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Perna

No Quartel General de Mizzavel não entra mulher. Tudo é feito pelos próprios soldados ou aspirantes (estes muito mais que aqueles). Uma exceção foi concedida à Mestre de Cura Cessira.

Aconteceu que diversos soldados foram vítimas de uma poeira tóxica em uma emboscada. Ficaram irreversivelmente cegos. Pelo menos, era o que se dizia até que surgiu a figura da curandeira.

Desde então, vinha tratá-los todos os dias.

Não demorou para que um soldado se apaixonasse pela moça. Seu nome era Kamil e foi comissionado a acompanhá-la até seus aposentos, em um anexo do quartel, destinado a viajantes e outros prestadores de serviço.

Dali floresceu um romance, e com ele, fantasias, dentre as quais, uma relação carnal pareceu urgir.

A sala do sargento Serghaz, que, em missão, demoraria mais de um lunar para retornar, era o lugar ideal. O caminho até lá era seguro de olhares questionadores e não desviava muito a rota da ala de tratamento até a saída.

Não havia melhor ocasião para dar vazão aos desejos que inflamavam os enamorados.

No recinto, começaram a se servir dos prazeres do corpo do outro. E o fizeram por dias. Sobre a mesa, no sofá, no tapete, até perceberem a confortável e robusta cadeira do sargento, e decidiram que ali seria um ótimo lugar para o coito.

Contudo, a cadeira quebrou na perna esquerda traseira, durante o ato, lançando-os ao chão.

Kamiiiil! Eu falei que eu ouvi ranger!

Eu pensei que estava me elogiando.

Olha só, senhor elogiável, fizemos um barulhão. Será que alguém ouviu?

Fizemos barulhos maiores que esse. Se ouviram, vão ignorar.

E por que o fariam? Não são soldados?

É porque sabem que… – hesitou.

Como é? Sabem que estamos aqui?

Shiiiiiiiiiiii! Fale baixo, mulher!

Não fuja da pergunta! Podemos ser presos.

Acalme-se. Só por isso, não. Agora, vamos arrumar essa bagunça e consertar essa cadeira.

Toc, toc, toc

Kamil?! – perguntou uma voz de trás da porta – Tudo bem aí?

Tudo! Tudo certo! – gritou em resposta.

Cessira o olhou com reprovação.

Não se apavore. É um amigo meu. Pedi para ele me cobrir, por segurança.

Poderia ter me contado.

Não queria que se preocupasse com mais nada.

Como o quê? Alguém nos ouvindo gemer?

Estou certo de que pouco colaborei nesse sentido.

Piorou, Kamil! Saia de cima, quero ir para meus aposentos.

Será que não podemos terminar, antes disso?

O olhar furioso da mulher respondeu por ela.

Cessira, temos um problema.

Resolva logo, soldado. Já estou vestida e quero ir embora.

Eu já vou me vestir, mas olhe isso. Essa perna de cadeira estilhaçou-se. Não vai dar pra consertar.

Então vamos comprar outra.

Comprar? Repare bem, mulher? É uma peça diferenciada, toda chique, cheia de detalhes. Precisamos mandar fazer.

É verdade. E não vai ser esse o único problema. Essa madeira é viviltariana. Não sei nem se vamos conseguir achá-la na cidade.

Ah, vamos sim. Nem que tenhamos que entrar de casa em casa e pagar bem por qualquer pedaço. Faremos assim: vou levar a outra perna e, na minha folga de amanhã, vamos à cidade.

E retirou a outra perna traseira, com incomum dificuldade.

Huuum… faço em dois lunares! Oitenta moedas.

Oitenta? – questionou Cessira.

Dois lunares? – questionou Kamil.

Se eu me dedicar muito, em dez dias. Mas aí serão cem moedas.

Você está tentando extorquir um soldado? – perguntou a curandeira, tirando a insígnia do bolso do companheiro e exibindo-a.

Não sabia que era um soldado, meu patrão. Peço desculpas. Nem precisa me pagar.

É claro que vou pagar. O preço justo, mas preciso disso mais rápido.

Chefe, é que o difícil é conseguir a madeira. Aqui no Anel Mundo não tem. Teria que entrar em contato com meu fornecedor em Anéis mais interiores, provavelmente no Célico.

