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O Anjo

A primeira vez que o vi foi no meu acidente; na verdade, não lembro muito bem, e quando penso naquela noite, há apenas “flashes”, luzes, sombras, é quase como tentar lembrar-se de um sonho de dez dias atrás.

Ainda assim, o pouco que me lembro é dele, um vulto que ficou comigo até o socorro chegar e depois seguiu a ambulância com seu carro, de tal maneira que entramos no hospital juntos.

Acordei algumas horas depois e ele estava do lado da cama, esperou até um parente meu chegar, para só então ir embora. Estava com olhar bem atento, me observando, e perguntou seguidas vezes como eu estava me sentindo, se havia muita dor e onde estava doendo.

Fiquei pouco tempo acordado. Nem lembro quais respostas dei e, apesar da dor, estava tão cansado que adormeci rapidamente. Saindo do hospital, contei para uma enfermeira o que havia acontecido e perguntei se ela sabia quem era aquela pessoa. Ela hesitou, porém disse:

– Não sei o nome, mas ele aparece aqui de tempos em tempos.

Fiquei uns dias em casa, pensando nele, um verdadeiro anjo para mim, pensei em como faria para reencontrá-lo, mas sequer sabia o nome dele. Quando a vida recomeçou, comecei a frequentar o hospital duas vezes por semana para dolorosas sessões de fisioterapia e, por sorte, reencontrei o Anjo. Apesar de minha lembrança turva, o reconheci na hora, e só então percebi que era um homem alto e magro. Ele também me reconheceu assim que me viu. Eu caminhava com dificuldades; usava uma bengala e andava com lentidão, mas ele se aproximou rapidamente, com passos decididos e pouco espaçados.

Assim que ele chegou perto de mim, eu lhe disse:

– Perguntei sobre você, mas ninguém soube me dizer…

– Cá estou, eu também queria saber sobre você. Como está? Ainda com dores?

Conversamos um pouco sobre as dores que eu sentia e em que lugares do corpo. Tentei evitar, mas acho que estava gostando de falar de mim, mesmo sobre um assunto tão ruim, por isso acabei sendo descritivo enquanto falava sobre minha dor. Seus olhos brilhavam e ele nada dizia enquanto ouvia meus longos lamentos, falei mais tempo do que manda a boa educação, mas ele não pareceu ter se incomodado. Continuei e contei sobre a fisioterapia, dois dias por semana:

– É doloroso, bem sei, mas também é necessário.

Só então percebi que apenas eu havia falado egoisticamente durante todo esse tempo, por isso acrescentei em seguida:

– Mas e você? Como está? O que está fazendo por aqui hoje?

Ele falou pronunciando cada palavra e cada letra, porém sem ser tedioso. Afinal de contas, um bom ritmo.

– Estou muito bem. Venho aqui com frequência, gosto de ajudar, sinto-me bem com isso, então ajudo.

Realmente ele era um Anjo. Perguntou-me então sobre as sessões de fisioterapia, como eu estava indo, como elas eram, se eu faria alguma sessão naquele dia. Expliquei que havia terminado uma havia pouco, mas que voltaria em breve, em dois dias. Estava agora fazendo duas sessões por semana, seguindo a recomendação médica. Mas então ele disse, meio casualmente:

– Excelente! Se quiser, eu acompanho você nas próximas.

Achei uma proposta estranha, nunca ouvi algo assim antes, por isso perguntei, meio que para confirmar se eu havia realmente ouvido aquilo, se ele queria me acompanhar.

Sim. Ficarei na sala com você, porém quieto, apenas para apoiá-lo. Provavelmente fiz uma cara que demonstrava toda a estranheza da situação pois logo em seguida ele acrescentou:

– Faço isso com outras pessoas, é muito bom. Farei isso na sua próxima sessão e você verá do que estou falando.

Sinceramente nem pensei nesse assunto até encontrá-lo novamente no dia da sessão de fisioterapia, entramos juntos e a doutora nada disse, ele era conhecido. Sentou-se não muito longe, nem muito perto, eu não podia vê-lo, porém sabia que ele me observava. Quando realmente comecei a sessão, com todos os exercícios, passei a ignorá-lo completamente, a dor, a dificuldade e a concentração no que estava fazendo me fizeram esquecer tudo. Em algum momento acabou, não posso dizer que o tempo voou, estava mais cansado dessa vez do que na última sessão, me levantei e só então percebi a presença do Anjo, ele estava animado e com os olhos brilhando. Solicitamente me perguntou o que eu sentia e comentei sobre a sessão, falei sobre algumas dores e um certo cansaço, talvez maior do que na última vez. Ele nada disse, porém observava atentamente. Por fim ofereci uma carona, que ele recusou polidamente:

– Não. Mas agradeço. Ainda vou acompanhar outras duas pessoas. Mas por que você não vem jantar na minha casa, comigo e com a minha esposa?

