Olhos esbugalhados, se abriram. De repente, segunda-feira.
Para ele, começar a semana era como lutar contra a morte, mas preferiu estampar um sorriso no rosto e levantar.
A primeira coisa que fez foi se contemplar
no espelho, admirando sua beleza. Era parte do seu ritual diurno. Essa era sua religião. Ele era o seu próprio deus. O espelho não era apenas um objeto, era um altar.
“Nossa, tive um sonho esquisito essa noite”
Tomou banho ao som de seu sensual jazz, com sabonete Febo. Incensos por toda a casa.
Vestiu sua calça justa xadrez alfaiataria com dois tons de vermelho e cinza, e sentou na poltrona de frente para o seu melhor amigo: o espelho. A este, deu um nome: “Apolo”.
Apolo conhecia todos os seus segredos, desejos e sonhos.
Com um copo de leite na mão e tendo bebido pelo menos três goles, João estava na fila com seu colega de trabalho, Hernandes, para pagarem a conta do almoço.
A sua atenção estava voltada para uma moça que caçava moedinhas à sua frente para pagar o que faltava da conta. Toda constrangida, porque ele denunciava com o olhar toda a impaciência.
“Moço, só mais um segundo”, e espontaneamente ele respondeu: “tranquilo, até meia noite é dia”. Ela lhe devolveu um olhar de desaprovação pela sua resposta.
Ele se tocou que algo do que falou não a agradou. E ficou em transe, como em um mundo paralelo.
“João… João… estou falando com você. Está aí? O que se passa pela sua cabeça, heim?”.
“João? Quem é João?”, perguntou.
“Você, é claro”.
“Eu não me chamo mais João. Agora meu nome é Gambo. Entendeu?”.
“Era o que me faltava. Cara, você está bem?”.
“Me sinto mais vivo do que nunca”. Respondeu Gambo com um olhar de satisfação.
“Então, está bem. Dizem que discutir com louco é pior do que qualquer coisa”.
Enquanto o silêncio pairava entre os dois, Hernandes pensava sobre o quanto seu colega estava esquisito. Algo não estava certo, era nítido.
“Jovem foi encontrada morta, em cemitério, na noite passada. Uma maquiagem estranha estampava o seu rosto assustado…”, disse a reportagem do horário de almoço. Apenas essas informações conseguiram captar. Era a vez de Hernandes e Gambo pagarem suas contas, voltarem para o carro e partirem de volta para a escola, onde eram professores.
“Eu tive um sonho estranho”, disse olhando para a frente como quem sonha acordado.
“Que tipo de sonho, João?”. Hernandes respondeu com uma mão no volante, um olho no semáforo e o outro no seu colega.
“Gambo, por favor!”.
“O que quer que seja. Por favor, não me estresse”.
Mas não respondeu, ficou em silêncio até a escola. Hernandes não perseverou em tentar arrancar mais palavras do seu colega. Estava achando tudo aquilo muito esquisito. E Gambo tomou o leite que restava.
Ao passarem pelo portão da secretaria, a primeira pessoa que encontraram foi Dona Teresinha, a diretora da escola, uma senhora de setenta anos que tinha toda energia e caridade do mundo.
“Como a senhora está? Senti sua falta ontem”, falou João como de supetão, agindo normalmente. Hernandes pensou: “Que cara louco”.
“Estou bem, meu querido. Ontem tive um exame de rotina. Mas obrigada pela preocupação e carinho de sempre*.
“Disponha, Dona Teresa. Estou sempre a disposição”.
“Obrigada, querido. Continue sendo sempre este rapaz tão atencioso e delicado”,
João curvou a cabeça como em reverência, acenou a mão para Hernandes, e caminhou até a sua sala em passos quase lentos e firmes, postura ereta e olhando nos olhos de quem passava. Dizem que ele sempre chamava a atenção pela sua presença marcante.
“Hoje iremos estudar um clássico autor do século XIX, em que a sua vida imitou sua arte, aliás, sua morte imitou seus escritos”, falou com um copo de leite na mão… “Edgar Allan Poe”, e bebeu mais três goles.
