O doutor Borges era taciturno, todos diziam que os vários anos trabalhando em hospícios o haviam deixado assim. Ele estava sempre de branco no hospital, todo de preto fora dele e passava o resto do tempo simplesmente olhando para baixo.
Um dia, porém, jantando na minha casa, foi perguntado se havia algum doente especial, algum louco que não parecia louco ou que talvez não fosse um lunático. Ele deixou cair o garfo no prato, me encarou com seus olhos azul cinzentos, mais cinzentos do que azuis e disse, pesando as palavras:
– Uma pessoa se encaixou nesse perfil, mas eu nunca soube…
Ele parou e praticamente não disse palavra pelo resto da noite, pareceu pensativo e até mesmo meio triste.
Dali a três meses faleceu e me deixou uma caixa com algumas lembranças, nada demais, alguns livros, um relógio precisando de conserto, um isqueiro e um envelope com uma carta dentro. Na verdade duas cartas, um bilhete e uma carta, o bilhete, era do doutor Borges e a carta, obviamente, do louco que talvez não fosse louco.
No bilhete do doutor Borges, ele dizia:
– Trago–lhe a carta desse paciente quase ilustre, mas nunca entendi. A primeira vez que li eu mal pude acreditar naquele final…, difícil dizer que foi escrito de uma vez só, em uma noite, quando ele morreu. E como ele sabia? Nunca entendi nada, revisitei essa carta inúmeras vezes. Li e reli. Tentei saber mais sobre ele, sobre sua vida anterior, mas em vão.
Eu deixei a carta do louco de lado por um tempo, só recentemente que li e o doutor Borges estava certo, eu também não sei o que pensar.
É uma carta comum na aparência e começa assim:
“Caro Doutor Borges, se está lendo esta carta é porque morri, neste antro de loucos, neste hospício, neste sanatório, muitas palavras, muitos subterfúgios, apenas para dizer que é como se eu louco fosse, será mesmo? A verdade pode ser simples, mas a realidade é complexa, entre essas duas estamos todos, tentando fazer algo que chamamos “viver a vida”, mas divago e, porque não fazê-lo? Estou a algumas horas da minha morte, lúcido e são, ao contrário do que dizem, inclusive você, doutor, médico, especialista, tolo. Incapaz de perceber o que está por vir.
Acho que o melhor é contar o que aconteceu, nesse momento é a única opção que me resta. Ninguém nunca perguntou “o que aconteceu?”, o básico é descartado, pois bem, esse é o momento, “o que aconteceu” vem agora, em poucas palavras consigo descrever, creio eu, é até meio simples, básico:
Era um dia comum, como tantos outros, o despertador tocou e eu decidi ficar na cama mais alguns minutos, acabei ficando mais do que alguns. Me atrasei, engoli o café, saí correndo e as ruas já estavam tomadas pelos carros, pequei o rush da manhã e cheguei atrasado no trabalho.
Achei que talvez por um milagre, eu pudesse evitar a ira do meu chefe. Mas não pude, lá estava ele, encostado no batente da porta, em um ângulo privilegiado, tornando-o capaz de ver todos que chegavam atrasados. Bem, como eu disse antes, apenas um dia comum do que então eu chamava vida.
Entre gritos, ironias, recriminações e sarcasmos, achei que, apesar de tudo (e talvez fosse alguma coisa), ficaria tudo bem, mas sua frase final foi:
– Aqui está o endereço. Vá agora!
Meu destino estava selado. Eu só não sabia ainda. Quase ninguém é capaz de perceber esse tipo de coisa antes de tudo acontecer.
Demorei mais de uma hora para chegar no lugar, por causa do trânsito horrível, naquele “anda e pára”, bem mais parado do que andando, estava com um carro comum e por isso não pude usar de minha autoridade, fiquei parado como todo mundo.
Assim que cheguei vi que era um prédio de tijolinho, janelinhas quadradinhas todas juntas formando uma grande janela de cada vez. Meio depósito, meio escritório, em um bairro cheio de depósitos e escritórios. Eu era esperado, ou ao menos alguém como eu:
– Finalmente chegou – disse quem parecia ser o porteiro – faz tempo que estamos esperando, qualquer um...
Suas duas últimas palavras deixaram algo claro, eu era apenas um “genérico”
qualquer um indicado a esmo para essa tarefa, poderia ter sido um colega
meu, porém, lá estava eu.
