A fisioterapia havia terminado, o desconforto persistia. Os médicos garantiram que a memória retornaria aos poucos — somavam-se dois anos desde o acidente.
No apartamento, espaçoso demais para um só, a mãe o acompanhava desde o início. Nas paredes, dois quadros: um diploma de Ciência da Computação e uma foto do time de programação, vencedor do campeonato nacional oito anos antes. Daí em diante, nenhuma lembrança.
— O café está pronto.
Dona Irene anunciou da cozinha. Danilo, lavando o rosto, via-se no espelho. 27 anos? A cicatriz numa sobrancelha era a única evidência física exposta. As lacunas de memória, o vazio inexplicável no peito e a sensação de tristeza permaneciam invisíveis.
Com o café em mãos, Danilo abriu o código; viu as linhas da noite anterior. O projeto começou como uma distração e virou uma obsessão. O “Algoritmo do Amor”, por falta de criatividade, usava os melhores bancos de dados e as melhores inteligências artificiais. Depois de noites sem dormir, refinando cada parâmetro e variável, com resultados assustadoramente precisos, estava quase pronto.
Ouviu a porta bater: Dona Irene saindo para o mercado. Abriu aquela pasta, com fotografias restauradas de seu telefone destruído no acidente: rostos e lugares conhecidos. Nada útil em suas redes sociais, nem sabia quem eram seus amigos recentes. A última foto mostrava uma confraternização da empresa que trabalhava. Depois disso, nada até acordar no hospital.
Voltou para o código, que o atraía como um ímã.
“Você está tentando encontrar a si mesmo”, disse a psicóloga.
Talvez ela esteja certa.
Na reta final, trabalhou trinta e seis horas seguidas, movido por um sentimento de urgência. A versão final ocupava um tamanho irrisório para a promessa de mapear as complexidades do coração humano apontando pares perfeitos.
Na última noite, o sistema estava pronto para sugerir correspondências para… ele mesmo. É só um teste.
Preencheu o questionário com honestidade brutal: gostos, valores, traumas, sonhos, medos, padrões de pensamento, análises de sua fala, até mesmo dados biométricos de diferentes estados emocionais. À meia-noite, “Enter”.
Durante sete minutos, Danilo observou a barra de progresso com uma ansiedade quase infantil. O resultado apareceu:
“Compatibilidade Ideal: Laura Mendes, 97.3%.”
Olhando o resto das informações, ficou sem jeito: 29 anos, formada em Literatura Comparada, natural de Curitiba. Status: Paciente em estado de coma, Hospital Santa Clara, há 2 anos.
Meu par ideal está inconsciente?
Passou a madrugada verificando o código, buscando falhas, reexecutando com parâmetros ligeiramente diferentes. O resultado persistia: Laura Mendes, 97.3%.
De manhã, tomou uma decisão: precisava conhecê-la. O café da manhã com Dona Irene foi um borrão. Sua mente girava. “Talvez só alguém que passou quase um ano de cama possa compreender alguém presa há dois anos no próprio corpo.”
Danilo se preparou e foi ao hospital. Vestia uma camisa social azul-clara, a primeira peça formal desde o acidente. Na recepção, segurou o crachá falsificado. A mentira veio com uma naturalidade perturbadora.
— Professor Danilo Santana, Departamento de Neurociência Computacional. Estou conduzindo uma pesquisa sobre estímulos cognitivos em pacientes comatosos.
A recepcionista nem sequer levantou os olhos.
— Precisa de autorização do Dr. Mendonça. Quinto andar.
— Já tenho.
Danilo estendeu um documento com assinatura forjada, que ela examinou por cinco segundos intermináveis. Carimbou e apontou para os elevadores.
— Ala Leste, quarto 507.
No elevador, encarou seu reflexo distorcido nas portas metálicas. Fui sempre assim ou o acidente alterou mais do que apenas minhas memórias?
O quarto tinha a porta entreaberta. Danilo hesitou, ouvindo vozes lá dentro. Uma enfermeira saiu.
— Posso ajudar?
— Professor Santana — mostrou o crachá. — Estou aqui para…
A conversa foi rápida. Desinteressada e com receio de que mais serviço sobrasse para ela, apenas concedeu espaço. No fim do corredor, outra enfermeira olhou desconfiada.
Ciente do horário das visitas, Danilo não cruzaria com familiares. Ainda assim, seu coração estava disparado.
À sua frente, seu par perfeito.
Laura Mendes tinha cabelos longos e negros; a pele pálida pelas condições, rosto sereno. Os fios e o tubo de respiração eram lembretes da fragilidade da situação. Danilo respirou fundo, numa mistura de nervosismo e compaixão. “E se ela realmente me entender?”, pensou, puxando uma cadeira ao lado da cama. Olhou a mão delicada de Laura, a pele ainda jovem. Tocou-a de leve.