No Anel Célico? E isso só vai nos custar cem moedas?

Meu senhor, peço perdão. Vai custar mais que isso. Eu não sabia que era soldado. Eu ia entregar um material similar. Isso aqui é marovênia, senhor. Não nasce em qualquer lugar. Eu até sei onde tem, mas não vai ser barato.

Quanto?

Eu chuto entre mil ou duas mil moedas. Isso se tivermos a sorte de conseguir comprar.

E como sei que você não está me passando para trás?

É! – Cessira fez coro – agora a pouco você tentava nos ludibriar!

Eu não faria isso com um soldado, nunquinha. Tenho respeito pelas autoridades, meu bom senhor.

E só por isso vou fingir que não vi que você tentou ser pilantra.

Eu agradeço, nobre soldado. E garanto que não vai se repetir.

Tá, tá. Vamos ao que interessa. Se eu conseguir a tal madeira, consegue arrumar isso rápido?

No mesmo dia.

E fica igualzinho?

Acho que fica.

Acha?

Fica. Mas vou precisar de mais moedas, senhor. Vou precisar da ajuda de um especialista.

E por que eu mesmo não vou atrás dele?

Estou ajudando, senhor. E eu preciso comer, sabe? Deixa-me ajudá-lo e o senhor me ajuda.

Bata nele, Kamil! – Cessira sugeriu.

Só consiga a ajuda – Kamil a ignorou – e eu volto com essa madeira. Mas tem que ficar igualzinho. Onde é que eu compro isso na Célica?

Um artesão de lá se chama Zerleu. Diga que Hallicko o enviou. Ou melhor: diga logo que é soldado.

Sim, soldado. Tá aqui minha insígnia.

De fato. E o que traz um soldado ao meu humilde ateliê?

Oras, a perna da cadeira. Preciso replicar. Tem que ficar igual, então preciso da madeira.

É para fins oficiais ou particulares, senhor…

Soldado Kamil.

É da ordem de qual natureza, soldado Kamil?

É assunto meu.

Nesse caso, custará duas mil moedas.

Tudo isso?

Preço tabelado, veja só.

E o mostrou, em um códice pesado.

Bom, soldado Kamil, se fosse por questões oficiais, saiba que teria prazer em fazê-lo sem qualquer custo. Toda a cidade está muito agradecida pelo que fizeram e…

Desculpe, senhor Zerleu, estou com pressa. Vou arrumar as moedas e volto aqui. Por onde eu saio?

Um criado vai lhe acompanhar.

Como assim não tem? Você é um soldado. Quanto ganha um soldado? – Cessira perguntou, incrédula.

Eu deixei de ser cadete não tem nem um ano. Ganho duas mil e quinhentas moedas em um ciclunar inteiro. Você não tem nenhuma reserva? Quanto estão te pagando?

Nem me pagaram ainda. O acordo foi feito para que eu recebesse depois que curasse todos.

E falta muito pra isso?

Um pouco. Mais tempo do que temos. Mas andei pensando.

Comece a falar, mulher. Precisamos agir.

Eu pensei se alguém que ajudei não pudesse nos emprestar algum valor…

– …

Ninguém lhe vem à mente?

Talvez… Talvez o soldado Pafriaus. Ele é riquíssimo. E me deve um favor. Vale a pena tentar.

Rapaz, não é um valor pequeno. Mas eu não tenho problemas com isso. Uma vez que sua senhoria Cessira me ajudou a voltar a enxergar, eu a tenho em altíssima estima. Saiba que eu já pretendia procurá-la para agradecer. Não é um empréstimo, mas presente!

Tenho certeza que ela agradece, e eu também. Quanto àquele outro assunto, estamos quites.

Fico duplamente aliviado, portanto.

Não caçoe de mim, artesão!

Não posso fazer nada, senhor soldado. Não era assunto oficial. O senhor me assegurou. E eu tenho clientes. Alguém apareceu e comprou. E ainda pagou mais, se quer saber.

Quem foi?

Senhor soldado… não quero me meter em confusão.

Vou perguntar só mais uma vez. Quem foi?

Um soldado chamado Ranege.

