A lua beijou o caminho pedregoso à frente de Benedito. O portão atrás de si gemia com o vento, a ferrugem de suas dobradiças a carantonhar os intrusos. A mansão no topo do morro eclipsava o brilho da madrugada; quase tão morta quanto os que lá viveram.
Até agora.
O andarilho puxara o relógio do sobretudo, o tiritar cronológico anunciando a hora desejada: três da manhã. A despeito do frio, uma gotícula de suor retumbou sobre o vidro do objeto. A superfície convexa da tampa do relógio enquadrava o retrato de uma mulher com uma filhinha no colo.
— Estou chegando, querida — sussurrou o homem, sem saber que os terrores da noite sussurravam de volta.
— Senhor! — uma voz atrás de si lhe puxou. — Tens certeza de que não queres companhia, monsenhor? É perigoso.
— Obrigado, Bonifácio, mas não. Volte à alameda e me aguarde.
O cocheiro da família fez que sim. Benedito quase se arrependeu dos passos cambaleantes que dera. Mas toda vez que encarava aquele retrato, lembrava-se do porquê de fazê-lo. Guardou o relógio, iniciando sua cruzada.
O beiral do segundo andar era um poço de escuridão, as janelas embaçadas e o telhado de ardósia infestado de corvos e morcegos. O jardim era uma miríade de ramos retorcidos encobertos por capinzais que invadiam a estradinha, cobrindo bancos, estatuetas e postes para lamparinas a óleo.
Nuvens de vapor condensadas se confundiam com o sereno da noite a cada arquejo de Benedito, como se o mal lhe acariciasse a alma. As heras já cobriam o fronte do casarão, nódoas quase tão espargidas quanto o câncer que levara a esposa. Águas passadas, pensou Benedito, afogando-se na maré que lhe submergia toda vez que a lua se agigantava sob o mosaico de estrelas.
Lembrou-se de um poema que gostava de recitar na adolescência, o mais famoso de Edgar Allan Poe. “Nunca mais”, o corvo segredara seu nome ao sofredor, admoestando-lhe ao desalento de outrora, quase tão olvido quanto aquela mansão que agora adentrava.
Como um fátuo.
O busto de Minerva estava encravado ao umbral da entrança. Os degraus gemeram com o peso de seu passo trôpego, os sapatos espalhando as folhas que ali repousavam para revelar o desenho de um coração. Uma menina, um papai e uma mamãe, e o coração a palpitar — o maldito coração que não se deixava levar pelo intelecto, pela lógica, pela ciência.
Benedito encarou o busto de Minerva, os olhos de pedra a lhe julgar. Havia um dia que receou aqueles olhares, aquele julgamento. Ninguém acreditaria. Coisas do passado. Lendas, nada mais. A assombração do homem moderno sempre foi e sempre seria a ignorância. Mas quando não há luz no fim do túnel, um homem precisa fazer seu próprio fogo, pois assim Deus disse: que se faça luz.
E luz se fez.
Benedito acendeu a lanterna de bolso e escancarou a porta. O cheiro de mofo lhe encrustou a garganta, sua tosse ecoando pelo corredor do hall de entrada. A brisa da noite ululou, serpenteando a escuridão à medida que o visitante tropeçava:
— Beatriz! Minha doce Beatriz, onde estás?
A porta atrás de si se fechou. Não foi o vento. O vento não gira maçanetas. Sentiu um hálito de amônia em seu pescoço, a luz da lanterna falhando. Meu Deus! Benedito se virou. Não havia nada. Quando tornou a olhar para a sala, pôde jurar que tinha visto alguém sentado.
Num piscar de olhos, tudo sumiu.
— Beatriz, querida! Quanta saudade sinto de ti. De teu abraço, de teu beijo. Nossa filhinha a quer de volta. Eu sonhei convosco.
Passos. Do andar de cima. Benedito sopesou as passadas enquanto o medo lhe sopesava as entranhas. Degrau por degrau. A luz da lamparina se derretia sobre a parede, lambendo o mofo dos quadros da família. Benedito não saberia dizer se as lágrimas que lhe invadiam os olhos eram por conta da nostalgia ou da poeira incessante a rebrilhar sob o facho de luz.
