Serralhopólis é o esconderijo com falsa roupagem de morada; com uma incomensurável distância da capital, os ventos apenas sabiam exatamente a sua localização. O seu perímetro urbano encaixava-se entre as serras verdes, contornando-as com suas luzes, de modo a ensejar uma forma, que era alvo de discussões; os idosos, na praça, indagavam acerca dos seus contornos urbanísticos. Havia, de maneira apreçada, tentativas de qualificá-la como trilhos que cortavam as montanhas, bem como uma coroa que consagrava estas. Não faltavam, assim, imaginações para tanto.
Como toda cidade do interior, a característica principal da demografia era o acolhimento, o qual refletia na política, inclusive. Quando acabavam as eleições, elegia-se o prefeito e, ao mesmo tempo, o amigo do eleitorado e o inimigo da oposição. Essa amizade, legitimada, era o vetor do ânimo de restauração, que contagiava a rotina dos cidadãos com o desejo do futuro nas costas do presente – que era deveras ignorado. Isso era uma traição contra o tempo.
O senhor Ludovico, carteiro aposentado, conhecido por muitos como o único que sabia a forma exata da cidade, afirmava que as esperanças da população se consubstanciavam em suicídio. Não era, de fato, um admirador do presente – os anos o ensinaram que a vida é uma germinação -, nem um lunático do futuro. Não gostava de este ser uma carga para aquele apenas. Falava para as pessoas viverem, e não contarem o tempo – para isso, existia o relógio. Seu neto, Alfredo, era o principal alvo de seus conselhos.
Com três faculdades concluídas (marketing, administração e nutrição), Alfredo estava finalizando seu curso técnico de alimentos; procurava, também, trabalho. Seu avô, cansando-se dos conselhos, arrumou-lhe um emprego no açougue “prazeres da carne”, para 2 cuidar do setor dos defumados e das entregas. Trabalhava de segunda à sexta, das 7:00 às 18:00; dedicava, em sua jornada de trabalho, a manhã às atividades internas do açougue e às encomendas dos clientes à tarde.
Certo dia, depois de ter passado à tarde toda realizando entregas, voltando ao açougue, é parado por Carlos – dono de um laticínio –, que lhe pediu para deixar três Litros de leite para Regiane.
Ela mora nesse endereço, disse Carlos; entregue-lhe o leite e meus (sinceros) cumprimentos. Diga-lhe, também, que faz tempo que não a vejo por aqui e questione-a quando virar fazer uma visita para conferir os novos produtos. Ah… não a cobre do Leite; é cortesia por seus anos de fidelidade para com estabelecimento.
Chegando ao local mencionado, Alfredo conferiu o endereço novamente; ficara em dúvida se chegou no destino certo, pois havia uma confusão dos diabos, com polícia e tudo. Aproximando-se, viu o guarda escrevendo no Boletim de Ocorrência: Furto de tigela de cachorro, despejou toda ração e leite no passeio, levando o recipiente para tratar dos animais apenas.
– Suma daqui menino alcoviteiro! Não tem nada do seu interesse aqui! Eu os tratos, eu os cuido, bem como arco com ônus sozinhos.
– Eu trouxe o Leite do senhor Carlos; ele me pediu para lhe entregar.
– É o Leite do Macho dela; pelo visto, se ele sabe, o bairro inteiro já está ciente do ocorrido de novo.
– Cala a boca, Mamãe ! Já há, hoje, problema demais… não estou afim de buscar mais um.
– Não é o que parece … quando aceita esse Leite daquele homem, você não somente está procurando, mas como cultivando problemas, afirmou sua mãe entrando para dentro da casa.
Saindo da casa de Regiane, Alfredo, desviando do leite e da ração derramados, esquivava do campo minado de fezes e dos cachorros que assistiam todo o ocorrido, torcendo para que eles não o perseguissem na bicicleta, a qual não estava em boas condições para empreitar uma corrida.
No dia seguinte ao evento, a cidade estava tomada pelo Carnaval, estando entupida de bloquinhos pelas ruas; o bloco unido até o fim passava pela rua da Regiane, quando, no meio da multidão, uma garrafa com um bilhete acertou a janela desta, quebrando-a. Ato seguinte, os cachorros começaram a latir sem direção. O local, para um bom observador, virou umas orquestras dos bichos, alternando entre sinfonia destes com a dos cachorros. Essa harmonia sinfônica, depois de beethoven, era o rugir da civilização ocidental.
Regiane saiu para fora, para xingar a balburdia, quando viu o bilhete entre os cacos, escrito: Mulher do Leiteiro; quando vai pegar mais Leite do seu Macho?
Na quarta-feira de cinzas, com substância de segunda, Alfredo foi surpreendido por Carlos, pedindo-lhe que fizesse uma última entrega na casa de Regiane, porém ofereceu-lhe uma quantia significativa pelo serviço agora. Aquele aceitou, afirmando que passaria no laticínio mais tarde.
Às 16:05, ele chegou ao comércio de Carlos, o qual estava cercado por duas mulheres e três cachorros; uma delas era uma beldade, de 1,70, chamada Darlene, que o xingava por deixar seus cachorros na casa da Regiane, quando havia prometido- lhe cuidar deles. Ela intercalava seus xingos com as batidas do pé, que ecoavam por todo o laticínio, a ponto do leite ferve.
Saindo de rasteiro, vendo que o negócio era sério, Alfredo voltou ao açougue, pedindo para que chamasse a polícia para que fosse ao Laticínio.
Com a polícia no local, todos foram presos e conduzidos à delegacia, a fim de prestarem depoimentos. Antes de entrar na viatura, Carlos chama Alfredo e lhe entrega a quantia de dinheiro; este pede o leite para entregar, mas aquele diz que não tem nada para levar, pois não havia mais necessidade, explicou-lhe a história.
Ele disse que tem uma amante, chamada Darlene; esta lhe pediu para cuidar dos cachorros enquanto ela viajava para casa dos pais. Sem poder traze-los para sua casa, em razão da ausência de explicação para sua esposa, resolveu aproveitar da boa vontade de Regiane, infiltrando ardilosamente os cachorros, a fim de parecerem abandonados. Em razão disso, por desencargo de consciência, prometeu-lhe que daria leite para cuidar temporariamente dos três animais. Estes, no entanto, entrosaram-se com os demais, impossibilitando de recolhe-los.
Com intuito de fazer com que Regiane expulsasse os cachorros, resolveu dar o leite e, ao mesmo tempo, derrubá-lo, bem como sumir com as vasilhas, aliado com a tramoia de aparentar que ela tinha um caso com ele. Tudo isso geraria um transtorno àquela e, portanto, deixaria de cuidar deles.
No fim, eram os humanos fazendo cachorrada, vista por nós, os cachorros.
Você não tem permissão para enviar avaliações.
Nenhuma avaliação encontrada.