Bom dia, querida. Tenho que pedir desculpas pelos últimos dias, pois aconteceram umas coisas e acho que já faz três dias que não dou notícias. Tudo fica mais difícil à distância.
Essa mensagem vai ser longa e peço que leia com tempo. Talvez seja difícil de entender a princípio, mas vou deixar tudo detalhado na esperança de que você compreenda a minha atual situação.
Na quinta-feira passada foi o aniversário da morte do meu avô. Acredito que nunca te expliquei exatamente minha relação com ele. Criou-me sozinho, foi bem difícil para ele, nunca teve muito dinheiro, recebemos pouca ajuda, ele nunca reclamou.
Mesmo dois anos depois, a data ainda foi ruim pra mim e ainda sentia que podia ter feito mais para tentar ajudá-lo.
Nesse mesmo dia, comentei sobre esse assunto com uma colega de trabalho, a Ângela, uma senhora que aparece nas fotos da escola, de rosto redondo e cabelo liso. Quando falei sobre isso, ela pareceu interessada, mais do que normalmente você se interessaria em câncer de pâncreas e fraldas geriátricas.
Como não estava bem, acabei falando muito dos meus sentimentos; em especial, dos meus arrependimentos, que talvez pudesse ter pagado um plano de saúde para o vovô e em como eu gostaria que ele me visse ter terminado a faculdade.
Então ela me disse sobre um local que ela e o marido frequentavam, que eles tinham uma história parecida, de uma filha que já se foi e… bem, eu não levei aquilo a sério. Você sabe, meu amor, sempre fui muito cético.
Mesmo nos meus dias mais contemplativos, a ideia de um ser superior me parecia fantasiosa e, às vezes, sádica. No entanto, acredito que essas coisas nos atingem enquanto passamos um momento de fragilidade. E alguns têm um faro para rastrear aqueles que precisam de consolo.
Ângela me disse que conversava com sua filha três vezes por semana e que isso era possível através da extração da alma ou anunciação de fonte universal — uma sequência de palavras juntas que fogem completamente de qualquer racionalidade, mas pareciam ter sentido naquele momento, e agora mal consigo me lembrar.
Ela me chamou, ou melhor, me forçou a concordar que naquele mesmo dia iria com ela e o marido conversar com a filha; disse que isso me convenceria a tentar um contato com meu avô.
Eu sei que parece ridículo e não sei o que me deixou tão emotivo; talvez fosse a data ou a nossa distância. Minha casa nunca foi agitada, mas, às vezes, a opressão que o silêncio me fazia sentir era esmagadora.
No mesmo dia, às nove da noite, Ângela e o marido, Tulio, passaram na minha casa para me buscar; disseram que era mais fácil para que eu não errasse o caminho. Só depois fui entender o motivo: o local não era distante, mas a viela que entramos para chegar não tinha iluminação, nem placas de sinalização; antes de um matagal um casebre cor de rosa desbotado, o telhado era velhíssimo e muito baixo, e não havia número ou outra coisa que a identificasse.
Havia três pessoas na casa quando entramos — achei que seria algo mais “público”, mas aparentemente era uma sessão particular para Tulio e Ângela. As duas mulheres e o homem eram idosos, algo entre cinquenta e cinco e sessenta anos. Acredito que isso já pode ser considerado um idoso. Bem, um deles não nos cumprimentou; o homem de cabelos brancos e rosto sisudo apenas nos encarou quando entramos e foi embora, saiu por uma porta no fundo da casa.
As duas senhoras conversaram normalmente, perguntaram meu nome, me ofereceram água; eram muito simpáticas, faziam parecer que estávamos apenas fazendo uma visita corriqueira a uma tia solteirona; nem dez minutos depois, uma das duas saiu da sala.
Enquanto falavam sobre sobremesas ou algo assim, a velha que ficou puxou Ângela pela mão como se estivesse convidando alguém para dançar. Elas foram em direção à porta dos fundos, enquanto Tulio e eu ficamos sozinhos na sala com chão cerâmico vermelho.
