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O Retorno de Johann Steinbruch – Uma Notícia das Sombras

Sentado sobre uma cadeira que não tinha uma das pernas traseiras, ele se equilibrava para limpar a mordida de cachorro em sua própria perna — a perna esquerda da cadeira arrancada não fora o suficiente para afugentar o animal.

O chão, no centro agitado, era marcado pelos passos apressados; exalava um odor fraco de urina e resto de comida. O mendigo se sentia em casa. A estudante atravessando a rua carregava um salgado; o cheiro chamou a atenção e se levantou para olhar. Sua altura atraiu o olhar da moça de imediato; segurou firme o celular na outra mão. O olhar de receio o fez pressionar os olhos e suspirar. Mas já estava acostumado.

Nunca passava despercebido pela maioria, e não pelo odor. Os cabelos desgrenhados, de um loiro vivo, caíam sobre os ombros largos; os olhos expressivos por trás da aparência castigada escondiam um passado de arrepiar. Mais que isso: uma história de azar. E aquele dia ainda premiaria sua história como uma piada de mau gosto.

— Deus te abençoe — disse a quem jogou uma moeda.

A frase dita para cada esmola já saía sem querer, mas a situação ainda o fazia pensar na empresa; a sede era o prédio do outro lado da rua. A sensação nunca mudava: a cada espiadela, uma ansiedade que parecia chutar seu estômago.

Viu as sombras longas ao chão; o sol estava se pondo. Encaixou de volta a perna na pequena cadeira, jogou-a nas costas e, arrastando junto o cobertor imundo, saiu sem olhar. O executivo que passava não conseguiu desviar e o impacto fez ambos se desequilibrarem. O mendigo, tentando manter-se de pé, agarrou o terno do homem, que olhou com a testa franzida. As mãos calejadas sentiram a textura do tecido. Terno barato — um esboço de sorriso no canto da boca; e não se eximiu:

— Perdão, amigo.

Outro executivo se aproximando discutia ao telefone num tom acalorado. A discussão familiar trouxe um riso sutil, um aceno negativo e sobrancelhas erguidas.

Do outro lado da rua, um grupo de estagiários. Fixou o olhar num deles, o mais confiante, levando uma pasta numa mão e um smartphone noutra. As memórias o fizeram baixar a cabeça um momento. Logo atrás, outro grupo se aproximava; olhares sérios. Identificou um deles, depois outro e outro; lembrou-se dos nomes, todos empreendedores europeus. Quando Aiden acenou em sua direção, o coração disparou; um sorriso constrangido e lisonjeado ameaçou se levantar. Alguém acenou de volta detrás de si. O rosto pegou fogo. Continuou andando.

Parou em frente ao estabelecimento, de onde saíram dois homens despreocupados rindo, se esforçando para ignorar sua presença. Naquele horário, ele já era parte do cenário.

— Ele logo vai ser o presidente da empresa. O cara é um gênio! — disse um deles.

A frase trouxe ódio. Cerrou os dentes e engoliu o nó na garganta. Não fazia tanto tempo, mas ninguém ali parecia se lembrar de Johann Steinbruch, muito menos o associariam àquela figura desprezível. Em seus olhos, uma fagulha de revolta — não contra aquelas pessoas, contra o universo.

A postura curvada era de quem havia se rendido às circunstâncias, mas quem ousasse perder mais de um instante observando, veria nada menos que um príncipe caído.

Sentiu os murmúrios se intensificando em sua mente: as vozes imaginárias se misturavam com o eco das lembranças que ele afirmava para si já ter superado, mas… Eu era importante. Eu conhecia todos eles, todos. O murmúrio um pouco mais alto buscando atenção escapou, só até ser abafado pelo barulho da cidade.

Em breve, a ex-noiva, que o abandonara, sairia para, mais uma vez, não percebê-lo. Mais alguém jogou uma moeda em sua direção e ele a observou cair ao chão sem emoção.

Para vê-la de novo, parou ao lado, num café movimentado onde vozes alegres se confundiam. Quando viu o jovem, centro das atenções, a quem os sorrisos e aplausos pareciam pertencer, lembrou-se daquele último jantar de gala deslumbrante. Será que eles te respeitam mesmo? E quando algo der errado? O menino prodígio da família, agora um homem, era invisível; exceto para os fantasmas e as memórias que o perseguiam e torturavam.