O quarto da filha. O berço balançava quando ele se aproximou. O ar estava denso. O escuro, mais escuro. O frio, mais frio. O medo? Ainda maior. Nunca achou que teria de se segurar para não cair de pavor naquele quarto. Foi quando ouviu a canção de ninar.
— Brilha, brilha, estrelinha…
A voz, era a voz mais doce, macia e suave que já ouvira. Mas não pertencia àquela casa. Estava distante. Do outro lado. Cambaleando em direção ao berço, Benedito sussurrou:
— Beatriz, onde estás? Por favor, apareça-te.
O vento da noite pareceu lhe atravessar os ossos, indo para o quarto do casal. Benedito o seguiu, a luz da lanterna a tremular. Gemidos, de prazer, de amor, de carícias, ecoaram pelo dossel abandonado:
— Prometa-me: serás meu até o fim, e quando o fim não for o bastante, serás meu ainda assim.
— Prometo-te — sussurrou Benedito, ouvindo a própria voz duas vezes.
Lembrava-se daquele momento. Perto do fim. Onde ela estava? Abriu os armários. Nada. Foi ao banheiro. Nada. De repente, ouviu algo debaixo da cama. Os lençóis farfalhavam. Benedito engoliu em seco, lutando para se deitar. Havia algo ali. Tomou fôlego. Tirou as fronhas do caminho. Nada. Apenas o breu. Espera, o que era aquilo…
Pulou em sua direção! Benedito urrou, as pontas dos dedos cravadas por dentes afiados. Dentes de roedores. Balançou o rato de um lado para o outro, martelando o crânio dele contra a parede. O gemido de dor do bicho somente não foi maior que o estampido gelatinoso dos ossos partindo-se. A mancha de sangue deslizou pelo assoalho.
Sentiu uma mão sobre a sua, fria como o gelo.
Não a via, mas estava lá, apalpando-a.
Os ecos voltaram:
— O que foi, querido? Deixa eu te ajudar…
— Não — disse Benedito, sem nada dizer. — Vosmicê está grávida, não tens de fazer esforço.
— Os criados cuidam de casa, mas só eu cuido de ti.
E os ecos sumiram.
Benedito seguiu o vento até a varanda dos jardins do fundo. Quando alcançou a vidraça, seu coração gelou. Parou. A silhueta de uma mulher estava emoldurada pelo vidro. Seu vestido de seda branco como a lua, suas madeixas pálidas a balançar com a brisa. Benedito foi até ela, dizendo para a figura debruçada:
— Tu sempre gostavas de observar a noite.
Ele se debruçou sobre a varanda, com medo demais para olhar para o lado. Tentou refrear o jato de vômito que queria fugir de seu estômago toda vez que sentia o aroma de amônia. Mas se forçou a ficar ali:
— Senti tanto a sua falta.
Os olhos dela estavam atados a ele. Um breu; sem vitalidade, esperança. Apenas morte. Um eco daquilo que já se foi, observando a lonjura do acaso. Conseguiu ouvir os ossos a ranger enquanto ela pousava a mão sobre si; tão ossuda que o anel de noivado mais parecia uma argola. Sentiu o hálito de amônia enquanto a voz sussurrava em seus ouvidos:
— Tu és meu. Lutei contra A Morte para conquistar meu lugar ao vosso lado. Dir-me-ia, amor, por que demoraste tanto para chegar?
Benedito engoliu em seco. Dois anos. Forçava-se a dizer que fora o medo que o mantivera afastado. Mas Benedito sabia que o medo nunca foi suficiente para impedir um homem apaixonado.
Porque o medo era a mãe de todas as paixões.
Ele queria se esquecer. Queria acreditar que aqueles versos que ela lhe dedicara não passavam de eufemismo. Queria seguir em frente. Mas não podia. Jamais poderia continuar com sua vida sabendo que a amaria de novo, mesmo morta. Por quê? Porque se a visse depois de morta, não haveria motivo para continuar vivo.