E foi assim que o Anjo me convidou para ser parte de sua vida. Ele morava em um apartamento, era um dos últimos andares de um prédio alto, desses com muitas janelas e algumas sacadas grandes, aliás, ele me disse que ficava ali, tentando ver se encontrava alguém precisando de ajuda, como eu um dia precisei. O imaginei verdadeiramente como um Anjo, sentado no guarda-corpo, com suas grandes asas e olhar atento observando tudo que se passava na cidade, prestes a voar e interceder para salvar alguém. Conheci sua esposa, uma jovem pálida e com olhar cansado, quase choroso, acho que eram as pálpebras rosadas e as olheiras profundas as responsáveis por passarem essa imagem. No canto da sala, deitado em uma cama redonda, aparentemente nova, estava um cão velho, que abriu apenas um olho tão logo eu cheguei, talvez para entender o que estava acontecendo, mas logo adormeceu novamente. Eu levei flores para a esposa, como agradecimento pelo convite. Só então percebi que não havia trazido nada para ele, mas me saí com uma desculpa (quase) esfarrapada:

– Pensei em lhe trazer uma garrafa de vinho, porém é um gosto muito particular e como eu ainda por cima não bebo ficaria ainda mais difícil adivinhar alguma coisa.

– Eu também não bebo, gosto de ficar consciente o tempo todo.

E antes que eu pensasse em uma resposta ele adicionou:

– As flores bastam, vou colocar agora em um vaso com água, assim elas podem durar mais tempo antes de virarem uma natureza reconhecidamente morta.

Fiquei então sozinho com a esposa e o cachorro que dormia tão profundamente que parecia não existir. Fiz as perguntas e comentários de praxe: agradeci o convite, elogiei a decoração, perguntei como ela estava, percebi então que ela era lacônica e, talvez fosse o cansaço, mas não estava nem um pouco empolgada. Achei irônico que ele tivesse um olhar tão intenso e vivo, enquanto o dela fosse sonolento e até mesmo meio morto.

Durante o jantar ele perguntou bastante sobre mim, particularmente sobre o acidente e o que eu havia sentido antes e agora. Mal pude perguntar algo a ele, o pouco que perguntei ele respondeu rapidamente e em seguida emendava outra pergunta a mim, ainda sobre o acidente, o durante e o depois. Ele comia bastante e avidamente, eu fui educado e comi com parcimônia, ela comia pouco e espaçadamente, por fim todos nós comemos quantidades diferente mas terminamos praticamente ao mesmo tempo. Eu olhei para ela e percebi que nada falou durante todo o jantar, aliás pelo pouco que pude observar sequer tirou os olhos do prato. Por isso a elogiei pela comida, mas ela, ainda sem levantar os olhos do prato, me disse em voz monótona:

– Não fiz o jantar.

Achei que ela fosse acrescentar algo, houve algum silêncio quase embaraçoso, quebrado pelo Anjo, que disse:

– Eu que fiz. Segui uma receita de livro. Não cozinho com frequência.

– Mas está ótimo. Meus parabéns.

– Obrigado.

Depois do jantar fomos até a sala, mas eu percebi que estava na hora de ir embora.

– Acho que já vou indo.

– Já? Fique à vontade.

A esposa entrou na sala e eu disse a eles que poderíamos combinar algo para a próxima semana, ele pareceu empolgado e ela absolutamente indiferente. Lembrei então que não sabia cozinhar, com ou sem livro de receitas, por isso ofereci irmos em um restaurante:

– Conheço alguns e…

– Venha novamente em casa. Não há qualquer problema. A verdade é que gosto de passar o máximo de tempo disponível com minha esposa e com o meu cachorro.

Não esperava essa resposta, então simplesmente concordei. Nos despedimos, o Anjo se afastou e ouvi ele chamando pelo cachorro, mas sua esposa, antes de fechar a porta disseme:

– Afaste-se. Vá embora enquanto pode.

E fechou a porta bruscamente, no mesmo instante a porta do elevador se abriu, eu entrei um pouco aturdido e comecei a pensar no que acabara de acontecer.

Se ela tivesse dito apenas “vá embora”, acharia tudo bem, talvez não muito educado, porém ela parece ser diferente. Mas, por outro lado, por que incluir “enquanto pode”? E esse “afaste-se”? Nada entendi, mas como encontraria o Anjo novamente na fisioterapia ou, no mais tardar, no jantar na sua casa. Perguntaria a ele da maneira mais educada possível.

Quando o encontrei na fisioterapia, entretanto, nada pude falar, ele chegou pouco antes da sessão começar e ao final disse estar atrasado para outro compromisso. Isso aconteceu nas duas sessões da semana, mas em ambas fez questão de me lembrar do jantar em sua casa.

Cheguei na hora marcada e por uma completa falta de criatividade levei novamente flores. Toquei a campainha, fui atendido por sua esposa, cujos nervos pareciam em frangalhos, ela disse:

– Eu não aguento mais! Ali! Vá até lá!

