Menu fechado

O Café da Manhã de um homem (quase) insano

Morreste em seus sonhos; acordaste, no entanto, para vida. Desgrudaste da cama com pretensões de, futuramente, retorná-la; calçaste seus pés no chão, frio e rígido, e arrastaste-os para seus chinelos. Com suas pálpebras semelhantes aos antolhos, carregaste até a cozinha e, por conseguinte, sentaste à mesa.

Aproveitando da educação do vazio que sempre lhe concedia a vez, dormiste em ti e sonhaste, agora com os olhos bem abertos em direção à mesa, com as cenas de uma vida; em um ato de compilação e relembrança, estilhaços de memórias cortaram-lhe o coração, que suplicava pelo seu choro e queda.

Na sua frente, como uma sentinela, havia um rapaz que fazia a vigília – quase como se zelasse pelo o que tu estavas fazendo e, consequentemente, espantava-se pela sua postura fixa e feia, como de uma carranca. Ele deixou, no entanto, a guard; inclinou-se rente a sua pessoa, jogou-te o seu bafo e, de maneira abrupta, disse-te:

– Tem alguém te chamando; está gritando muito lá fora, é melhor sair e atendê-la. He he…

Perdeu-se em si, continuou o rapaz saindo da cozinha, e não vai mais acordar, porque queres continuar vivendo o sonho e, concomitantemente, dormir para vida.

Continuava a olhar, de maneira determinada, em direção à mesa branca; sentiste, de repente, um tapa. Não doeu, mas te deixaste inquieto e investigativo; olhavas para os lados a fim de procurar o autor. Percebeste, nesse instante, que estavas com sede. Barulhos audíveis, mas não descritíveis, propagando em todas as direções, cortavam a inquietude do local, contornando a escuridão em todas as suas dimensões.

Enquanto mataste a sede, sua inquietação nascia à medida que os barulhos aumentavam; não percebeste, em razão disso, sua ferida: o copo quebrara em sua mão. Contíguo aos passos, o sangue marcava o chão, açoitando-o, enquanto seguias o barulho; despediste da cozinha como um ponteiro de segundos: rápido e com intenção de não permanecer.

Conquanto fossem indescritíveis, os barulhos funcionavam como um caminho, levando-te sem destino. Eles proporcionavam, ao mesmo tempo, uma viagem fria e misteriosa, que é certa quanto ao início, mas incerta quanto ao fim; querias, mesmo assim, continuá-la, bem como desfrutá-la, e senti-la em cada nuance. Tudo era escuro e vazio, mas não se sentias só: a sensação era como uma concessão. Alguém, de fato, deixaste segui-la.

Com tempo, ficaste cego pela luz; esta crescia sua intensidade e brilho à medida que ficava mais distante – não a alcançavas, apenas a vias. Querias – confessa – chegar até ela e repousar sob o manto da sua claridade.

Rasantes de ventos, permeados por um aroma forte de rosas, bateram no lado direito da sua face, chamando-te para uma porta meia aberta que se fixava próximo a ti; querias ignorá-la, bem como vê-la. Decidiste, assim, continuar a sua abertura: atravessaste-a.

A escuridão continuava – parecia mais forte e abundante. Esta, no entanto, com uma certa misericórdia, concedeu-te a oportunidade de ver uma escada, com degraus velhos e grandes, cujo fim não se vislumbrava. Como uma criança em seus passos iniciais, confiaste em suas pernas e, sem volta, desceste degrau a degrau; a esperança, juntamente com a luz, guiava-te na descida íngreme.

Os atritos de seus passos de encontro aos degraus, o ranger destes e os barulhos compunham – ao que parece – o seu réquiem. A escuridão, em sua atitude de maestro, controlava as notas, guiando a ópera de sua (quase) insanidade.

Caíste – não porque a escada quebrou, ou porque precipitaste em relação aos degraus, mas porque ela terminou e não te avisara. Com a barriga ao chão – que continuava frio e rígido –, levantaste a cabeça, em cujo ato contínuo giraste o corpo e ergueste.