Assim que entrei a secretária desviou o olhar, do outro lado um homem fingiu me ignorar, ficou claro que ambos estavam propositalmente longe um do outro. Na minha frente, um homem gordo, com suspensórios pretos, camisa engordurada, cabelo seboso, segurando um copo de qualquer coisa na mão, parecia ser o responsável e eu disse:
– Vocês fazem o quê?
– Eu posso até falar, mas depois vou ter que te matar! — abriu um sorriso e eu apenas pude pensar que era uma piada tola considerando a situação.
Tentei mudar o foco e me saí com essa pergunta:
– Está bebendo o quê?
– É uma mistura de aveia, leite de amêndoa, soja, mostarda e isso mesmo que está pensando, grama.
– Parece horrível.
– Não, pelo contrário, isso, sim, é leite de macho!
Sorriu mais uma vez com seus dentes sujos. O casal continuava tentando fingir que não era um casal e que me ignorava solenemente. Fui até o elevador e perguntei o que havia acontecido. O médico legista, um sujeito gordo, baixo, mal vestido e com olhar cansado disse indiferente:
– Homem, 41 anos, com a perna esquerda de uma cadeira enfiada na cabeça dele. Eu começaria investigando isso.
Olhei em volta, vi a cadeira jogada no chão, perto do elevador e montei a cena na minha cabeça: o morto estava de costas quando foi atingido pela cadeira, esta quebrou, ele caiu dentro do elevador, ainda estava provavelmente vivo, o assassino então aproveitou a nova arma, que de repente surgiu na frente dele, a perna esquerda que havia se soltado da cadeira, agarrou firmemente, levantou o braço e com toda a força, acertou a cabeça do agora “morto no elevador”.
Meu olhar cruzou com o do médico legista, havíamos pensado da mesma forma. Ele me indicou um pedaço da madeira e então pude ver que havia uma digital ensanguentada na perna esquerda da cadeira.
O casal ainda fingia, mas nada disso importava, falei para levá-los para a delegacia. Um deles acabaria confessando, entre lágrimas e gritos, como a tragédia se desenrolou. Ciúmes, ódio, dinheiro, oportunidade, talvez um caso de amor, mas sem detalhes, alguns casos são assim: sem adjetivos ou advérbios, apenas a frieza de uma confissão que se desenrola em uma sala que cheira a horror, a descrição quase técnica de algo que nunca deveria ter acontecido, mas aconteceu.
Meu trabalho ali havia terminado, eu iria então pra delegacia apenas
para ouvir a inevitável confissão. Talvez os motivos, as desculpas, as razões, ou nada disso, apenas um insensível “eu matei”.
Mas não fui embora, olhei para aquele lugar e tive vontade de perambular por ele. Vi o responsável tomando aquela mistura horrível e mandei que também o levassem para a delegacia, pouco depois me arrependi e, com a consciência pesada pelo que havia feito, desisti de ficar ali e resolvi que o melhor era voltar para a delegacia.
Mas dai me deparei com uma porta, comum, mas que por algum motivo me atraiu. Virei a maçaneta, abri e foi isso. Sabe o que acontece? Algumas portas, depois que você abre, nunca mais pode fechar. Essa era uma dessas. Eu abri e vi tudo, eu compreendi tudo e foi o fim de tudo. Saí de lá e não fui pra delegacia, nem sei o que aconteceu com aquele estranho casal.
Alguém como eu pode usar a palavra “estranho”? Claro que sim, me permito tudo. Fui para casa, mas era inútil, viu minha ficha e sabe o tudo que fiz, sabe o que levou quem quer que seja a me colocar nessa casa de loucos.
Doutor Borges, sei que está acompanhando atentamente, porém, quando terminar de ler esta minha carta, você vai pra casa, apenas para descobrir que sua esposa foi embora para sempre, levando junto com ela seu inocente filhinho de dois anos. E então, você, que sempre se veste de maneira tão colorida, vai passar a se vestir de branco neste hospício e de preto fora dele.”
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Plot Execução Escrita Estilo Desafio
O plot até que é bem interessante. A execução, no entanto, poderia ter sido melhor, principalmente pois o mistério acaba dando espaço para que o leitor se interesse por outras coisas ao longo da narrativa, desviando sua atenção. Se foi algo inconsciente, não há nada que uma revisão não resolva. Se foi consciente, recomendo repensar esta técnica para os próximos contos. Gostei da prosa, mas os diálogos ficaram um pouco deslocados para mim, também, o que se reflete no estilo. Com relação ao desafio, resta a pergunta do que poderia ter acontecido para uma mudança tão drástica de mentalidade e destino, mas acho que esse efeito de incerteza ficou divertido.