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Paradigmas, paradoxos, paraquedas

Quando chego, vejo o sangue no chão.

Em silêncio e por instinto, desconfio. Aliás, por treino.

“Parabéns mais uma vez”, diz Ugo do outro lado da rua – colega de trabalho. Tem sido um dia bom.

Minha serenidade habitual quase não me deixa perceber a tempo que aquela, ao chão, parece a bolsa da Victória – não a favorita. Permaneço cético. Estou vacinado contra o afobamento.

A rua está movimentada, o que me diz que, seja o que for, aconteceu agora mesmo. Ajo com calma e reflexão, porque é o meu costume. Ok, ok, e também porque pessoas conhecidas estão por perto. Não quero atrair olhares. Rayahn e Luciano, que caminharam comigo até ali, já estão a cinco metros. Uso de cautela para me abaixar, recolher a bolsa com respingos de sangue e abri-la com toda discrição. Vou evitar olhar muito para os lados.

Tento me lembrar da última conversa que tivemos, poucas horas antes, no horário do almoço da repartição. “Saindo daqui, vou passar naquela feira de artesanato; depois, pra casa”. Isso não era comum, mas não desconfiei. Ela sempre ia direto porque era o horário mais seguro daquele trajeto.

Dei mole. Mas me recuso a pensar que ela tivesse dito isso para me despistar e ido a outro lugar. Não dou motivos.

Preciso forçar minha memória, pois não me é comum olhar dentro das bolsas de Victória e não tenho certeza do que esperar. Inspeciono com receio de encontrar certas coisas. Contudo, me surpreendo: está quase vazia.

Um arrepio lento me pega, mas eu jamais o deixaria transparecer de forma alguma. Minha imagem é importante, sou referência aos meus familiares, amigos e vizinhos. Não é à toa que são leais a mim no trabalho. Me esforço por merecer.

Cerro os dentes e aperto os olhos por dois segundos. Me viro e vejo que ninguém por perto notou nada de diferente no meu jeito.

Ainda não posso crer que é o que parece. Tiro o celular do bolso e o coloco de volta. Não quero criar teorias. Jamais cairia numa armadilha mental desse tipo. Estou atento. Fabrício atravessa, se aproxima e sorri. “Bom fim de semana”.

Ignoro. Respiro fundo, entro no condomínio. Não deixo Alfredo, o parasita da portaria, notar nada; nem Ugo, que esbarra em mim. “Foi mal”. 

Sei que devo ser meticuloso lá dentro. Minhas mãos estão um tanto trêmulas enquanto pego aquelas chaves – presente de um ano de relacionamento.

Primeiro, bato. Victória não responde. Ligo para ela e o celular está desligado. Temos um combinado: isso nunca deve acontecer de propósito. Outra pessoa, agora, estaria entrando em parafuso. Não eu.

Ainda assim, nem sinal do seu paradeiro.

Dentro do apartamento, olho com mais atenção para o único item dentro da bolsa: um bonequinho de crochê. Não há como não perceber sua semelhança com Antônio, do setor da Victória. Algo ruim, bobo e excessivamente conspiratório passa pela minha cabeça; tão conspiratório quanto as teorias anticientíficas da Internet que ele costumava nos mostrar e debochar.

Continuo encarando o boneco por dez segundos.

O suor escorre; a respiração, mais forte. Sinto uma leve confusão e sacudo a cabeça.

Saio do apartamento e cruzo com Hiel, o paraibano – ou paranaense, sei lá –, que tenho a impressão de ter rido sutilmente para mim. Ou de mim. Sei que não devo parafrasear o não dito, mas quase digo algo que não combina comigo, se não estivesse bem na hora enchendo os pulmões devagar até o final. Me vem à mente que talvez ele saiba de alguma coisa. Limpo o suor da testa, aperto forte a cabeça do An… do boneco e, com pressa, desejo voltar ao local onde encontrei a bolsa, na entrada.

Só bem perto percebo que havia deixado minha mochila no chão antes de entrar. Sem problemas, só levo itens de higiene pessoal. Certo, tudo certo. Sem problemas, sem problemas. Acho.

Pego-a rápido e olho para os lados muitas vezes para me certificar. Não percebo nada de errado. Ainda. Começo a piscar mais do que o necessário e tenho que esfregar as mãos nos olhos. Isso me distrai e fico sem parâmetros.

Por… acho que alguns momentos, meus pensamentos se esvaem e não sei o que está acontecendo. Fico perdido. Respiro fundo.

Só consigo pensar no boneco. Próxima parada: a casa do Antônio. Desço até a rua paralela e corro até lá. São dois quilômetros. Chego lá cansado e suado, bato na porta, ele aparece.

– A Victória está aqui?

– Oi? Por que estaria?

– Não… é que… Bem, você falou com ela na saída hoje?

– Só cumprimentei. Aconteceu alguma coisa?

– Nada. 

Três segundos imensos de silêncio e eu começo a tentar falar de novo, mas é quase uma parafasia.

Respiro. Pauso. Recomeço:

– Se ela aparecer ou enviar mensagem, pode me avisar?

