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O Romano

O ar estava impregnado do cheiro da carne queimada. As túnicas ficavam inebriadas desse aroma, que também entranhava-se na pele, misturando-se ao cheiro do suor. A atmosfera era pesada. Ouviam-se gritos, barulhos de ferro, rugidos de leões. A arena vibrava com o clamor dos romanos empanturrados de vinho e pão. Esse banquete sádico alimentava a plebe enquanto esvaziava sua alma, que, com os olhos brilhantes, buscava na arena o derramamento do sangue fresco. No centro, um homem sem nome para muitos, de joelhos esfolados na areia, enfrentava a fera com um olhar de serenidade que irritava muitos dos romanos. O leão rugiu, despedaçou-o, a multidão urrou.

Nas arquibancadas, Marco balançava a cabeça. Não entendia. Quem eram esses cristãos? Será que não aprenderam com Sócrates? Aquele velho só precisava dizer que desistia de sua empreitada para continuar a viver, mas teve seu fim bebendo cicuta. Basta apenas uma palavra para não ter esse destino. “Negas tu a Cristo?” “Sim.” Pronto. O destino estaria evitado, e voltariam para casa ilesos. Mas não, preferem o fogo, os dentes, os pregos. Quando se pergunta por que fazem isso, dizem sem hesitar que é por amor. Por amor? Marco cospe no chão.

Naquela noite, a mente de Marco ficou inquieta. Queria entender mais sobre os cristãos. Andou de beco em beco à procura dos pequenos grupos que ainda não estavam presos. Escondia-se entre os becos do subúrbio, caminhava com passos leves sobre o barro úmido. Até que ouviu finalmente os sussurros. Seguiu-os e encontrou uma casa modesta. A luz da vela tremia nas fendas da porta. Lá dentro, ajoelhados, cantavam baixinho hinos de louvor. No final, viu ao centro um velho de olhos gastos murmurar:

– Amai como Ele nos amou.

Marco franziu a testa. Será que eles não percebem? Que noção distorcida é essa de amor? Amor para eles é sacrifício? E seu deus, que vê tudo isso acontecendo? Todo sangue derramado, toda dor que passam e ainda passarão, será que ele os ama de volta? Amar é isso? Jogar-se no abismo, aceitar a lâmina e os dentes com um sorriso?

O pensamento o perseguiu durante os dias seguintes. No seu dia a dia, não era difícil assistir a crianças sendo esmagadas sob as rodas de uma biga, mulheres sendo devoradas, homens sendo pregados em cruzes. Poucos deles hesitavam. Poucos cediam. Será que buscavam a morte? Será que foram enfeitiçados por esse tal de Cristo? O que esse Cristo tinha de tão especial para mover esse povo em uma marcha rumo à morte?

As noites tornaram-se longas, o sono, rarefeito. Muitas vezes caminhava em busca de escutar o que os cristãos estavam dizendo e passou a observar seus gestos, pequenos sacrifícios diários: dividir o pouco pão e água que tinham, mesmo com estranhos; o toque leve sobre os ombros, munido de uma palavra de conforto. Até Marco se sentia tocado. Algo o chamava. Sendo assim, passou a frequentar os encontros com mais frequência, agora não de longe, mas de dentro.

Certa noite, sonhou com um homem. Sentado sobre uma pedra, vestes simples, olhar calmo e penetrante. A brisa balançava seus cabelos. Seus olhos eram como fogo e água ao mesmo tempo.

– Quem és tu? — perguntou Marco, cauteloso.

O Homem inclinou a cabeça em sua direção.

– Procuras saber sobre mim. Observavas na escuridão os meus seguidores, mas agora já te encontras entre eles. Quem tu dizes que sou?

– Não sei. Mas, se for quem penso, dizem que és um criminoso, um enganador, um condenado.

O Homem sorriu.

– E tu? O que acreditas?

Marco hesitou. Sentia-se nu diante daquele olhar, como se nada pudesse fugir àqueles olhos.

– Acredito no que vejo. No começo, via homens morrendo por ti, por algo que não podiam tocar. Não entendia e ainda não entendo o sentido. Eles poderiam viver se negassem a ti.

