— Morreu de quê?
Era uma pergunta difícil de responder. Não pela resposta em si, mas por tudo que a envolvia. Decidiu ficar quieto. Os gritos agonizantes atravessavam as engrenagens do elevador. No horizonte, as entranhas de sofrimento se regurgitavam com a hecatombe da moralidade. O sujeito ao lado riu; ainda estava com terno e gravata:
— Relaxa, já estamos no inferno. Não é como se ficasse pior que isso. Prazer — Estendeu-lhe a mão, um sorriso simpático no rosto. —, sou Fábio.
Retribuiu o aperto, dizendo:
— Prazer… Felipe.
— Vou acreditar que esse seja o seu nome. Então, Felipe, é muito difícil que sua morte seja pior do que a minha.
— Acredite, é.
— Deixa que eu começo, então. Você nem precisa me contar a sua história. Apenas ouça o que tenho para dizer e me diga ao final, com um “sim” ou “não”, se ela é pior que a sua. Pode ser?
— Pode.
— Morri engasgado no próprio pau, acredita? — ele riu, fazendo uma cara de nojo. — Ainda estava sujo de sêmen. Tinha sangue, esperma, pelos pubianos, menstruação, enfim, foi uma nojeira do caralho.
Tentou olhar em volta, mas não tinha nada além de rios de magma e cavernas através das quais o lamento de gárgulas ecoava. Voltou-se para o sujeito:
— Estupro?
— Clichê, né? Mas eu tinha negociado direto com a mãe.
— Pelo menos você morreu depois de gozar.
— Pois é.
Fábio olhou para si, o sorriso quase tão torto quanto o próprio nariz.
O elevador rangeu. Felipe perguntou:
— Foi a mãe que te matou?
— Sim. Deu pra trás na última hora e recusou o dinheiro. Quando viu que eu não tinha conseguido me segurar, ela enfiou um facão na minha espinha. Eu tava no carro. Ela tinha que estragar tudo. Fiquei lá, enquanto a piranha arrancava o meu pênis. Puta que partiu, que dor do caralho. Tinha uma força do cacete. Eu dei mole, também. Depois que a polícia chegou, quebraram minhas costelas. A vadia ficou lá, chorando. Os outros tinham sido tão fáceis. Então, vai me dizer que a sua história é pior do que a minha?
— Sim.
Fábio assobiou:
— É, agora fiquei curioso.
O elevador emitiu um bip e as portas se abriram. O sujeito ajeitou o terno:
— Opa, cheguei no meu andar. Não vem? Uau, então você é mesmo pior do que eu. Até mais!
No andar seguinte, uma mulher extremamente gorda. Suas banhas pareciam ondas, o suor escorrendo pela pele com um cheiro de merda. Com muito esforço, ela entrou:
— Ai, que calor aqui. Boa noite.
— Boa noite — respondeu Felipe.
— Morreu de quê?
Por que todo mundo tinha que perguntar aquilo? As pessoas não podiam simplesmente entrar e ficar caladas? Voltou-se para a janela, observando uma orgia de criaturas e animais:
— Não foi por comida, isso posso te garantir.
— Eu também não, tá, engraçadinho.
— Então foi pelo quê?
— Ataque cardíaco. Tinha acabado de ganhar na loteria. Porra, com o dinheiro do plano eu ficaria lisinha, lisinha. Ai, eu ia sentar com força naquele personal da academia do meu bairro. Fico molhada só de pensar.
— Mais molhada? Acho difícil. Então vai me dizer que fez algo pior do que comer até virar uma baleia?
A face gorda da mulher era pura apatia:
— Deus é um filho da puta mesmo. Eu era enfermeira, ajudava os pacientes a encontrar com seus familiares. Mas alguém tem que ficar pra trás pra que os melhores consigam subir. Não me arrependo. O tanto de velhinhos que eu salvei. Depois que começaram a desconfiar, tive que mudar de estado.
— Quantos você ajudou?
— Acho que uns 13.
— Que pena.
— Você também não é nenhum santo.
— Eu sei.
O elevador emitiu outro bip. A mulher disse:
— Opa, meu andar chegou. Tchau.
— Vai com Deus.
Próximo andar. Quando as portas se abriram, os gritos pareciam rastejar através de uma lama sangrenta, o batuque diabólico a enregelar sua espinha. Felipe teve que se jogar ao chão. Uma sacola encharcada de sangue bateu na parede e caiu. O elevador se fechou enquanto ele encarava as chicotadas que as criaturas com cabeça de bode davam nas pessoas. O coração pareceu explodir quando uma voz grave perguntou:
— Morreu de quê?
