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O Cortejo

No vigésimo ano do reinado de Morgulin, terceiro monarca da dinastia Lua Crescente, a princesa Cerulin, a mais velha dos filhos do rei, receberia a coroa e, assim como seu pai e seu avô haviam feito, reinaria vinte anos como a rainha guerreira da nação Marcabra. Antes de seu aniversário, data marcada para a coroação, Cerulin deveria se casar para garantir o nascimento do novo rei guerreiro da Lua Crescente. Assim que os preparativos da festa estavam prontos, a princesa, assentada em seu trono, aguardou seus pretendentes, que deveriam banquetear e cortejá-la da melhor maneira que julgassem.

Assim foi feito. Cartas foram despachadas para todos os clãs e famílias de Marcabra.

Da maior até menor, se assim desejassem, enviariam seus pretendentes; nem todos tiveram tal ousadia. Os grandes clãs escolheram seus maiores guerreiros, com nomes de fama e títulos de batalha, como Orelo Vento-Forte do clã Sem Sangue, ou o próprio Ronor Nunca Dorme, líder do clã Furioso.

Famílias de menor valia fizeram o mesmo: enviaram druidas, adivinhos e sábios que, por vezes, fizeram pesar a balança de uma batalha a favor de Marcabra com sua ciência e estratégia. Por fim, poucas famílias de artesãos se atreveram a enviar seus rapazes: artífices, alguns ferreiros e armeiros, um criador de espadas renomado e outro que domava garanhões; nenhum fazendeiro.

Por dezoito dias, a princesa esteve perante o salão do raiar da alva até que a lua se colocasse mais alto no céu. Ela avaliou seus candidatos num banquete que parecia interminável – não se abalou, nem se afadigou. Se nunca fugira de nenhuma responsabilidade, não seria agora, prestes a se tornar a rainha guerreira Lua Crescente.

Nenhum a agradou, nenhum deles demonstrou o que ela queria ver, ninguém lhe disse o que precisava ouvir; nem o homem à sua frente, nem suas famílias a presentearam com algo que ela não tivera. Mas então, o som do alaúde chegou aos ouvidos da princesa, com uma melodia aliada a uma voz que dizia:

Deixem-me passar,

Suas armas não podem me segurar.

Não sou eu apenas um,

Mas também a voz do desjejum.

Pela manhã cantei com mil canários.

Iniciem os ritos, preparem os cenários,

Porque este que vos proclama 

Será aquele que desposará a dama.

A confusão que se iniciou depois não durou muito. A princesa, imaginando do que se tratava, ordenou que o pretendente adentrasse o salão do banquete. Assim se encontraram a princesa e o vagabundo.

Ela permitiu que o jovem rapaz entrasse. Bonito e desleixado, viola pendurada ao pescoço, gingando e recitando versos, falando de orquídeas e crisântemos. Ele parou em frente ao trono, fazendo uma reverência.

– Agora você reverencia a sua futura rainha? – perguntou ela, de cenho tão duro e profundo que parecia esculpido em mármore cinza.

– Claro, minha senhora, de que outra maneira entraria em sua presença? – sua voz ainda estava em uma canção.

– Ouvi você dizer à minha porta que ainda hoje desposaria uma dama. Talvez confundiste o palácio de meu pai com um bordel, para que anunciasse qual fêmea levaria para seu leito.

– Não me entenda mal, princesa, queria apenas te despertar a curiosidade, para que pudesse me apresentar.

– Você a tem e a desperdiça. Perco meu tempo ainda antes de dizer seu nome sem valor.

– Perdoe minha indignidade, mas como a princesa costumeiramente avalia o valor de um nome?

– O valor de um nome é dado pelo dono do próprio nome e não pela realeza. Não o conheço, nem sua entrada foi anunciada nesta corte, pois você mesmo não valorou a sua graça.

– Esse foi seu caso, minha princesa. Seu nome seria o mesmo sem seu título?

– Insinua que meu nome é menor que minha coroa? Que meus feitos não me tornam mais digna de assumir o lugar a mim destinado do que qualquer outrem? – a voz da princesa era calma, mas já havia perigo no ar.

– Não me entenda mal, majestade. Reitero que apenas quero te despertar o interesse. Mas sobre o que está destinada a fazer, isso me interessa, afinal estou aqui por um lance do destino. Creio que ele tende a nos unir.

– E novamente te direi, minha atenção você tem, mas não meu interesse. Agora diga seu nome e de onde veio, ou vire-se e siga o seu caminho.

– Sou Elanderel, o trovador, contador de epopeias, recitador de poemas, nascido do outro lado do grande rio, nas terras de Jaereb.

– Me livre dos seus poemas e suas músicas, Elanderel,. Nada disso importa a mim. Diga sua intenção e julgarei se me tem utilidade.

– Minha intenção é expressar meu amor por ti e tê-la como esposa – pela primeira vez, ele a olhou nos olhos, abandonando o tom zombeteiro.

Por apenas um instante, a rocha esculpida na face da princesa se tornou de carne e ele percebeu. 

