde trabalhava?” – Ele a indagou.
“Como assim por quê?” – Ela começou a se embaralhar.
“Eu tinha bebido bastante, não estava pensando direito e só estava jogando conversa fora, não tinha como adivinhar que você iria até o meu trabalho! E também…”
“E também o que?” – Interrompeu ele.
“E também eu gostei de você” – Murmurou ela, com a voz embargada.
“Quer saber?” – Ela colocou o polegar e o indicador na raiz do nariz e fechou os olhos por um instante, tentando se acalmar novamente – “Eu não vou fazer isso agora, tá? Olha, fica à vontade, a casa é sua, pode pegar alguma coisa na geladeira pra comer. Eu to indo, só vou pedir pra você deixar a chave debaixo do tapete quando sair, pode ser?”
Ela abriu a porta do apartamento e já estava de saída, quando ele, ainda da cama, falou:
“Esse foi o fora mais esquisito que eu já tomei.”
“Qual é, cara? Sério mesmo que você vai querer alguma coisa com alguém que daqui a pouco não vai conseguir nem se limpar sozinha?” – E saiu, fechando a porta atrás dela.
Aquele dia foi um dos mais longos da vida dela, mas não por causa do trabalho, esse correu sem novidades. Ironicamente, ela se lembrava de tudo sobre o rapaz e sobre o que aconteceu. Voltou para casa cansada tarde da noite, pegou a chave debaixo do tapete e abriu a porta.
Como era de se esperar, não havia ninguém. Olhou para a cama, para o sofá e para o restante dos móveis. O silêncio era ensurdecedor. Colocou as chaves numa tigela próxima à porta e deu alguns passos em direção ao sofá. Mas, antes que pudesse se sentar, a porta abriu atrás dela. Era ele.
Ele abriu a porta devagar, sem dizer nada no primeiro instante. Apenas ergueu os braços, revelando duas caixas de pizza. Uma com anchovas, outra sem.
Desculpe a demora… estava tudo fechado.” – Sua voz era tranquila, mas carregava algo mais. Um entendimento silencioso.
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