A luz, que antes corria, cobriu-te com seu manto da claridade: ela afagava e acalmava. Sua mão ferida ficara restabelecida, como se reconstituísse a fim de deleitar-se com este momento. Ela te permitiu ver-te e sentir-te, mostrando coisas que querias, como também as que não querias. Nestas, percebeste um animal semelhante à serpente – pelo menos do ponto de vista morfológico –, posicionado em círculo, expandindo-se em proporções que ocuparam todo o cômodo.

Ela não parava de expandir-se. Começou, além disso, a girar. À medida que se movia, aumentava suas dimensões – estava já ocupando quase todo o espaço. Percebias, ainda que de relance e de forma confusa, que o espaço encurtava. Não deu tempo de absorver. Foste exprimido, cessou-se imediatamente os barulhos.

Morreste em seus sonhos; acordaste, no entanto, para vida. Desgrudaste da cama com pretensões de, futuramente, retorná-la…

Você não tem permissão para enviar avaliações.

Avaliações

4 avaliações encontradas.

Plot Execução Escrita Estilo

Um plot interessante, cujo título deixa claro que é sobre um homem quase insano, mas, que bem poderia ser insano. Por ser um quase insano, não há uma linha coerente com a sanidade, o que foi uma escolha muito interessante por parte do autor. Não ficou, porém, claro para mim quem é o narrador e por isso tive dificuldades para “encaixar” no desafio da segunda pessoa.

Também, ainda sobre o plot/enredo, parece mais próximo de uma crônica ou de uma cena de algo maio, do que de um conto, com começo, meio e fim, acho que o autor pecou um pouco aqui, mas no geral achei bom e com boa escrita.

Plot Execução Escrita Estilo

O plot e a execução são perfeitamente alinhadas, o plot trata da insanidade do protagonista e a execução me fez entrar na confusão do personagem, eu tenho duas interpretações – espero que um delas esteja certa kkkk

1. Ele desperta do sonho caindo em um novo sonho, por isso o final do conto faz uma conexão com o início do mesmo.
2. O protagonista é um soldado que tem estresse pós traumático e tem um ataque durante o café da manhã, ao ouvir os barulhos

Plot Execução Escrita Estilo

*Desgrudaste da cama com pretensões de, futuramente, retorná-la,*
PONTO FINAL

*…agora com os olhos bem abertos em direção à mesa…*
VÍRGULA DEPOIS DE “AGORA”.

O desafio é muito técnico, portanto, ele dificulta que plots interessantes sejam desenvolvidos, mas não impossibilita.
Esse conto tem significado aberto. Mas como todos os enredos dessa estirpe, está limitada ao texto. O autor nos conta elementos que são pistas do que está acontecendo. Mesmo assim, é difícil ter certeza.
É um sonho, uma alucinação, ou o dia todo de alguém completamente (e não apenas quase) alucinado?
As possibilidades são muitas, e isso é interessantíssimo.
O símbolo da luz, a serprente, o espaço diminuindo, a morte em sonho para despertar para a vida, tudo são elementos que colaboram para a riqueza do conto.

Ele peca, para mim, em outros aspectos.
A razão da segunda pessoa não fica clara no texto. É um analista, um psiquiatra o narrador? E quem é o narratário? O próprio paciente? Como isso não fica claro, parece arbitrário.

Quanto ao enredo, não parece que há um desfecho. É um conto semelhante a um crônica, da vida de um dia de alguém que é insano (ou quase, como o título sugere). Mas como o mistério é muito grande e aberto, o que é um mérito pode, também, ser um demérito. Quando lemos ou assistimos um mistério, queremos, no mínimo, termos uma pista do que seguir para a solução. Se há pistas suficientes no texto, me escaparam.

Plot Execução Escrita Estilo

É difícil manter a narrativa coesa em segunda pessoa (a sensação, mais ainda) e deu certo. É um conto muito legal que eu gostaria de ter escrito. Achei a execução da ideia boa para a proposta, mas o plot tem uma limitação muito grande que também fez a execução sofrer: o avanço da trama, os temas secundários e a construção de personagem. O estilo é bom para a proposta, mas é um tanto cansativo. A escrita sofre um pouco com o estilo em questão de pontuações, mas tem uma escolha interessante de vocabulário (tem só que tomar cuidado pra não exagerar).