Menu fechado

O Caminho dos Homens

O alarme soou às seis. Facchini tateou embaixo do travesseiro até encontrar o celular. Sentou-se na cama, esfregou os olhos e lembrou-se: sábado, dia da natação.

Quando perdeu Lis para o câncer, mal teve tempo de se despedir da esposa ou da vida que tinha. Restavam a natação e o futebol, mas não como antes.

Mateus, na época com cinco anos, teve de se adaptar aos cafés-da-manhã não tão bons do pai. Era novo demais para entender a finitude da vida, velho demais para ser poupado da dor.

Facchini prometera à esposa, quando Mateus nasceu, que criaria um homem de verdade — nem frouxo, nem bárbaro.

Três anos depois, a ferida continuava aberta, mas ambos haviam aprendido a conviver com ela.

Parou na porta entreaberta do quarto do filho, observando-o dormir. Oito anos já. Suspirou e entrou.

— Mateus, acorda. Tem natação.

O menino se remexeu debaixo das cobertas, mas não abriu os olhos.

— Vamos, levanta.

— Mas, pai, hoje tem o jogo!

— E vai continuar tendo depois da natação.

Na cozinha, tentava não desviar os olhos dos ovos na frigideira — sabia do risco, ou melhor, da força do universo que agia contra espiadelas.

Na mesa, um copo de leite posto para o filho.

— Bebe tudo, Mateus. Leite tem cálcio, deixa a gente forte.

— Eu sei, mas não gosto muito de leite, pai.

— Um homem precisa de força. O leite ajuda.

Mateus fez uma careta, mas bebeu em pequenos goles.

— Lembra que hoje o almoço é na vó.

— Tá bom. E a gente vai passar pela exposição?

Desde que vira, dois dias antes, aquele grupo de motoqueiros na frente do parque de exposições da cidade, não falava de outra coisa.

— Talvez no caminho de volta, se der tempo.

Uma pausa para outro gole, ainda esperando os ovos.

— Será que a gente ganha hoje?

— Vamos torcer, né? Mas se não ganhar, não tem problema, viu? Ganhar não é tudo.

— Tá, mas eu quero é ganhar.

No carro, a caminho da natação, Mateus parecia perdido em pensamentos.

— O que foi, filho?

— Como a gente sabe quando é um homem de verdade?

Depois de uma pequena espera, Facchini respondeu:

— Ser homem tem a ver com respeito. E com fazer o que é certo, mesmo quando ninguém está olhando.

— É que todo mundo diz que homem não chora, mas ontem eu te vi…

— Quem disse isso está enganado.

Na piscina, Mateus se esforçava para acompanhar os colegas. Não era o melhor, mas nunca desistia. Facchini observava da arquibancada. Orgulhava-se da perseverança do filho.

Durante o intervalo, Mateus foi até o pai.

— Pai, o Guilherme disse que eu nado que nem menina.

Facchini franziu a testa.

— E o que você acha disso?

— Fiquei bravo, mas não bati nele.

— Fez bem. E o que você disse?

— Que a professora nada melhor que todo mundo aqui.

Facchini riu, bagunçando o cabelo do filho.

— É isso aí.

Dali, passaram no supermercado. Na fila do caixa, uma senhora idosa deixou cair as compras.

— Ajuda, Mateus.

O menino correu para pegar as laranjas que rolavam pelo chão; Facchini ajudou a recolher o resto.

— Que cavalheiro! Obrigado.

Mateus assentiu, mas ficou envergonhado demais para dizer algo.

Compra feita, saíram de carro com destino ao almoço em família.

— Pai, como é que a gente sabe o que falar quando todo mundo está olhando?

— Como assim?

— Quando tem um monte de gente olhando e a gente precisa falar alguma coisa.

— Ah, isso é complicado mesmo. Mas olha, você não precisa ter vergonha quando faz uma coisa certa. E nessas horas, quando todos estão olhando, você pode pensar rápido e falar com confiança.

Mateus fez uma cara pouco confiante.

— Quer dizer, não tem problema ficar em silêncio. Mas, às vezes, a gente tem que responder na hora, sem medo.

— Não pode ser bunda mole, né?

— Isso! Mais ou menos isso.

— Mas e se eu falar uma coisa errada?

— Todo mundo fala besteira de vez em quando. O importante é aprender com os erros. Se errar, é só voltar atrás. Ninguém é perfeito, entendeu?

Durante o almoço, Facchini ouviu o cunhado fazer um comentário depreciativo sobre a nova vizinha.