Felipe pulou de susto, olhando para a sacola que se mexia. O que havia dentro dela? Começou a tatear suas amarras, mas não conseguia desatar o nó. O cheiro pútrido o afastou. A sacola balançou de novo:
— Morreu de quê?
— Você não precisa saber. Aliás, o que caralhos é você?
— Não sei, não tive tempo de nascer.
— Espera, você é…
— Não sou nada.
— Então não devia estar aqui.
— Mas estou.
— Mas não devia. Foi aborto?
— Sim. Um que deu errado. Assim que eu vi a agulha, soube que morreria. Segurei-a e enfiei fundo na carne. O Davi pediu para ela parar de comprar Marlboro, mas ela gostava de duas coisas: dar o cu e fumar no final de domingo. Um dia ela teve que escolher entre os dois: ou ela parava de fumar, ou ela parava de dar o cu.
Pelo estado da sacola, já imaginava qual teria sido a resposta da mulher. Mas ainda restava uma dúvida:
— Foi ela que te jogou na direção do elevador?
— Sim.
O levador emitiu outro bip. A sacola disse:
— Senhor, poderia me jogar naquela direção?
Felipe segurou a sacola com cuidado:
— Assim?
— Isso, perfeito. É só jogar.
Arremessou o feto com tudo. Antes que a porta se fechasse, uma menina entrou:
— Dá licença. Boa noite, senhor.
— Boa noite.
Ela andava de lá para cá, olhando o inferno da mesma maneira que outra criança veria um parque de diversões. Virando-se para Felipe, disse:
— Morreu de quê?
— Por que não me conta você?
— Eu me joguei da janela do hospital. Papai tinha pedido para eu segurar o Gael, aí eu fui lá e joguei ele da janela.
— Por quê?
— A mamãe é só minha. Ela nem percebeu. Tava dormindo. Subi na cadeira e me joguei logo em seguida.
— Mas você não queria ela só para você?
— Claro, mas para ter ela só para mim eu precisava virar um bebê. Aí eu me joguei. Pra nascer de novo, sabe?
— Sei.
O elevador emitiu um bip. A porta se abriu e a menina ficou encarando a abertura:
— Acho que é pra você.
Felipe tinha certeza que não:
— O meu é mais embaixo.
— Sério?
— Sério.
A passos tímidos, ela encarou a escuridão agonizante a frente de si. Virou-se para ele uma última vez enquanto as portas se fechavam:
— Tchau!
Ele acenou e a observou partindo. No andar seguinte, um jovem rapaz entrou. Trajava farrapos e soluçava, aos prantos:
— B-b-boa noite.
— Boa noite, por que está chorando?
— Fi-fi-finalmente me-me-me livrei do demônio que me-me possuía.
— Você foi possuído em vida?
— S-s-sim.
— E o que o demônio te dizia?
— Pra afo-fogar fi-filhotinhos. O demônio pedia pra eu afo-fogar ga-gatinhos, ca-cachorrinhos, coelhinhos, passarinhos. Eu afo-fogava, eu afogava todos eles. M-m-mas o demônio não saiu de mim. Vo-você po-pode me afogar?
— Como eu faria isso?
— Põe o pau pra fo-fora e mi-mija na minha bo-boca. Eu fa-faço o resto. Já afo-foguei muitos bi-b-bichinhos com mijo. Aqui, eu te ajudo.
O rapaz começou a se ajoelhar, apalpando o membro de Felipe. Uma joelhada lhe quebrou o nariz, afastando-o com um gemido de dor:
— A-a-ai, por-por que fez isso? Eu só-só-só ia pegar um pouquinho do seu-seu-seu mijo. A-a-agora eu vou ter que te afo-fogar também!
O rapaz se jogou contra ele, arranhando-o e mordendo-o. Com outro pontapé, Felipe o fez se ajoelhar. Mas não foi o suficiente. Mesmo ajoelhado ele ainda tentava alcançar sua garganta. Com a paciência esgotada, enterrou os dedos nos olhos do rapaz, ouvindo-o berrar enquanto chorava sangue.
Agarrou sua mandíbula e fez o pescoço do moleque girar. Assim que o cadáver bateu com a cabeça ao chão. O elevador parou. Um novo bip surgiu, e uma mulher com pele de ébano entrou; sua coroa era uma ossada, e estava nua: seios fartos, os lábios de sua vagina, apertados, quase tão carnudos quanto os lábios de sua boca. O vento sussurrava atrás de si. A face era uma mistura luxuriante de deboche e decepção:
— Ah, você quebrou as regras, Felipe. Não se pode quebrar as regras.
Felipe lutou para que seu olhar não fosse desviado pela sensualidade dela. Encarando-a nos olhos, disse:
— E quem é você?