– Sim, poderiam viver estando mortos ou morrer e continuarem vivos.

– Isso nem sequer faz sentido! Esta é a vida que temos, por que desperdiçá-la?

– Qual será o desperdício maior? Viver uma mentira ou viver uma verdade e morrer por ela?

Marco franziu a testa.

– E o que é a verdade?

O Homem o olhou nos olhos e disse:

– Já me fizeram essa pergunta, e eu não a respondi. Naquela ocasião, o homem queria desdenhar e mostrar a superioridade que achava que tinha. Mas vejo, Marco, que tu realmente queres saber o que é a verdade. Eu sou o caminho, a verdade e a vida, e, quando conheceres a verdade, a verdade te libertará.

Marco franziu ainda mais a testa.

– Como pode um homem ser a verdade?

O Homem sorriu, mas seu olhar era profundo e cheio de mistério. Marco não conseguia decifrar nem entender aquelas palavras.

– Marco, tu queres tanto saber sobre mim, mas tens medo de perguntar aos meus seguidores. Vejo-te sempre calado, a pensar. Mas te adianto; a verdade não é apenas um conjunto de palavras, nem um conceito frio a ser compreendido. A verdade é viva. A verdade não se possui como se possui um objeto, mas deve ser encontrada, desejada, amada, integrada. Tu deves padecer de sua ação e, por fim, unir-te a ela.

Marco cruzou os braços, tentando acompanhar aquelas palavras.

– Então a verdade não basta ser conhecida?

– Não, Marco. Muitos a conhecem, mas poucos a seguem. Conhecer a verdade é apenas o primeiro passo. Quem a encontra deve mover-se em sua direção.

– E se eu a encontrar e não quiser segui-la?

O Homem o fitou com ternura.

– Então ela será um peso para ti. Mas, se a desejares, se a contemplares, se permitires que ela te transforme, verás que não foste tu quem a encontrou, mas foi ela quem te encontrou primeiro. Então não serás mais o mesmo. Sofrerá sua ação, pois a verdade queima, purifica, molda. Mas, se perseverares, Marco, a verdade e tu já não serão dois, mas um só.

Marco despertou, suando. A conversa ecoava dentro dele. “Eu sou o caminho? Eu sou a verdade?”… “Não basta achar a verdade?”… “Viver estando mortos ou morrer e continuarem vivos?” Qual o sentido disso tudo?

Com o passar dos dias, enquanto convivia com os cristãos e buscava saber mais sobre Cristo, uma gota de realidade pingou em sua testa, entendeu finalmente o que era o amor, ele não era apenas um sacrifício, mas a permanência de algo maior. O amor era viver para algo. Esse viver exigia sacrifícios diários, por conta da escassez do nosso mundo e da nossa própria constituição, precisávamos escolher entre estar em um lugar ou outro, pois não podíamos estar em dois lugares ao mesmo tempo, dividimos o pouco que tínhamos pois, uma vez consumido, não tinha como consumir novamente, tínhamos que escolher como passar o tempo, pois ele também era escasso. O amor era então, escolher viver por algo e não apenas o sacrifício, no caso dos cristãos, eles escolheram viver por Cristo. E assim, compreendeu; não era a morte que os cristãos buscavam, era a vida que escolhiam viver, era o amor por Cristo que os transformaram e viver uma mentira era pior do que estar morto. Afinal, o homem que vivia a verdade, vivia verdadeiramente e, amando-a, transformava-se aos poucos na coisa amada. Não podia voltar atrás, pois sua vida e a verdade tornavam-se uma só.

Aos poucos, foi se tornando um seguidor de Cristo. E, sendo assim, não podia mais viver como um romano. O rumor sobre Marco se espalhou. Foi arrastado até o tribunal e condenado sem hesitação. Jogaram-no na cela úmida, onde esperava por sua vez na arena.

Em sua última noite, sonhou outra vez com o Homem. O mesmo olhar calmo. A mesma brisa.

– Agora entendes?

Marco sorriu, sem hesitação.

– Sim. Agora entendo.

Na manhã seguinte, entrou na arena. O leão rugiu. Marco fechou os olhos e sorriu.

 

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