— Oi, Laura. Eu sou Danilo. Sei que não pode me ouvir…
Contou sobre o algoritmo e todo o resto:e o vazio que sentia, suas tentativas de preencher as lacunas com números e códigos, mas que nada comparava ao desejo de encontrar alguém que o compreendesse. Após alguns minutos, sentiu a mão de Laura se mover sob seu toque. Ilusão? Danilo sentiu o coração acelerar. O monitor não acusou nada.
Nas semanas seguintes, Danilo estabeleceu uma rotina ao redor do tempo diário que considerava seguro. No início, sentava-se em silêncio ao lado de Laura, observando sua respiração. Depois, começou a falar do seu dia, das notícias do mundo e, por fim, começou a ler para ela “Cem Anos de Solidão”. A cada visita, sentia-se mais próximo. Sentia-se menos sozinho. Laura permanecia imóvel.
Constrangia-se só de pensar em contar à mãe. Mas, quem sabe, se Laura acordasse, elas podiam se gostar. Podia dar certo.
Num desses dias, sentou-se diante do computador, determinado a saber mais sobre Laura.
Os resultados mostraram um perfil acadêmico na Universidade Federal, artigos sobre literatura latino-americana e uma página de um festival literário de três anos atrás. Clicou no primeiro link.
“Mestre em Literatura Comparada pela UFPR, Laura Mendes é pesquisadora de narrativas contemporâneas e tradutora de espanhol.”
Salvou a foto do perfil acadêmico. Procurou mais, encontrou um artigo que ela publicara sobre García Márquez. O algoritmo funciona mesmo. O estilo de escrita provocou em Danilo uma sensação de reconhecimento visceral.
Em um impulso, buscou os nomes juntos: “Danilo Santana Laura Mendes”. Nada. Fechou o navegador e olhou para o teto, inquieto.
A rotina de visitas de Danilo completava quase dois meses quando, enquanto lia para Laura, notou um movimento sutil em suas pálpebras.
— Laura?
Os olhos se abriram sem nenhuma pressa. Pupilas dilatadas, desorientadas, procurando fixar-se em algo. Quando encontraram o rosto de Danilo, houve um lampejo de reconhecimento que o atingiu como uma descarga elétrica:
— Danilo — a voz estava áspera pelo desuso prolongado.
— Laura, você me ouvia falar com você?
— O quê? Meu amor, o que aconteceu?
Sentiu o ar escapar de seus pulmões enquanto tentava processar aquelas duas simples palavras.
— Estou… muito fraca — continuou, com as pálpebras já pesando novamente.
— Aguente firme — saiu do quarto buscando ajuda.
E os olhos já haviam se fechado.
— Ela acordou! Por favor, venha rápido!
Uma enfermeira entrou às pressas e a examinou enquanto Danilo aguardava na porta.
— Os sinais vitais estão estáveis. É um bom sinal que tenha despertado, mesmo que brevemente — disse ela, ajustando o soro.
Hesitou por um momento, como quem decide se deve ou não atravessar uma ponte perigosa.
— Olha, não dá mais. Não aguento isso.
Danilo sentiu a espinha gelar. A enfermeira fechou a porta do quarto e baixou a voz.
— Eu sei quem você é e você tem todo o direito de…
— Do que está falando?
— Fui eu que cuidei de vocês depois do acidente. E depois, continuei cuidando da moça.
— Laura e eu estávamos no mesmo acidente?
— No mesmo carro. Você dirigia.
Danilo fechou os olhos, buscando qualquer fragmento de memória, qualquer confirmação interna.
— Éramos…?
— Namorados. Mas a família dela nunca aprovou, especialmente o pai.
— Por quê?
— Ela vem de família importante e você é… bem…
— Um programador de classe média.
— Um pé-rapado, foi como o pai te descreveu quando veio pagar todo mundo.
Danilo ajustou a posição na cadeira.
— Mas como sabe tudo isso? E como assim “pagar todo mundo”?
Tereza abaixou a cabeça.
— Tem mais.
— Diga logo, pelo amor de Deus!
— Vocês iam se casar em três meses quando o carro saiu da estrada.
Mesmo na cadeira, apoiou-se na parede para não cair.
— Isso… isso não é possível. Eu não me lembro…
— Quando os pais dela descobriram que você tinha perdido a memória, fizeram um acordo com todos, até sua mãe, para que você nunca soubesse sobre Laura. E apagaram todo vestígio da Laura da sua vida.
Muita coisa começou a fazer sentido: o apartamento grande demais para uma pessoa só, o vazio persistente…
— Você não respondeu. Como sabe de tudo isso?
— Eu participei da reunião. Eu também fui paga. Mas não posso mais ser cúmplice disso, ainda mais agora que ela te reconheceu.