Ranege?

Sim. Sabe quem é?

Claro que sim. Mas por que Ranege iria querer isso?

Senhor, eu só fiz as perguntas necessárias. Ele quis, eu vendi. Não sabia se você voltaria.

Não precisa temer. Agradeço a honestidade. Vou atrás dele.

Por favor, não diga que eu te contei. Eu posso me complicar.

Ah, por favor, digo eu! Não somos terrassecas, Zerleu. Mesmo assim, pode contar com minha discrição.

Karmil não o encontrou no quartel. Disseram-lhe que foi à cidade as pressas, mas não sabiam dizer onde. Teve um palpite e acertou.

Karmil?

Sim, Ranege. Acho que estamos procurando a mesma coisa. E você, Hallicko, onde está seu ajudante?

Desculpa-me, patrão. Não tinha ajudante. Eu precisei ganhar tempo para avisar esse soldado aqui.

O soldado Ranege deu-lhe um cascudo violento, fazendo-o choramingar. Apesar de desaprovar, Karmil não se sentiu, de todo, infeliz. O marceneiro era um salafrário e clamava por uma reprimenda.

Menas conversa, mais ação.

Menos. – corrigiu-o Karmil.

Tanto faz! Por que tá atrás de consertar essa perna, Karmil?

Eu que lhe pergunto. Se não foi você quem quebrou, o que está fazendo?

Ranege tirou os olhos da peça que vinha sendo lapidada e mirou Karmil, confuso. O gesto disse mais do que pretendia, e Karmil compreendeu a situação.

Diga-me, Hallicko. Quão resistente é a madeira marovênia?

Ah, chefe, é coisa muito sofisticada. Não tenho nada melhor aqui. Ela resiste a um disparo de arpão, e segura muito peso. Não sei falar certinho o quanto. Sei que é muito.

E mesmo assim, acabei quebrando. Que desastrado, não sou?

Desastrado? Não, chefe. O senhor teria que ter o desastre de um rochedo caindo da ribanceira na cadeira para conseguir quebrar sem querer. Ou ter um…

É melhor calar a sua boca, artesão. – Ranege o interrompeu – Trabalhe! E, Karmil, está tudo certo. Vou consertar sua besteira. Pode descansar.

Fico muito agradecido, Ranege. Eu lhe devo um favor.

E se retirou.

Quando voltou à sala do sargento, inspecionou a cadeira, que estava apoiada em livros, atrás da robusta mesa, aparentemente imaculada.

Levou pouquíssimo tempo até que percebesse a maracutaia. Tudo é muito óbvio quando se olha para a coisa certa.

Inicialmente, encontrou um furo dentro do encaixe, apenas na perna esquerda. Com uma pena rígida, descobriu que acionava um dispositivo, levantando a tampa. Havia uma espécie de espelho, protegido por um gradeado, logo abaixo do assento. Presumiu que Cessira traria luz àquele mistério e foi chamá-la.

Cubra isso! Eu não tenho dúvidas do que é. Venha, vamos sair daqui e você vai entender.

A moça continuou no corredor.

É um mirador.

Mirador?

Isso. Esse espelho está refletindo tudo que acontece aqui, em outro lugar. É obra de mais alta erudição. A manipulação, a preparação, a execução… sei de pouca gente que consegue fazer funcionar. Por isso, o objeto foi deixado de lado.

Nem todos.

Nem todos.

O soldado Ranege foi condenado. Constatou-se que ele passava informações aos inimigos do Reinado, os terroristas terrassecas. Quando fazia manutenção no mirador sobre o assento, cometeu um deslize, que possibilitou ser descoberto.

O sargento Serghaz chutou a perna esquerda traseira do tamborete em que o traidor se apoiava com a corda no pescoço, e Ranege foi enforcado.

Suas últimas palavras:

Não serei o último.

Quando questionado, Karmil não escondeu como descobriu tudo que se passava. As circunstâncias exigiam que ele se entregasse e sofresse a devida pena. Contudo, sua astúcia não foi esquecida e atenuou seu castigo.

O Quartel usou a cadeira com o mirador para passar informações falsas aos inimigos. Muitas outras emboscadas foram evitadas.