Entrei assustado, sem nada entender, ela bateu a porta atrás de mim e tartamudeou:

– Ele… Está lá… No quarto… O Cachorro… Não… É horrível… É terrível…

Eu seguia sem entender, mas ela apontou para uma porta, andei rapidamente até lá, ignorando minhas dores e atordoado demais para sentir medo, tampouco hesitei para abrir a porta, coloquei a mão na maçaneta e girei.

Nada poderia me preparar para a cena com que me deparei, o Anjo estava à meia luz, mas o quarto estava claro o suficiente para que eu pudesse ver tudo com clareza. O cachorro estava sendo torturado pelo Anjo e o animal incapaz de se mover, chorava, agonizava, sofria. Com um pedaço comprido de metal, que parecia com um alfinete, uma agulha, algo assim, o Anjo espetava o pobre animal. Ele tocava o metal na pele do cachorro e afundava, até sair uma gotícula de sangue, daí ele parava e ia para outro pedaço de pele. Enquanto o Anjo machucava, seus olhos brilhavam, ele se deliciava com aquele sofrimento, estava até mesmo sorrindo. Eu estava paralisado, tentei me mover para empurrálo ou pegar o cachorro, mas não consegui, me restou apenas balbuciar timidamente o que deveria ser gritado:

– Pare.

Ele me olhou indiferente meus olhos ainda brilharam:

– Já chegou? Reparei que é pontual então quem está atrasado sou eu, talvez tenha sido culpa de minha esposa, ela queria que você visse essa cena, não é mesmo?

Eu ainda estava atordoado e quis vomitar quando ele pegou o cachorro, que chorou mais uma vez, e levou para a cama redonda no canto da sala. Me ocorreu então que isso aconteceu na semana passada, quando vim jantar pela primeira vez. Aliás percebi que esse tipo de situação devia ocorrer frequência.

– O jantar está quase pronto. Vamos.

Estranhamente não consegui falar não. Deveria ter saído correndo. Me afastado na hora. Mas não consegui. Acabei sentando na mesa e comendo tão pouco quanto sua esposa. Ele, entretanto, perguntou normalmente como eu estava indo, se estava com dor, quanto de dor, como estava indo na fisioterapia. Falei menos do que comi, os minutos não passavam e ele falava com se tudo estivesse bem, ele parecia animado, comeu e repetiu. Em algum momento, finalmente o jantar acabou, ele disse que iria até o quarto para fazer não sei o quê. Fiquei a sós com a sua esposa e disse:

– O que é isso tudo?

– Eu disse para se afastar.

– Você tem que ir embora daqui.

– Sim. E por que você ficou para jantar? Por que não for embora?

– Não sei.

Me aproximei para abraçá-la, cheguei a tocar seus braços mas parei quando percebi que estava sendo observado. Olhei para trás e lá estava ele, encostado no batente da porta, me afastei dela e percebi que, seus olhos brilhavam. Percebi então que meu constrangimento, meu (quase) desespero era-lhe muito mais importante do que um eventual adultério inexistente.

Sai sem me despedir, na minha mente um turbilhão de lembranças que agora possuíam outro significado, algo brutal, algo sombrio. Passei a dormir pouco e mal, os sonhos deram lugar a pesadelos indescritíveis, mas quando acordava estava ensopado de suor, com medo e tomado por uma sensação assustadora, com um peso em meu peito e um estranho aperto na garganta.

No dia da minha primeira sessão de fisioterapia depois do jantar cheguei mais cedo e perguntei por ele, mas uma das enfermeiras disse-me:

-Não soube? Bem, acho que ele não deve vir hoje.

– O que aconteceu?

– A esposa dele pulou da sacada do apartamento. Estava com o cachorro no colo.

Senti um alívio por ela, por eles… E uma vergonha por sentir alívio pela morte deles. Mas então pensei nele, a quem eu tolamente chamara de “Anjo”, chegando e vendo o resultado de um longo sofrimento causado por ele. Vendo o desespero das pessoas, diante da morte, observando a dor no velório e no enterro, a tristeza e, no meio de tudo isso seus olhos brilhando. Absorto em meus pensamentos, de repente acordei com uma outra enfermeira ao meu lado, que disse:

– Há pessoas como ele, que se alimentam da dor, do sofrimento, do desespero. Eles perambulam pelos hospitais, pelos pronto-socorros, observam a tristeza alheia, buscam acidentes.

Lembrei de como o conheci e perguntei o que poderia fazer.

– Nada. Simplesmente nada pode ser feito.

Agora, não frequente mais a fisioterapia, estou fisicamente bem, mas sempre o encontro por aí, não consigo escapar.

Assim que o vejo se aproximando velozmente de mim, tento me desvencilhar, mas nunca consigo. Meu coração se acelera, o suor brota de todos os poros, ele percebe meu desespero, minha impotência diante dele, minha incapacidade de me afastar rapidamente e vejo que mentalmente meu desespero o alimenta.

Meu desespero sempre o alimenta.

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