Minha terra é lá tão longe, das bandas de onde o sol vem; nosso lar, um horizonte de esperanças e canções. Mas, do mar longínquo, os ventos sopraram novas visões. As visões de um tempo incerto, de sombras que aqui passaram, de mãos que, em falso trato, à força, tudo tomaram.
Entre os meus, eu era grande — coroado pelos ventos que sopravam nos meus galhos, pássaros e seus rebentos. Eis-me o rei que dava sombra, que ainda a floresta evoca; e ao longe, o sol brilhante adornava a minha copa. Aqui, tão longe, ainda sei: somos os mesmos de outrora, cuja vaidade se erguia, plena, sob a nossa lei. Altivos, despreocupados, podíamos tocar os céus. Fincados na grande terra estávamos; e eu, um rei.
Mas então os ventos mudaram: nem de flores, nem das chuvas, não traziam mais perfume, só o choro das viúvas.
Houve primeiro um silêncio — os pássaros também calaram. O céu não sussurrou, o sopro se segredou. Mas aí ouvi seus passos. E eis o vento, vindo dos verdes vales varrendo a relva; seu assovio soprou anúncios sombrios sem rodeios, e o rude rosnar rompeu o reino.
Tudo mudou.
Até então, não havia ameaça em nossos arredores; não sabíamos sobre eles até que nos cortassem, arrancassem, diminuíssem. Mas, desfeitos em feição, não perdemos em espírito. E, na verdade, algo ganhamos, algo que lhes escapou: descobrimos nossa força, densa como essa cor que da grandeza restou.
O desbaste a nós imposto escancarou quem era quem. E não, não por vil nobreza deste aqui, pois era rei. Mas se outrora especiais, agora postos aquém. Nos víamos tão imponentes e fomos feitos ninguém. A ingenuidade se foi, em alto mar amarrados, quando aos prantos desejamos os bosques pra trás deixados. Com o tempo, no entanto, nossa fé foi abalada, quando veio a ansiedade, pois as ondas, oscilantes, honestas e angustiadas ofertaram um outro olhar.
Nos demoramos a entender, quando vimos já era tarde. Longe estávamos do reino, chão nosso de todo sempre, perdidos sem os pássaros, pastos e pastagens, distantes do solo firme. E, então, nos conformamos, por um tempo iludidos: esperamos a chance grande que viesse de repente e, tão grande qual nossa gente, nos desse de novo a paz do sol sempre tão quente.
À mercê de ânsias alheias, descobrimos do pior jeito o que é servir pra todo o sempre. Cruel capricho nos marcou o corpo; o tempo nos moldou a mente. Mas inda lembrava das minhas flores… e inda sabia como ser teso. Só o momento me escapava. E eu colheria horrores.
Na umidade, nojento recinto, passou-se longo tempo. Tocavam-nos como se deles fossem. Nada podíamos, não nos mexíamos. Éramos deles. E muito houve até que o caprichoso viesse e escolhesse a dedo: eu e mais quinze. Levou-nos entre capangas até um lugar onde aprenderíamos os modos tais esperados. Me recusei; nos recusamos. Fizeram o que quiseram, mas com santa resistência demoramos quanto pudemos.
Por fim, nos entregamos, e o castigo marcou pra sempre. Só não doeu mais do que, em minh’alma sofrida, saber que daquele dia em diante jamais meu povo veria.
Outra vez fomos levados, éramos só os dezesseis. O novo senhor nos deu incumbências e nos mostrou àqueles que, do alto de suas sandálias arrogantes, nos avaliaram e deram sinal. Nos tornamos menores, menos expressivos e, por muito tempo, silenciosos.
É verdade: usavam-nos menos e estávamos em melhor fortuna que antes – melhor do que os outros de nós. Aqui, nunca fomos os únicos, mas não tínhamos contato com os outros. Não sabíamos quem eram, nem sua origem. Só sabíamos que éramos muitos e, ainda assim, presos a tal destino.
Dentre as poucas venturas que tive, houve um dia que fui posto, eu e outros três, em contato com um idoso, que de usado que estava, já não ouvia quase nada, mas mantinha-se bondoso. O velho todo rangia, as marcas na pele contavam histórias. Seu corpo esperava o último dia, que já se sabia, não tardaria. Mas algo mais ali destoava: uma alma que transbordava, como nos tempos de menino, e que agora eu me lembrara. O velho logo se foi e deixou-nos o fervor que, diante dos algozes, servia-nos um frescor.
Esbanjam confiança, arrotavam mil certezas. Escapava-lhes a caridade que, pensavam, concediam-nos, pois a liberdade “um dia” mais a eles mesmos servia. Um dia houve que dali fomos, eu e mais três, levados a outros propósitos. E eu que tão grande fora, agora me via fraco e posto atrás até dos meus, a quem também fui sujeito. Deixei que assim mesmo fosse e a estes também servi – a um deles nada difícil, que sempre foi meu braço direito.
Maus dias vieram a todos; faces se revelaram. Descobrimos, sim, descobrimos: amigos não tão amigos assim; por outro lado, encontramos inimigos com quem choramos. E tudo se repetia. Sendo sempre desprezados, sentavam-se sobre nós. Sempre assim, com eles presentes, ainda estaríamos sós. Não pude contar os dias, mas sei que estive aqui por tempo suficiente para ver muitos deles descendo à cova fria. Entretanto, para nós, diminuídos e esfolados, manuseados e realocados, o tempo foi curador. Mas, ah! Meu dia vem Se aproximando, eis que vem! Da incerteza, já me curei; quando a brisa, bamba e breve, por meu bem balbuciou: não há mais volta; e me quebrou. Me curou.