— Você já viu como ela se veste pra levar as crianças na escola? É praticamente um convite!

Ele riu esperando cumplicidade. O silêncio na mesa foi cortante. Facchini olhou de relance para Mateus, que acompanhava a conversa atento.

— Não vi. E nem me interessa — respondeu com calma estudada. — Mas se você está tão preocupado, podia oferecer uma carona, já que você sai no mesmo horário.

O constrangimento foi imediato. A irmã de Facchini sorriu e sua mãe aproveitou para mudar de assunto. A conversa seguiu; Mateus sempre alerta.

Mais tarde, quando se dirigiam para a final do campeonato de futebol juvenil, Mateus dividia os pensamentos entre a ansiedade do jogo e a situação do almoço, até que quebrou o silêncio:

— Pai, o tio Pedro ficou bravo com você?

— Provavelmente. Mas, às vezes, é preciso desagradar se quiser fazer o certo.

— E o que ele disse foi errado?

— Pense assim: se alguém falasse da sua mãe daquele jeito, como você se sentiria?

O rosto de Mateus endureceu. Facchini não viu a única lágrima que escorreu, rapidamente enxugada.

*****

O carro estava de volta à rodovia sinuosa. Os faróis recortavam a escuridão da noite enquanto ambos voltavam da competição. O troféu de segundo lugar descansava no banco traseiro.

— Não precisava ter me defendido daquele jeito — murmurou Mateus, olhando pela janela.

Facchini manteve as mãos firmes no volante.

— O treinador estava errado em gritar com você daquele jeito.

— Mas perdi o gol. A gente poderia ter sido campeão.

— E isso justifica humilhar alguém na frente de todo mundo? Não, filho. E como homem, ele precisava ouvir aquilo, precisava arcar com a consequência do que fez.

A luz do painel iluminou o rosto do menino. Os olhos de Mateus ainda guardavam o brilho das lágrimas contidas durante a cerimônia de premiação.

Facchini sorriu de leve, sem tirar os olhos da estrada.

— E isso não é só sobre ele. Estou tentando te ensinar a ser um homem de verdade, que se respeita e respeita os outros. O que aquele treinador fez foi desrespeitar você.

Mateus ainda pensava sobre aquilo quando avistou algo.

— Pai, olha lá! — apontou animado.

Facchini seguiu a direção do dedo do filho e viu motocicletas estacionadas em frente a um bar à beira da estrada.

— São daquelas, não são?

— Sim, Harley Davidson.

Já estava prestes a dizer que não podiam parar quando Mateus anunciou:

— Pai, preciso fazer xixi.

— Agora? Não pode esperar até chegar em casa?

Mateus mordeu o lábio inferior.

— Acho que não, pai.

Achou suspeito, mas olhou para o ponteiro do combustível, depois para o bar pelo retrovisor.

— Tá bom, vamos parar ali.

Fez a volta, já um tanto arrependido.

— Fique perto de mim, ok?

O bar tinha um letreiro néon vermelho piscando “Ronco Bruto”.

Estacionou o carro em frente e já ouviu um som abafado de rock antigo. A fileira de motocicletas imponentes se alinhava na entrada. Mateus desafivelou o cinto em um segundo e mal tentou esconder a euforia crescente.

— Vamos entrar rápido, usar o banheiro e sair, certo?

Ao se aproximarem da entrada, Facchini sentiu uma pontada de apreensão. Quando empurrou a porta do bar, foram recebidos por um ambiente esfumaçado e escuro. A conversa diminuiu quando eles entraram, com olhos se voltando para examinar os recém-chegados.

O cheiro de cerveja e couro velho impregnava o ar. Uma dúzia de homens corpulentos, a maioria vestindo jaquetas de couro preto com insígnias de motoclubes, ocupava as mesas. Facchini sentiu Mateus apertar sua mão.

Caminharam até o balcão, onde um homem espalhafatoso com barba grisalha e braços cobertos de tatuagens limpava copos com um pano que certamente já tinha visto dias melhores.

— Oi. Meu filho precisa usar o banheiro — disse, tentando soar casual.

O bartender olhou de Facchini para Mateus, depois de volta para Facchini.

— Banheiro é só pra quem consome, parceiro.

Facchini sentiu o olhar de todos. Percebeu que Mateus cruzava as pernas, em desconforto evidente. Está apertado mesmo.

— Então desce aí uma coca… — começou a dizer, mas notou os olhares zombeteiros de alguns homens próximos ao balcão. Pigarreou e emendou: — Conhaque. Uma dose de conhaque.