Perguntei para ele o que aconteceria em seguida. Ele estava quase chorando, mas sorriu pra mim e disse que tudo estava correndo normalmente e que apenas precisávamos esperar, porque aquele dia era “a sua vez de brincar”.
Em seguida, os quatro que haviam saído retornaram, e não tenho palavras pra dizer como aquela cena me deixou assustado, ainda que coisas piores estivessem por vir. Os quatro estavam cobertos, totalmente escondidos por vários trapos diferentes. O primeiro a entrar estava oculto por um tapete velho, dois deles estavam embaixo cobertores pretos e o último a passar pela porta se escondia com partes remendadas de roupas que formavam uma colcha de retalhos.
Não havia espaço para os olhos e creio que quem estava embaixo não podia enxergar nada; eles tateavam enquanto voltavam à sala. O que mais chamava a atenção era o que eles traziam na cabeça: cada um vinha com uma espécie de coroa feita de galhos secos, retorcidos e espinhosos.
Tulio os chamou. “Aqui, aqui, estou aqui”, ele dizia, enquanto caminhava na direção dos cegos. Ele se posicionou no meio dos quatro, eles o rodearam e deram as mãos à sua volta.
Começaram a falar, os quatro juntos ao mesmo tempo: “Olá, papai, você demorou. Trouxe o que eu te pedi?”.
Tulio tirou um cubo mágico do bolso, sentou-se no chão e começou a resolvê-lo; as figuras coroadas pareciam olhar para cima enquanto isso. Fiquei assistindo a cena por uns dez minutos — não sei dizer ao certo —, até que os cinco se viraram para mim; até Tulio largou o cubo, que caiu no chão enquanto ele me fitava.
Ele retornou para o meu lado depois de pegar o cubo e o colocá-lo no bolso, passou por baixo do círculo engatinhando e me disse que era a minha vez. “Acho que seu parente chegou, Caio”. Foi isso o que ele disse e eu não quis fazer perguntas; não gostei de nada daquilo, mas era tarde para questionamentos.
Assim que ele saiu, engatinhei para dentro do círculo, sentei no chão como ele estava antes, com as pernas cruzadas. Por um momento, os quatro em volta de mim pareceram voltar os olhares novamente para cima, e então, subitamente, acabou.
Os quatro soltaram as mãos e voltaram a tatear procurando a porta dos fundos. E quando o último deles estava passando o portal, foi que eu vi, por apenas um instante, sangue.
Era tanto sangue que encharcava todo o cobertor velho, sendo bombeado de sua coroa de espinhos como se ela tivesse uma artéria perfurada.
Eu, que até aquele momento não havia sentido nada, nada além de pena do pobre Tulio — inocente o suficiente para pensar que estava resolvendo um cubo mágico com sua filha falecida, enquanto três charlatões e a esposa se fantasiavam de árvore de natal — senti o coração parar; medo além da razão.
Não pensei em nada. Eu não estava enlouquecendo, não ainda. E aquilo não era real. Olhei para Tulio, que estava completamente normal.
Eu, por outro lado, ao que parece, perdi a força instantaneamente, mas guardei isso comigo. Fomos embora e tentei não pensar mais sobre isso.
Na minha carona de volta, não deram uma palavra e foi melhor assim, mas a noite que se seguiu foi provavelmente a pior da minha vida.
Pesadelos indistinguíveis: na escuridão, havia algo que me rondava durante o sono, não sei se era um sentimento, uma entidade ou outra coisa; não que eu acreditasse em entidades, mas houve algo naquela noite infeliz que talvez me tivesse tirado a sanidade, e até agora não sei como descrever o que foi, principalmente pelo estado em que ainda me encontro.
O que com certeza posso te detalhar é que, em algum momento da madrugada, abri os olhos, acordado ou em sonho, e vi um cubo mágico: não com cores embaralhadas, mas perfeitamente resolvido, cada uma das faces de uma única cor.
Eu caí da cama; nesse momento sem dúvidas estava acordado. Senti o chão sob meus pés e trombei na cabeceira. Não havia nada na cama, nem entre os cobertores.