— Queria o melhor para a nossa pequena. Parte por receio de perdê-la, parte por receio de fazê-la sofrer ainda mais. Não consegui, Beatriz. É por isso que vim aqui, para trazê-la até nós, já que não tenho forças para nos levar até vós.
Sentiu os lábios rochosos sobre sua bochecha:
— Eu sei, querido. Mas não posso sair, não daqui. Este é o nosso lar. Tu és meu único amor. Olhe para mim, Benedito.
Assim ele o fez. Um corvo pousou sobre a amurada da varanda enquanto Benedito encarava sua amada. Estava pútrida. Cadavérica. Espectral. Já não tinha a beleza da esposa, era somente um eco a grasnar seu lamento na noite.
Mas era Beatriz. Era isso que importava.
— Como direi a ela? — perguntou ele, aos prantos. — Como, minha querida? Não há homem no mundo capaz de resistir à ideia de um relacionamento como o nosso. Sepultar-me-ei e a felicidade de nossa filha, porque enquanto houver memória de ti no coração dela, tu ainda viverás.
Sentiu as pontas dos dedos, unhas podres a lhe arranhar o queixo enquanto o corvo torcia o olhar, intrigado. Ela sussurrou:
— O que é amor sem sacrifício?
— Amar é um sacrifício. É doar parte de si para o bem de outrem. Tu não amas nossa querida?
— Eu amo a ti.
Não. Não, não era isso que Beatriz falaria. Não aquela com a qual Benedito se apaixonara. O corvo bicou a aparição, que o espantou para longe. O viúvo forçou as mãos dela para longe do rosto. Suas madeixas ondulavam. Encarou a aliança ainda no dedo. Retirou-a, não sem um gemido de lamento por parte dela:
— Como ousa? Alterquei com A Morte para ficar perto de ti. Já não me amas?
— Amo, dói-me porque é a mais pura das verdades. Trar-lhe-ia tudo que é mais sagrado, não fosse a vida de nossa princesa. Pois aquilo que é mais precioso para ela, também o é para mim.
— Para mim, tu és o mais precioso.
— Fica-te então com a aliança, para se lembrares daquele que te amou, pois já não sou este homem. E levo de ti apenas a lembrança daquela que amei, pois já não é mais a mesma mulher.
Ela lhe segurou os braços:
— Vossa mercê não vai se separar de mim!
Benedito a encarou nos olhos:
— Não me separei. Foi A Morte.
Ela urrou enquanto ele saía. A mansão tremeu. A noite tremeu. Mas Benedito não se permitiu o abalo. Desceu as escadas com Beatriz agarrada sobre si, segredando-lhe os mistérios do outro lado. Não tardaria para que ele fosse dela. A hora dele também haveria de chegar. Mas ele sabia que era uma mentira. Benedito morreu no dia que a enterraram, e voltou à vida no dia que a desenterrou.
Desceu a trilha enquanto urros de choro e ódio lhe seguiam, os corvos espantados enquanto os morcegos saciavam a sede com a carcaça de rato posta à sua mesa. Sem olhar para trás. Quando chegou no cabriolé, o cocheiro tinha a voz quase tão tremida quanto os resfolegar de seus cavalos:
— S-s-senhor, eu ouvi a voz dela. Tem certeza de que não queres voltar lá com um santo e benzer o patrimônio?
Benedito fechou a entrada e subiu no carro, encarando o corvo que lhe grasnava do portão. Finalmente, disse:
— Nunca mais.
E o corvo voou.
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Plot Execução Escrita Estilo Desafio
A história de um homem que volta à casa onde morava com a mulher, que morrera de câncer. Ela aparece como um fantasma e tenta convencer o homem a se matar para ficar com ela, mas então ele percebe que ela não é a mesma mulher a quem amava e vai embora. Se ele tivesse jogado o Witcher 3, ele saberia que fantasmas de mulheres são criaturas horríveis e vingativas, que não podem ser redimidas. Porém eu quero destacar algumas características do texto que eu vejo como problemas:
Palavras complicadas que tiram a atenção do texto e não significam exatamente o que o autor queria:
“O portão atrás de si gemia com o vento, a ferrugem de suas dobradiças a carantonhar os intrusos.” Carantonhar não é fazer caretas?