“Professor, posso fazer uma pergunta?”.
“Claro, Juliano, até duas”.
“Por que o senhor está bebendo leite?”.
“Leite é a bebida mais formidável que existe, meu caro”. Fez uma pausa serena, encarou o aluno e disse: “você deveria beber de vez em quando, vai se sentir mais forte”.
“Não, obrigado. Eu não gosto de leite, professor, João”.
“Quem?”.
“Quem o quê, professor?”.
“Quem é João?”.
“O senhor, uai”.
“Meu nome não é João”, falou com uma cara estarrecida.
“Se não é João, qual é o seu nome, então?”, perguntou Juliano como quem não estava entendendo nada.
“Não sabe? Já deveria saber”.
“Mas professor…”, na hora o professor interrompeu.
“Vamos voltar à aula”.
A aula passou e o sinal bateu. Era o fim de mais uma aula. Bem no momento em que os alunos estavam saindo de uma sala para a outra, o professor falou à Juliano, o aluno questionador:
“Proceda com cuidado… Cautela, rapaz, cautela!”
“O quê, professor?, perguntou Juliano sem entender nada.
“Apenas cautela”, e bebeu mais um copo de leite.
Após o final de mais um dia de expediente e enfrentar um trânsito dos infernos, João chegou em casa, seu lar doce lar. Seu império, seu laboratório, a extensão do seu universo, íntimo e particular, onde tudo estava na posição e com as cores que queria. Era possível, desde o primeiro pé colocado em sua residência, alguém dizer com convicção: “Ele mora aqui”.
*****
“Era uma tarde de outono, não estava nem tão frio e nem tão quente, estava do jeito bom de ser, tudo equilibrado. O celular vibrou, era a notificação de uma nova mensagem desses aplicativos de relacionamento.
Vitor, então, abriu a mensagem mesmo estando em horário de trabalho. Ele gostou do que viu, e como gostou.
Conversa vai e conversa vem, marcaram de se encontrar.
Se passaram alguns dias, como num flash rápido. Os encontros estavam cada vez mais frequentes. Vitor e a senhorita Menezes pareciam estar em um tipo de romance adolescente, que ambos estão apaixonados, queimando borboletas no estômago.
Todo confiante e dono de si, o rapaz falou a si mesmo: “Vou pedir em namoro, com certeza está apaixonada como eu”.
Marcaram de se encontrar. O bom rapaz, cavalheiro e, provavelmente, o último dos românticos, preparou toda uma ocasião especial; para ele, tudo soava mágico.
O pedido veio acompanhado de um: “Querido, eu até gosto de você, tem sido lindo o que estamos vivendo, mas não estou pronta para um relacionamento”, Vitor gelou quando escutou essas palavras.
Percebendo que ele ficou paralisado com a resposta, acrescentou: “Espero que entenda. Eu até gosto de você, mas não estou preparada para um namoro no momento”.
Ambos foram para casa, e os dias passaram como um flash rápido novamente.
Alguns aceitam tranquilamente o fim e o não dos ciclos naturais da vida, outros, nem tanto. Esses são obcecados pelo “sim”.
Agora, a cena não era em um restaurante, ou em um passeio romântico à beira da praia, ou em uma viagem curta para conhecer uma cidade próxima, mas tudo o que havia era mãos sujas de sangue misturado com outras cores”.
João, subitamente, acordou. Sentou sobre a cama, ofegante, suando, lembrando do que viu.
Sua mente agora era perseguida pelas imagens de um cabelo loiro comprido e mãos ensanguentadas.
Pelas próximas quatro horas, não conseguiu dormir. Rolou e rolou pela cama em busca de paz, mas não a encontrou. Depois da tentativa falha de voltar ao sono, levantou e foi cumprir seu ritual diurno e, depois, foi trabalhar.
O tempo passou como um flash rápido, e quando se percebeu, passaram sete meses.