Por algum motivo, bateu o punho cerrado no balcão — e com mais força do que pretendia. Mateus não perdia um detalhe.

Um motoqueiro particularmente grande, que parecia ter saído de um filme, fez sua provocação, com um sorriso malandro, aproveitando o constrangimento dos dois:

— E o moleque?

Antes que Facchini pudesse reagir, Mateus se adiantou:

— Eu quero um copo de leite.

Piscou para o pai.

Uma risada curta ecoou pelo bar. Mateus levou alguns segundos para compreender, corar e reagir tal qual o pai, pensando rápido e batendo o punho no balcão:

— Num copo bem sujo!

O silêncio dominou o lugar antes que o homenzarrão da jaqueta de couro soltasse uma gargalhada trovejante.

— Isso, sim, é leite de macho!

O bar inteiro explodiu em risadas e assobios. A exclamação foi seguida de um tapa nas costas do pai, que quase caiu para frente. O bartender, agora sorridente, apontou para uma porta nos fundos.

— O banheiro é ali. E o leite é por conta da casa, mas só temos em copo limpo, se não se importar — e virou-se para o pai: — O seu moleque arrebenta!

— Esse é dos nossos! — comentou alguém.

Facchini acompanhou Mateus até a porta do banheiro.

— Você se saiu bem.

Mateus sorriu.

— Eu fiz igual você, né?

Facchini assentiu, orgulhoso.

Enquanto esperava, foi abordado pelo motoqueiro.

— Ele tem personalidade — comentou. — Sou Mike.

— Pois é. Eu sou o Facchini. Aquele é o Mateus.

Mike estendeu a mão, que Facchini apertou.

— Faz tempo que não vejo um pai ensinando o filho a ser homem de verdade; sem essa frescura de hoje em dia, mas também não como inventam pela internet.

Facchini tinha um sorriso desajeitado.

— Não é fácil. E hoje não é lá um bom dia.

— Por quê?

— Estamos voltando de um torneio de futebol. Segundo lugar — deu de ombros.

— Acontece.

— Ele perdeu um gol importante. O treinador gritou com ele na frente de todo mundo.

— E o que você fez?

— Disse ao treinador que se continuasse tratando crianças daquele jeito, o próximo torneio ele assistiria do hospital.

Mike soltou uma risada curta e aprovou com a cabeça.

— Justo!

Pelo vidro da porta, Facchini viu as motos lá fora.

— Eu queria te pedir uma coisa.

A conversa seguiu e, quando Mateus voltou, um copo de leite o esperava no balcão.

— Ei, menino — disse Mike. — Segundo lugar hoje? Nada mal!

Mateus sorriu e terminou seu leite. Limpou a boca com as costas da mão imitando inconscientemente o gesto de um dos motoqueiros próximos. Mike continuou:

— Já andou numa dessas?

O dedo apontava para a ilustração na janela. Os olhos de Mateus brilharam.

— Seu pai vai te levar pra uma volta, que tal?

Mateus mal podia acreditar.

Enquanto saíam pela estrada, Mateus gritou contra o vento:

— Pai, eu fiz certo lá dentro?

— Fez, filho. Muito certo.

Mateus apertou os braços ao redor da cintura do pai, enquanto a moto devorava a estrada.

Minutos depois, a caminho de casa, Mateus permanecia silencioso no carro, com um sorriso fixo nos lábios.

— Foi uma noite e tanto, hein? — comentou Facchini.

— Que demais!

— Ficou com medo deles?

— Fiquei um pouco!

Os dois riram. Mateus acrescentou:

— Acho que a mamãe ia gostar de ver a gente numa moto daquelas.

Facchini sentiu uma pressão no peito. Os olhos arderam.

— É, filho. Acho que ela ia gostar muito.

Mateus bocejou, recostando-se no banco.

— Pai?

— Diga.

— Quando crescer, quero ser como você.

Facchini segurou ao máximo na garganta a emoção inesperada. Não respondeu de imediato, concentrando-se na estrada. Quando se sentiu pronto, disse:

— Seja você mesmo, filho. Mas se quiser ser como alguém… seja como sua mãe. Ela, sim, sabia o que era ser forte de verdade.

Quando olhou para o lado, Mateus já dormia. Facchini sorriu, ligando o rádio em volume baixo. A noite seguia seu curso e eles também; pai e filho juntos no caminho dos homens.

Você não tem permissão para enviar avaliações.

Nenhuma avaliação encontrada.