Obviamente, não voltei a dormir; não adiantaria nem tentar. Fiz uma garrafa de café e esperei a hora de ir para a escola — na sexta-feira, eu tinha apenas aulas pela manhã.
Vi sua mensagem, mas algo me fez não responder; não me sentia bem, sinto muito, querida.
Logo na primeira aula, uma das garotas na fileira da frente levantou a mão e me perguntou algo a respeito da Inconfidência Mineira. Antes de responder, aconteceu algo: em um segundo, a menina se tornou pálida e com uma coroa de galhos na cabeça.
Minhas pernas cederam; chamaram uma ambulância e tudo mais. Depois do meu relato, o médico de plantão me encaminhou logo a um colega psiquiatra que também estava no hospital.
Eu não sabia o que dizer e ele me perguntou se eu usava drogas ou se tinha bebido alguma coisa recentemente. Fisicamente, ele me disse que eu parecia bem, mesmo que a pressão arterial estivesse um pouco baixa; disse ainda que foram os eletrólitos ou algo assim e também para descansar um dia antes de voltar a trabalhar. Eu estava prestes a ir embora quando comecei a questionar sobre ver coisas que não existem.
Eu não sei de onde saiu coragem para contar a ele tudo o que tinha visto — acho que não foi coragem, talvez a falta dela inspirada pelas minhas visões. As perguntas mudaram: ele quis saber se tinha tomado uma pancada na cabeça ou se eu trabalhava em exposição à radiação, ao que eu gostaria de ter dito que sim.
O que aconteceu depois, eu não tenho palavras, meu amor, eu sinto muito.
O médico me pediu pra esperar, pois talvez fosse melhor tomar algumas precauções sobre meu caso, e ele saiu.
Nem dois minutos depois, ela entrou.
Estava pálida como a morte — a mesma menina que havia visto mais cedo na sala de aula, mas agora vestindo o cobertor preto; o rosto aparecia por um corte grosseiro no tecido e a mesma coroa gotejava sangue do cobertor para o chão do consultório.
Eu fiquei de pé num salto, de frente pra ela. E, dessa vez, não foi só um instante.
Meu amor, eu não sei nem como aconteceu; e ainda estou tentando entender o motivo disso tudo.
Quando essa aparição caminhou na minha direção, estendeu a mão para mim com o brinquedo que sonhei. Eu me desesperei, perdi a cabeça: tirei algo da mesa do médico, um grampeador de papel, e acertei no rosto dela para tentar me livrar daquilo.
Quando ela caiu, não era mais uma garotinha, mas uma enfermeira sangrando um jorro vermelho e bem real no chão. Ela começou a gritar desesperadamente e tentei ajudá-la, mas ela fugiu de mim se arrastando para fora do consultório. Não demorou muito e eu estava sob custódia da polícia.
Não adianta te explicar muito mais. A enfermeira perdeu um olho.
Passei a noite na delegacia e me trouxeram novamente para o hospital hoje de manhã para ser medicado; eu estava muito agitado. Agora, estou indo para uma clínica psiquiátrica enquanto aguardo minha audiência, e as visões não pararam. Não faz sentido descrevê-las mais.
Terei que responder legalmente por tudo isso.
Espero que essa mensagem não seja uma despedida eterna. De qualquer forma, preciso melhorar. Os remédios que tomei já me tiraram muito das faculdades; me sinto lento, apático… não sei se vou conseguir entrar em contato por um tempo.
Editado: Acabei de ouvir duas pessoas falando no corredor. Aquela enfermeira se chama Karine e, quando acordou, mesmo com os sedativos, começou a gritar dizendo que havia uma garota a chamando para brincar com um cubo mágico. Não sei o que significa, mas não venha me ver.
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Plot Execução Escrita Estilo Desafio
PLOT: Achei bem legal.
EXECUÇÃO: Personagem bem construído; a trama avança bem (e pra um lugar inesperado); temática bem desenvolvida; boa ambientação.
ESCRITA: Muito boa, acima da média.
ESTILO: É pouco literário, mas se mantém coerente ao formato (oral e epistolar).
DESAFIO: Cumpre muito bem.