Em segredo, e como uma exceção, foi concedido o direito do soldado Karmil tomar Cessira por esposa. A moça aceitou, e celebraram bodas em festividade reservada.

Cessira, de fato, se mostrou excelente no ofício, e não houve sequela entre os soldados que ela tratou. Depois de poucos lunares, findado o trabalho da moça no quartel, na calada da noite, ela partiu, e nunca mais retornou ou deu notícias.

Inconsolável, o soldado Karmil teve que viver com as lembranças martelando-o constantemente. Isso porque o sargento Serghaz, péssimo em lembrar de nomes, chamou-o de Perna, e dali em diante, passou a ser conhecido pelo apelido.

Soldado Perna. A paixão inconsequente, a fortuita descoberta, o êxito militar decorrente e o abandono. Capítulos que transitaram entre cume e vale na vida de alguém, paginado nas histórias da guerra. Essa, especialmente marcada por uma perna esquerda traseira de uma cadeira.

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Plot Execução Escrita Estilo Desafio

Acertos: A leitura foi divertida. Esse é o grande objetivo. Você é bom em manter o tom dos seus textos. Na primeira leitura eu já entendo o tipo de conto, sua ambientação, suas referências literárias. E, mais importante de tudo, você segura meu interesse rápido: é uma história de amor proibido. A progressão é boa. O final é impactante. E tem ainda um pós-clímax engraçado, com o apelido do soldado abandonado.

Erros maiores:
a) CORTES ABRUPTOS ENTRE CENAS – Tem que melhorar a progressão de desconhecidos para amantes na introdução, talvez só descrevendo em um parágrafo a forma como o encontro de olhares evoluiu para um toque de mãos ao organizar o material médico, que culminou na constante tomada de riscos desnecessários por um amor proibido. Você não precisa de mais de três frases pra apresentar esse link. Mas entendo que vc foi limitado pelo número de palavras, e que esse conto já está velho.
b) FALTA DE SUBENREDO – Eu senti que a história ficou muito plana. Talvez colocar outro desafio no desenvolvimento elevaria o TUDO-OU-NADA que precisa constar nos contos para que o leitor continue interessado na leitura. Eu pessoalmente colocaria alguém cuja amante do soldado recusou os avanços tentando sabota-los, ou algum problema magico, ou algum monstro impedindo o conserto da perna da cadeira.

Erros menores:
c) PALAVRAS ESTRANHAS – Problemas pontuais com a seleção de palavras, que tira meu cérebro da história para olhar para uma palavra que me causou um estranhamento desproporcional.
b) DIÁLOGO CIRCULAR – Os diálogos realmente estão ruins. Pense mais no cenário e posicione melhor os personagens de uma forma que eles possam dizer menos e evidenciar mais a mensagem. Faça o personagem sentir a leveza no saco de moedas ao ouvir o preço ou soltar uma risada amarga. Isso já é suficiente para entendermos que o preço é proibitivo.

Plot Execução Escrita Estilo Desafio

Plot: Achei engraçado, gostei.
Execução: 2 protagonistas bem construídos; boa ambientação; a trama avança bem, mas com uma barriguinha no final.
Escrita: Muito boa pontuação; bom palavreado.
Estilo: Os diálogos não são tão naturais quanto poderiam; o narrador tá legal.
Desafio: Gira completamente em torno da perna da cadeira.

Plot Execução Escrita Estilo Desafio

Vou começar pelo ponto que acho mais fraco, que é a dinâmica dos diálogos. Apesar de bem escritos, poderiam ser mais voltados para uma ação contínua, quando o diálogo inicia, a sensação que dá é que as coisas ficam estáticas demais, sabe? Falando de execução, eu adorei, mistura fantasia com intriga e, mesmo assim, não perde a leveza ao longo da narrativa, que é bem estruturada. A escrita é boa, mas eu acho que os diálogos muitas das vezes são uma bengala para o escritor, e eu tenho que denotar que algumas coisas poderiam ser mais sumarizadas através de ações e subtexto (apesar de também sofrer disso na minha escrita). O estilo é bom, e gosto do cenário construído e, mesmo com diversos elementos, o autor não tarde em voltar-se para o desafio.