— Uma rainha, ora. Do meu seio direito faço jorrar leite, do esquerdo, ouro. E meu ventre é pura água.
Ela se abaixou sobre o cadáver, encaixando a cabeça do cadáver na vagina. Sugou-lhe ventre adentro até que desaparecesse. Tremia-se numa mistura de orgasmo e dor. Quando se levantou, parecia mais jovem. Uma gárgula lhe trouxe um manto doirado, ameaçando morder Felipe. A rainha despediu seu súdito. Assim que a túnica lhe cobrira as vergonhas, as portas do elevador deslizaram. A descida continuou. A rainha o olhou de cima a baixo:
— São poucos os que chegam tão perto Dele.
— Todo elevador que desce, uma hora sobe.
A risada dela era quase um gozo:
— Essa é sua lógica?
— É, sim.
— O elevador discorda. Ele não continua descendo enquanto o passageiro devido não desembarca em seu respectivo andar.
— …
— Morreu de quê?
— …
— Ai, não faz assim. Eu fico curiosa. Quer que eu te presenteie? Quer um jorro de prazer? Qualquer coisa.
— Não.
— Está bem. Mas quando você sair do elevador, será uma questão de tempo até eu te encontrar. E você vai me contar tudinho.
Outro bip. O demônio saiu do elevador, deixando Felipe consigo mesmo. Até que uma voz ecoou:
— Morreu de quê?
— Quem está aí!?
— É o elevador.
— Vai demorar muito para chegarmos?
— Estamos quase no último andar.
— Ótimo.
— Ótimo? Lá embaixo é horrível. Muito calor.
— Não pretendo ficar por muito tempo.
— Quem decide isto é Ele.
— Exatamente.
O assoalho do inferno era um caldeirão escaldante. Criaturas horrendas copulavam entre si, humano e animal como somente um corpo. Mas dentre eles, um caminho de mármore refletia o brilho das labaredas, levando ao Seu trono. O último andar havia chegado. Ele o estava esperando quando as portas do elevador se abriram. Sua pele era branca como a lua. Um manto de cetim lhe envolvia. Os olhos eram poços de maldade:
— Faz tempo que não te vejo.
— Posso dizer o mesmo sobre você.
Estendendo os braços, ele disse:
— Vamos, entre! Sinta-se em casa.
Felipe saiu do elevador.
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Plot Execução Escrita Estilo
PLOT: O plot soa interessante: um homem está descendo de elevador ao inferno, enquanto ouve sobre outros condenados, confiante de que o que ele fez é pior do que os demais. O maior problema do plot é que ele indica que tudo vai girar em torno de uma contação interna de histórias, o que não é tão atrativo.
EXECUÇÃO: A execução, em alguns aspectos, acaba com a ideia do conto; especialmente, no péssimo tratamento que o texto dá a temáticas delicadas, com trechos que eu precisei simplesmente arrancar pra publicar. O texto é praticamente uma defesa de perversões; intragável. Eu me sentiria desrespeitado se lesse, do nada, um conto assim dos meus autores favoritos, e não pensaria bem dele. O autor aqui deve tomar cuidado e repensar essas coisas, se quer levar a sério a vida da escrita (a não ser que assuma estar em busca de um público-alvo asqueroso).
Fora isso, há outros problemas na execução: o protagonista não é desenvolvido e o final é o pior tipo de “final aberto”, pois o final é justamente o que é prometido no texto inteiro, e é a única coisa que a trama não entrega. Há outros personagens minimamente desenvolvidos (minimamente, mesmo), porque apenas nos é contado o episódio específico que os matou, mais nada. O conto acaba sendo, no fim das contas, uma longa apresentação de ações isoladas (uma de cada personagem mostrado no elevador), sem desenvolver nenhuma delas, nem seus personagens.
Outro problema é a estrutura: a fórmula se desgasta rapidamente. Depois da segunda personagem, a gente já sabe que esse vai ser o padrão até o final, e pior: o texto não nos surpreende kk
Tem uma tensão razoável construída e o tom é coerente (mas nojento, do jeito negativo – e ninguém se convence qdo isso é posto na conta de uma categoria, no caso, “brutalismo”).
ESCRITA: A escrita está muito boa.
ESTILO: Narrador genérico; não é um texto muito literário; apesar de tudo, o tom narrativo se mantém do início ao fim.
Plot Execução Escrita Estilo
Acredito que o conto tenha cumprido o desafio. Está bem escrito, considerando a proposta do escritor, pode-se dizer que foi bem executado e considerando o estilo, verifica-se a perícia do autor. O plot é porém um tanto quanto perturbador e pesado, de forma que não me senti confortável com ele ao longo da leitura. Por tal motivo o plot recebeu uma nota baixa,