O jornal molhado no chão trouxe mais um flash: “De Promessa a Pária”, dizia a matéria, com a foto que mostrava-o saindo do prédio com expressão de frustração enquanto repórteres o cercavam. Pouco adiantou saber tanto sobre mineração e ações; sem a sorte do seu lado, uma dúzia de decisões com repercussões imprevistas afundou a empresa em um caos inexplicável. O prejuízo à mineradora fora terrível.

A memória se dissipou quando viu seus irmãos mais novos saindo pela porta da frente. Escondeu o rosto. Sua ex-noiva os acompanhava.

Pena, foi tão rápido. Lágrimas se formaram em seus olhos.

O aroma de um café recém preparado chegou à calçada. Conilon, lembrava-se perfeitamente. Pessoas se reuniam ao redor da mesa trocando histórias e risadas, sem a menor ideia do que significava ir de “futuro promissor” a “deve estar amaldiçoado”. E não por ter desistido do conforto, fora despojado de seu nome e status. Pela vida, pelo universo.

Os minutos foram passando, o lugar ganhou luzes e assuntos novos, mas restava um último grupo discutindo sobre uma nova startup na área de tecnologia. Sua mente começou a elaborar um conceito audacioso, algo que poderia ameaçar as empresas mais estabelecidas. Sim, sim, isso se eu furasse bem fundo. Mas eu precisaria… Bem, se a maior companhia de perfuração do Brasil não puder… Uma buzina o tirou do foco.

Dentro dele, o mesmo espírito ainda ardia, mas um olhar rápido no reflexo da vitrine o trouxe de volta. O que eu estou pensando? Isso não existe mais, já era. A minha vida não existe mais. Eu não existo mais! 

Na calçada agora fria, continuou sofrendo o peso dos olhares indiferentes. O amargo cheiro de vinho, dor e fracasso o envolvia como um manto. Murmurava para si, mergulhado em pensamentos fragmentados sobre o que poderia ter sido. Era um rei entre os mendigos, despido de sua riqueza, despindo-se da ambição. 

— Por que tudo que eu ponho a mão dá errado?! Desgraça!

O grito ecoou pela rua. Ninguém olhou. Eu cansei disso.

Viu aquele bar, que nunca entrara. Arriscou. Lá dentro, o cheiro de suor e bebida se confundiu com o seu. Um garçom corpulento aproximou-se, mas, ao contrário do que esperava, não o expulsou. Em vez disso, ofereceu um chá amargo e apontou um assento perto do balcão. Aquilo era mais do que tinha recebido de qualquer pessoa em meses.

Enquanto o chá esfriava em suas mãos, Steinbruch olhou para a parede atrás do bartender e travou. Por que isso está aí? A pintura de montanhas e uma fenda luminosa no solo era uma visão que ele conhecia bem, direto dos seus sonhos: a paisagem não pertencia a lugar algum que ele conhecesse; luz emergindo da terra como se a própria criação estivesse rachando, pondo as estranhas para fora. Quem sabe, o cosmos estivesse falando com ele, mostrando que um destino ainda o aguardava, o chamava. “Pra você, eu nunca fui suficiente”, murmurou, falando ao irmão ausente. “Me desprezou, me tratou como louco.”

O dono do bar, curioso com o súbito resmungo, aproximou-se e perguntou receoso:

— Está tudo bem?

Steinbruch riu. Não era uma risada de alegria, mas de epifania. 

— Sabe o que é passar uma vida inteira procurando algo sem saber o que é? — não esperou resposta. 

Por fim, apontou para o quadro na parede: 

— Isso aí é sobre mim, meu amigo. Sobre mim!

O dono do bar recuou, sentindo que estava diante de um homem à beira de algo profundo – ou do colapso. Enquanto Steinbruch deixava o bar, o homem atrás do balcão tentava entender o que, afinal, uma parede de grafiato barato poderia dizer sobre o visitante.

Foi ao seu ponto habitual, o beco de sempre. Um pouco menos amargurado, deitou-se e esperou até que o sono chegou. Enquanto dormia, as vozes que se revezavam para atormentá-lo o despertaram brevemente. Escondido na penumbra, viu dois vultos — figuras indistintas, inegavelmente demoníacas — conversando sobre algo que parecia ser um segredo; algo sério, proibido. Johann permaneceu em silêncio. Adormeceu.