– Centenas de Marcabrios, guerreiros poderosos, homens de imensa sabedoria e engenhosidade estiveram onde você está agora. Nenhum deles atingiu o seu intento. O que te faz pensar que você é melhor que algum deles?

– Minha senhora, você me faz pensar que sou melhor que eles. Sozinha, sem auxílio, dispensou todos os outros, mas eu ainda estou aqui.

– Muito bem, estrangeiro, você é perspicaz, eu admito. Mas por que Marcabria precisa de uma raposa impertinente ao lado de sua rainha?

– Não tenho essa resposta, minha dama. Mas talvez a rainha precise de uma raposa impertinente para reinar em Marcabria. Quem poderia dizer se não ela mesma?

– Sim, claro, a rainha de Marcabria precisa de um trovador, um homem que canta a glória de outros homens. Qual é sua glória, bardo?

– Não tenho glória, milady. Esse papel eu deixo ao belo lírio do vale com quem venho sonhando. Não canto a epopeia de outros, canto apenas sua beleza e coragem desde o dia que ouvi as histórias que a precedem.

– Sim, claro, bêbado e sonhador. Agora devo te aceitar como esposo, pois disseste que amas uma princesa com a qual sonhaste? És homem humilde quanto ao que fez, mas arrogante sobre o que vais fazer.

– Modéstia à parte, minha princesa, seria a melhor de todas as canções: o bardo que desposou a rainha guerreira.

Um pensamento transpassou a princesa, mais forte que qualquer espada. Foram mais sorrisos junto de Elanderel do que em todos os últimos dezoito dias. Ele percebeu.

– Sim, está aqui atrás disso. Uma nova canção apenas sobre o tempo que passou cortejando a rainha. Poderia te contratar como bobo, ganharias um pernil ao fim dos banquetes.

– Se com tal canção for agraciado, a recitaria somente à senhora.

– Somente isso sabes fazer? Cantar? O que poderia ensinar ao filho da rainha guerreira se não dominas a magia ou a espada?

– Minha rainha, por que procuras alguém que sabe dominar uma espada? Quem mais apropriado que tu mesma a ensinar à sua prole a arte de manusear a lâmina? E quanta magia há escondida no clã da Lua Crescente? A mim cabe ensinar o amor e a misericórdia.

– Você nunca teve misericórdia, bardo. Fracos não têm misericórdia. Mesmo que tivessem, a quem demonstrariam?

– Tens razão, sábia dama. Não pude mostrar misericórdia muitas vezes, mas fui constrangido por ela inúmeras vezes, pois eu mesmo sou fraco. E novamente, não se esqueça do amor que te declaro.

– Vós é que sois sábio, bardo. Agora me diga, o que tens para oferecer à coroa da Lua Crescente? Ou pensas que se casará e desfrutará dos bens de minha família por toda a vida sem nada acrescentar? Se teu presente me agradar, pensarei em teu pedido.

Ela acreditou que o havia cercado.

– Não tenho nada a oferecer.

– É isso? Desiste, então? Não irá responder de forma que me tire as palavras?

– Creio que essa é sua vontade, mas não, majestade, talvez seja a hora que tu irás me oferecer algo.

– Como? Mais do que o título de marido da rainha guerreira? Mais do que as posses e os rebanhos? Mais do que o poder e o exército de Marcabria? Creio que esse reino não está à altura de um vagante sem rumo.

Agora ela ria, aguardando como o trovador responderia a uma pergunta dessas.

– Me ofereça nada, assim como te ofereço, princesa, nada que possa ser roubado ou morrer, mas me ofereça apenas seu amor.

Ela emudeceu.

– Te ofereço algo que nenhum outro homem ofereceu ou irá oferecer. Ou crês que algum dos homens que vieram antes de mim, vieram aqui por ti apenas? Crês que algum deles, tão sedentos de glória e títulos como são, ainda antes de provarem o sabor do trono, abandonariam as riquezas e o poder por ti?

– Então pedes que eu abandone a coroa? Abandone tudo o que fiz por este reino para que me lance contigo em uma aventura sem olhar para trás enquanto tudo desmorona?

– Teu irmão mais novo é um valente guerreiro e sábio estrategista, poderia assumir em seu lugar. Ainda assim, que tipo de amor seria o meu se eu te pedisse que abandonasses os intentos de seu coração? Mas não seria meu amor verdadeiro, rogando que troques toda glória e poder para comigo vivê-lo?

Sem espada, o bardo havia perfurado o coração, abrindo a armadura de aço que ocupava o trono. Ele percebeu.

Acabados os dias de seu pai, o rei guerreiro da Lua Crescente, como ordenava o regimento, ele deixou a coroa para sua filha Cerulin, a rainha regente que a manteve até que seu irmão mais novo cumprisse o rito de casamento a fim de proporcionar a prole de onde sairia um novo rei guerreiro. Enquanto isso não aconteceu, foi cortejada por seu pretendente Elanderel, cujo maior feito foi desposar a rainha guerreira regente de Marcabria.

 

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