A vida me quebrou o orgulho, o tempo me tornou denso. E foi assim que descobri: só podiam dobrar o corpo; o espírito resistiu nobre: sou ébano até fim!
Nosso lar, um horizonte de esperanças e de dor. E do mar longínquo, os ventos dizendo que há mais terror. Mas inda nos ergueremos, embora um pesar profundo. E a força de nosso ser fará eco no novo mundo. Ouvi ainda ontem que, por muito gemer à noite, alguma hora me levam. Imaginava que antes disso pudesse falhar em serviço e causar – sem intento ou acosse – gran dor a um meu feitor, cujas costas arriasse qual madeira velha fosse!
Dizendo “não desejo”, mentiria;
mas não quero desejar. E um dia…
ouvirei os passos lentos do homem
que virá me levar como um guia
aonde as dores dos ébanos somem.
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4 avaliações encontradas.
Plot Execução Escrita Estilo Desafio
Achei um conto escrito de maneira bastante inspirada. Mas o plot não diz muito ao leitor e me pergunto se alguém que não saiba do que se trata o desafio (ou mesmo que se trate de um desafio), é capaz de entender o que está acontecendo. O desafio é cumprido, mas é particularmente claro, caso o leitor saiba tratar-se de um desafio (e no que consiste tal desafio), sem isso há uma certa sensação de “deixado no escuro”.
A execução, escrita e estilo são impecáveis, demonstrando evidente inspiração e elevada capacidade por parte do autor.
Plot Execução Escrita Estilo Desafio
Uma narração imersiva, que nos coloca no lugar de uma árvore e nos faz sentir as suas dores, e bonita. Um grande feito, para um conto tão pequeno.
A escrita é um pouco sacrificada em nome da poesia. Falo especificamente das muitas frases iniciadas com “e” e “mas”, e das vírgulas omitidas.
Plot Execução Escrita Estilo Desafio
Achei o plot simples porém criativo.
Quanto a execução, achei muito interessante essa ambiguidade na história – podemos pensar em diversos protagonistas para esse conto.
Faz uma reflexão sobre a persistência de uma mente inabalável.
“E foi assim que descobri: só podiam dobrar o corpo; o espírito resistiu nobre: sou ébano até fim!”
O estilo de prosa poética ajudou muito o conto, trouxe um ritmo muito mais gostoso de se ler – principalmente em alta voz
Plot Execução Escrita Estilo Desafio
É um texto muito técnico, muito poético. A história é fácil de se perceber quando se sabe qual é o desafio. Apenas quando menciona que um de seus companheiros é seu “braço” direito, e que fora colocado atrás dos demais (além de ser usado como descanso) é que temos a consumação da proposta do desafio. Ainda assim, é feito de forma sutil. O que não é demérito. A história continua voltada para a perna esquerda da cadeira.
Porém, não é um plot que conta muita coisa, embora a maneira que é contada seja envolvente. Mas é um plot comum, até mesmo a outros desafiados.
Em termos de furos, não há, porém, não há também inovação ou elemento distintivo que mereça destaque no próprio plot. Não faz querer saber mais sobre o assunto. Mas, quando o assunto é encerrado, ele passa uma experiência. E aqui mora o mérito: ser levado, usado, acostumado, mudado, subjulgado. Tudo que o ébado passa de sua perspectiva consciente.
Particularmente, o texto apresenta duas coisas que eu não gosto: poesia e experimentação.
A poesia, contudo, não prejudica o texto, embora force, como acho de toda a poesia, à inclusão de elementos descartáveis, ou para rimar, ou para levar à rima.
Exemplifico (aleatoriamente, acredite):
*Houve primeiro um silêncio, os pássaros também calaram. O céu não sussurrou, o sopro se segredou. Mas aí ouvi seus passos. E eis o vento vindo dos verdes vales varrendo a relva, seu assovio soprou anúncios sombrios sem rodeios e o rude rosno rompeu o reino.*
A essência aqui é a chegada dos lenhadores, a antecipação. Talvez, o silêncio é o esvaimento dos animais. É possível. A percepção do próprio Ébano? Não sei ao certo. A prosa poderia aproveitar a poesia e informar apenas o que é necessário. Minha tentativa de caráter meramente ilustrativo: “A chegada dos invasores fez a floresta emudecer. Os animais fugiram ou esconderam ao som dos facões cortando galhos e mato, abrindo caminho. Parecia que até os ventos cessaram seu sopro.”. Se levo em consideração que eu percebi a essência desse parágrafo, a prosa explica bem mais.
Quanto à poesia, não quero dizer que com isso não vejo valor algum. Pelo contrário. Há beleza poética nas construções que cativam o leitor. Como o texto é abarrotado delas, pode ter o efeito contrário para leitores como eu.
A outra questão é a experimentação. Escrever da parspectiva de um cachorro, uma parede, uma planta, nada disso me atrai. Não vejo sentido ou proveito (e olha que eu crio diálogos imaginários com meu cachorro todo santo dia). Então, já sabendo do que se tratava desde o início, eu li com preguiça. Porém, é outro mérito do autor, pois a musicalidade é legal, e um pouco de esforço fez vencer essa barreira.