O caminho até a casa foi o mais longo de sua vida. Flashes, sensações e fragmentos começaram a se encaixar. Dona Irene o recebeu com um sorriso tenso, como se pressentisse o furacão.
— Filho?
— Quem é Laura Mendes?
Viu o rosto da mãe empalidecer.
— Não sei do que…
— Chega de mentiras! Mãe, eu ia me casar?
As lágrimas tomaram o rosto.
Dona Irene desabou no sofá. As mãos cobriam o rosto envelhecido pela consciência que lhe esmagava por tanto tempo.
— Foi para o seu bem, filho! Você estava tão machucado, tão confuso. E o Sr. Mendes… ele não queria você perto da filha.
— E o que ia fazer quando eu me lembrasse?
— Os médicos me disseram que as suas memórias nunca mais iam voltar e…
— Eles mentiram, mãe! E você vendeu a minha vida.
Dona Irene chorava em soluços.
— O dinheiro ajudou com seu tratamento. Depois, pra terminar de pagar o apartamento. Pensei que pudesse reconstruir sua vida, começar de novo… Perdão, filho. Achei que fosse melhor assim.
Danilo observou a mãe por um longo momento. A raiva e a decepção deram lugar a uma compreensão dolorosa.
— Preciso dos meus pertences. Tudo o que você guardou do tempo que dividi com a Laura. Deve ter escondido algo.
Ela assentiu, derrotada, e foi até o quarto. Voltou com uma caixa de sapatos empoeirada.
— Foi o que consegui salvar.
Danilo abriu a caixa com dedos trêmulos. Fotografias, cartas, um anel de noivado e um pendrive. Sua vida com Laura, reduzida a uma caixa de sapatos. A noite foi longa.
Nos dias seguintes, Danilo dividiu seu tempo entre o hospital e a reconstrução paciente de seu passado. Mas suas memórias não davam sinal. Através das fotos e arquivos no pendrive, começou a recompor o quebra-cabeça, assistindo aquele filme protagonizado por uma versão mais feliz de si mesmo.
Na terceira noite, ao sair do hospital já tarde, notou que um carro escuro o seguia à distância. Ao entrar na estrada que ligava o hospital à cidade, o veículo e executou uma manobra brusca, tentando forçá-lo para o acostamento. Uma freada fez o perseguidor passar direto. Aproveitou para fazer o retorno, ganhando alguns segundos.
Não durou muito. O carro surgiu outra vez no retrovisor. Uma batida mais forte fez seu veículo rodar, parando perto do barranco. Um homem abriu sua porta, arrancando-o do assento. Num movimento desesperado, Danilo o derrubou, fazendo-o bater a cabeça no chão. Aproveitou para revistar seus bolsos, encontrando uma pistola. Apontou-a para o agressor que agora se levantava, cambaleante.
— Quem te mandou?
— Não vai atirar — deu um passo à frente.
Danilo não era mais o mesmo. O tiro acertou o joelho.
— Mendes! — respondeu aos berros. — Ricardo Mendes. O pai da garota. Eu trabalho pra ele!
— Por quê? Por que agora?
— Agora? Na primeira vez, também fui eu. Ninguém sabia que vocês estavam juntos no carro. Mas cara, você tem que chamar uma ambulância!
Danilo chamou a polícia.
*****
O processo contra Ricardo Mendes mobilizou a atenção da pequena cidade. O empresário enfrentou acusações graves: tentativa de homicídio, obstrução de justiça e falsificação de documentos. A confissão do capanga foi apenas o início. Depois da confissão da enfermeira, outros funcionários fizeram o mesmo. Transferências bancárias aos médicos e à administração foram encontradas. O julgamento durou meses tensos, até ele ser condenado a quinze anos de reclusão para Ricardo Mendes.
À imprensa, Danilo só respondeu “só quero recomeçar”.
O veredito não mudou a condição de Laura. Ela permanecia serena, alheia àquela tempestade. Danilo continuou suas visitas diárias, sem precisar de disfarces ou mentiras.
— Sei que pode me ouvir, em algum lugar — disse, mais um dia. — Onde paramos ontem? Ah, sim. Capítulo doze.
A leitura continuou. Suas memórias nunca voltaram. Laura nunca acordou.
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Plot Execução Escrita Estilo Desafio
Nem toda tragédia é uma história de amor, mas toda história de amor é uma tragédia.
O enredo é simples, mas vai de uma ficção científica soft para uma tragédia com toques de realismo fantástico (a referência a Marques não é a toa) e ainda termina como um suspense, também trágico.
Tem muita coisa aqui e faltou dar uns respiros, muito dessas diferentes influências ficam bagunçadas no meio da narrativa, mas isso não é um grande empecilho. Conseguimos admirar essa história e chegar ao final com um certo sorriso no rosto, resignado, mas ainda assim satisfeito em saber que o amor vence tudo.