*****
“Como foi o final de semana de vocês? Conseguiram terminar o trabalho?
“Professor, o senhor poderia me dar mais um prazo?”
“Me dê um bom motivo, meu caro. Caso contrário, desista!”
João pegou sua cadeira, colocou no centro da sala em frente a lousa, onde todos poderiam prestar a atenção nele, pegou seu copo com leite, cruzou as pernas e bebeu três goles, olhando para a sua reta, num ponto fixo. Imóvel estava, imóvel ficou.
“Professor?… Professor?…”, mas ele não respondia.
Os alunos começaram a ficar assustados, pois o professor permaneceu imóvel por uns dez minutos. E, então, alguém falou em alta voz e já irritado:
“Iremos à Diretoria, professor, João”.
Então, um silêncio tomou conta da sala. No próximo instante, só foi possível ver João, lentamente, mexendo os olhos num rabo de olho, direcionando sua atenção àquele ousado aluno que resolveu gritar com ele.
“Quem?… quem é João, meu caro?”.
Os alunos começaram a ficar mais assustados com tudo aquilo, pois o professor deles estava mais estranho do que nunca.
Ele se levantou, pegou seu celular, digitou alguma coisa, e fez o seguinte comentário:
“Eu sou aquele que deixarei a vida de vocês, a vida dos seus pais, desta escola, de cada conhecido que tenham, desta cidade, deste país, deste mundo, marcadas. Mesmo que queiram me esquecer, jamais conseguirão. Dizem que a arte imita a vida, mas é o contrário, a vida é que imita a arte. E o que estou fazendo hoje aqui nesta tarde é um ato artístico, em que a morte ganha licença poética”.
E depois dito tudo isso, não falou mais nada. Sentou, cruzou as pernas, com seu copo de leite na mão. Imóvel estava, imóvel ficou.
Os alunos apressadamente abandonaram a sala.
Dentro de algum tempo a polícia chegou, algemou o professor, e enquanto o condizia, com todos amontoados fora da sala, na expectativa do que iria acontecer. O professor começou a falar em alta voz:
“Eu sou o Gambo… meu nome é Gambo; Eu sou o Gambo… meu nome é Gambo…”, e assim repetidamente.
Gambo, ou melhor, professor João, estava sendo preso e acusado pelo assassinato da jovem Menezes e de outras vítimas. Tudo seria investigado. Ele disponibilizou provas que condenava a si mesmo por uma mensagem online que mandou momentos atrás. E ainda na mensagem havia informações sobre seguidores que dariam continuidade ao seu legado, dando à morte um caráter artístico e artesanal.
Ninguém entendeu nada, e todos ficaram perplexos. O professor João Vitor Mackenzie estava acima de todas as suspeitas.
Olivia Menezes teve sua juventude assaltada. O “não” lhe custou muito caro, foi como proferir uma blasfêmia aos ouvidos do salteador: “quem é esta para dizer não à mim?”.
Seu peito foi dilacerado, seus pulsos cortados, sua garganta degolada. A maquiou com tintas faciais, porque segundo ele: “A vida é um eterno teatro. Todos somos atores neste grande espetáculo”. E ainda peguntaram “o por quê pintou o rosto de Oliva?”. Sua resposta foi: “até meu melhor inimigo não merece morrer feio. Todos têm o direito da beleza, até na sua morte. A vida é uma estupenda obra de arte”.
E antes que essa cena se encerrasse na escola onde trabalhava, Gambo pediu mais um copo de leite. Por misericórdia lhe concederam o seu próprio copo de leite, e após três goles, ele disse: “Isso, sim, é leite de macho”. Essa era a sua máxima.
Mas, alguns segundos depois, ele caiu com a boca espumando, tremendo como um peixe fora d’água, desfalecendo todo retorcido e olhos esbugalhados, no chão.
A expressão congelada do seu rosto era como de um riso de um desvairado. Assim, se encerrava um capítulo, mas se iniciava outro de pesadelo naquela pacata cidade.
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