– Claro que sim – Antônio entra e fecha a porta.

É isso. Eu percebi. Ele piscou quando disse. Ele… ele mentiu? Foi irônico? Ele está me escondendo algo. Alguém está.

Eles.

Quase volto para esmurrar a porta. Maldito terrabolista.

Começo a sentir dores musculares. Talvez eu esteja ficando febril. Não levo mais nenhum paracetamol nas minhas coisas e temo que faça falta.

Num trote até de volta ao lugar da bolsa, vi que muitas pessoas não paravam de me olhar, incluindo o Panda, o bocó da rua que fala demais. Preciso de precaução. Continuo firme.

A caminho, bato o pé num paralelepípedo solto e vou tropeçando até o outro lado da rua. Paro do outro lado me apoiando no poste do semáforo, tomo um fôlego.

Um cachorro qualquer chega rápido e cheira a minha mochila e parece saber o que quer. Morde-a. Puxo para cima, para baixo, para que tá feito – pessoas olham com reprovação e não posso ser tão agressivo quanto desejo. Mas que cachorro da desgraça. Por que isso? Ameaço pegar uma pedra e ele corre. E me ocorre: será que eles estão treinando até esse tipo de cachorro para farejar agora? Bom plano; ninguém desconfiaria.

Com toda certeza, eles devem ter plantado algo nas minhas coisas. Não preciso pensar duas vezes; reviro tudo em busca de possíveis dispositivos ou evidências de… de…

Encontrei algo: uma caixinha de fio dental estranha. Talvez não tão estranha, mas não é minha. Se fosse, não devia estar ali. Eu uso escova de dentes no trabalho. E se fosse minha não estaria tão já no final assim; não faz tanto tempo que…

Arremesso-a o mais longe que posso. Quase acerto alguém. Não sei se a pessoa está me encarando agora ou já estava antes. Talvez ela esteja com eles. O nervosismo me faz sentir uma leve paralisia, uma rigidez muscular, deixando meus movimentos mais lentos. Mas preciso lidar com eles, pois eles podem ter raptado Victória e eu preciso agir depressa. 

Eu sei que eles estão por trás de tudo. Aliás, eu sempre soube.

Os muitos Brunos devem estar envolvidos. Os Mateus também. “Ah, mas o meu é com ‘h’”, babaca. Esses miseráveis.

Corro até a minha casa; quero pegar meu notebook e sumir até resolver isso tudo na minha cabeça.

Ofegante, paro em frente ao portão. Nunca vi aquele carro do outro lado da rua, mas é idêntico ao do Lisbôa, um vizinho. Não consigo ver ninguém pelo para-brisa escuro. Dou um chute no para-choque traseiro para ver se alguém sai, mas não adianta.

São eles. Só podem ser. Certeza que estão lá dentro. Ou dentro da minha casa; certeza.

Não posso entrar para pegar o notebook com eles lá.

Na verdade, se estão lá, já não há notebook nenhum.

“Ao mesmo tempo, o notebook está lá e não está” – a frase escapa, junto com um choro. Ou uma gargalhada, não sei. Esfrego as mãos abertas no rosto. Quando vejo, estou deitado no chão olhando para o alto. Mas vejo um vulto que me desperta. De improviso, dou com a mão para o ônibus passando; ele para, eu entro.

Não sei por que todos me olham e por que cochicham, mas cheguei ao meu limite. Tomo uma atitude: coloco nas costas, salto sem medo e puxo a corda. Jamais me pegarão!

O impacto foi… a dor faz minha cabeça girar. Não encontro meu sapato. Paguei caro demais nele e agora eles devem ter levado.

Desmaio, não sei por quanto tempo. Quando acordo, há dois paramédicos me atendendo.

Enquanto gemo ao chão, Fernanda, amiga de Victória, chega bem perto assustada e fala sem parar. Só entendo algo sobre como ela a levou na vizinha do lado para enfaixar a mão pelo corte, em frente de casa, quando o cursor do zíper da bolsa quebrou; supostamente, ela mal havia terminado de passar os objetos da bolsa antiga para a nova quando aconteceu. Fernanda pensa que me engana.

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Plot Execução Escrita Estilo Desafio

Bom conto. O enredo é simples, acompanhando o protagonista narrador, durante um período de tempo, provavelmente um dia. É um bom plot, bem executado e bem escrito. Fiquei com a impressão que se trata de um esquizofrênico ou, ao menos, uma pessoas com mania de perseguição bastante aflorada. Entretanto, logo na primeira frase do conto, já há algo estranho ou peculiar. Em seguida, entramos totalmente no estranho mundo do protagonista.

De cara, o leitor percebe se tratar de um mundo diferente, o desafio teria se cumprido de maneira melhor caso saíssemos do mundo “normal” para o mundo “não tão normal” do protagonista. Sua mudança de condição não ficou tão acentuada como se poderia esperar. Além disso, não houve, igualmente, uma mudança na narração. O protagonista segue uma narração linear, sem mudanças em seu mundo, logo, sem mudanças em sua narração.