“Incompetente!”, ouvia naquele mesmo sonho de sempre. E não, não era incompetência, sabia.

Quando conseguiu se libertar e acordar, o novo sono deu lugar a outro sonho recorrente: as montanhas, a vegetação exótica, a fenda no solo de onde emergia uma luz intensa. A visão que o perseguia desde jovem parecia dizer que ele nascera para algo grande; algo perigoso. A fenda cercada por maquinário industrial tinha um centro, perfurado ao limite, algo que nunca conseguira interpretar. O sono ia e vinha.

— É esse aí?

— Sim.

— E como foi?

— Na mineradora, foi só dinheiro. Mas na companhia de perfuração de poços, foram escândalos, tragédias, renúncias, denúncias, investigações, processos… conflitos familiares. Perdeu tudo: patrimônio, status, respeito. 

— E todo mundo pensando que era azar.

A última frase encheu seus ouvidos e o despertou. Dessa vez, talvez as vozes dissessem algo importante. Ficou imóvel e em silêncio.

Talvez descobrisse sobre aquela sensação de uma força invisível que parecia bloquear cada movimento seu, cada plano que esboçava. Eu podia ser um rei. A sensação… não, a certeza que fez seu ceticismo juvenil cambalear diante de tanta coisa improvável.

Escutou cada sílaba atentamente, com uma expectativa que crescia dentro dele. Sentia como se uma corrente elétrica percorresse seu corpo. Era absurdo, ninguém jamais acreditaria, mas não importava. Compreendeu tudo o que havia vivido, cada fracasso, cada queda. Parece até um plano cósmico contra quem eu sou. Cósmico, divino, não faria diferença. A ideia de um propósito foi tomando forma em sua mente. Não importava mais ser um Steinbruch em ruínas; seria o catalisador de algo muito maior. Um mundo novo se abriu.

Com meia de uma conversa insana, as vozes pararam. Era hora de agir, precisava confirmar. Algo lhe fora ocultado, mas agora ele estava mais perto do que nunca, se aquilo tudo fosse verdade. Se fosse, seu destino o chamava.

Trêmulo, levantou-se lentamente. Endireitou-se pela primeira vez em anos, exibindo toda a sua altura; o queixo erguido como nunca. Mal notou os vultos se dissipando, tinha os olhos vidrados no horizonte. 

Agora, tudo se alinhara: as falhas, as ruínas, as quedas… A lama que cobria seu corpo não era humilhação, mas purificação. Com um impulso inesperado, começou sua marcha. Eu sou muito mais que um mendigo azarado! Ao caminhar pela rua, sentia o mundo pulsar. 

—  A Grande Equação, não é? Vou mostrar só uma coisa!

Com passos firmes, seguiu em direção à igreja mais próxima: a luterana na quadra de cima. Ao chegar, avistou uma mulher saindo com uma Bíblia na mão. Sem hesitar, aproximou-se e pediu com a força da urgência:

— Leia para mim 2 Pedro 2:4.

— Oi?

— Apenas leia, por favor.

As palavras chamaram a atenção de dois diáconos, que se aproximaram. Com um sinal, a mulher os acalmou e começou a ler.

Quando ouviu a passagem, Johann sentiu o ar ao seu redor mudar, o universo em sintonia com seu despertar. A mensagem cravava-se em sua essência. Ele absorveu cada palavra. Eu sou a chave!

— Era isso! O tempo todo era só isso!

À sua volta, podia-se ver o sorriso se ampliando em seu rosto enquanto a liberdade e o poder tomavam conta de sua mente.

— A mineradora tem um propósito. 

Sentiu o ar ao seu redor se tornar espesso, como se algo monumental estivesse prestes a acontecer. Começou a sentir os primeiros tremores. Uma transformação? Um frisson elétrico percorreu seu corpo.

Os crentes ao redor pararam, surpresos e confusos, percebendo que algo sobrenatural irrompia daquele corpo sujo e descuidado. 

Rindo, agora de maneira histérica, a visão foi se clareando diante dos olhos. Seu corpo tremia de excitação, estava consciente de que seu destino finalmente se alinhara. Sua mente rumava para a cena final que pensava aguardá-lo, onde a revelação e a destruição se confundiriam em um único momento. Saiu rindo cada vez mais alto até parar no meio da rua, atrapalhando o trânsito. Não aguentava mais. Olhou para o céu:

— Que comece a Grande Tribulação!

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