“Benedito sopesou as passadas enquanto o medo lhe sopesava as entranhas.” Sopesar não é ponderar?
Metáforas exageradas que não funcionam da forma que o autor queria:
“A lua beijou o caminho pedregoso à frente de Benedito.” A metáfora é a primeira sentença do texto, de forma que não explica nem embeleza nada.
‘“Nunca mais”, o corvo segredara seu nome ao sofredor, admoestando-lhe ao desalento de outrora, quase tão olvido quanto aquela mansão que agora adentrava.’ Como o corvo disse ou de alguma forma lembrou o nome do poema? Como o corvo admoestou ou de alguma forma serviu de admoestação para o homem?
“Mas quando não há luz no fim do túnel, um homem precisa fazer seu próprio fogo, pois assim Deus disse: que se faça luz.” A passagem citada não tem nada a ver com a expressão luz no fim do túnel.
Muitos períodos problemáticos e frases isoladas, por exemplo:
“Gemidos, (trocar a vírgula por um travessão) de prazer, de amor, de carícias, (trocar a vírgula por um travessão) ecoaram pelo dossel abandonado:”
“Amo, dói-me porque é a mais pura das verdades.” Este período deveria ser dividido em duas frases.
“Sepultar-me-ei e a felicidade de nossa filha, porque enquanto houver memória de ti no coração dela, tu ainda viverás.” Eu entendi que se matar seria matar a felicidade da sua filha, mas a sequência da frase não faz sentido, porque a oração iniciada pela conjunção explicativa “porque” não explica a oração principal.
Plot Execução Escrita Estilo Desafio
PLOT: Não sei se eu estou sendo ranzinza demais, mas estou achando meio chatos os plots desse desafio, inclusive este aqui. Todos eles me pareceram um tanto sem substância. Neste caso aqui, tenho até dificuldade de dizer sobre o que é o conto: um viúvo que abandonou sua (1) mansão, (2) volta até lá (3) no pior horário possível e (4) conversa com a esposa morta que assombra o lugar. A conversa não flui muito bem, ele desiste rápido e tem que fugir. Cada um dos pontos que eu enumerei me soaram sem propósito, mal explicados. Li duas vezes pra garantir e senti a mesma coisa. Eu sei que contos de terror/fantasma quase nunca têm explicação e já me conformei com isso (só não gosto ainda).
EXECUÇÃO: A trama não tem muito subtexto. O cenário é bom, mas exagerado nas metáforas. O protagonista tem um jeitão próprio, mas eu não entendi a motivação do personagem, nem o da esposa morta. Tem muita coisa boa, mas elogios a gente deixa pro Lisbôa fazer. A execução me incomodou de três maneiras: (1) a figura sintática do gpt toma quase todas as frases do narrador onde há metáforas, (2) que são incontestavelmente excessivas e muitas são ruins (a primeira frase é de lascar) e (3) onde essa figura sintática não aparece e a voz autoral é nítida, os períodos não fazem sentido, porque são excessivamente estratégicos, mas em mim geraram um efeito negativo. Me refiro parágrafos como (“Lembrava-se daquele momento. Perto do fim.”). Esse tipo de escolha é o mesmo que fez algumas frases dependentes do parágrafo ficarem soltas, fora dele, sem nenhum impacto. E até uma que não teve sentido nem filosófico, nem narrativo:
“Mas quando não há luz no fim do túnel, um homem precisa fazer seu próprio fogo, pois assim Deus disse: que se faça luz.
E luz se fez.”
ESCRITA: A escrita é boa, mas muito chata nos itens que eu pontuei antes, além de terem só um valor de narrativa mesmo, porque sintaticamente são sem sentido. Tem pretérito mais que perfeito sem sentido também (“O andarilho puxara o relógio do sobretudo”), ou no mínimo desnecessário. Tem períodos que precisariam estar ligados e não estão (“Uma menina, um papai e uma mamãe, e o coração a palpitar. O maldito coração que não se deixava levar pelo intelecto, pela lógica, pela ciência.”). Tempos verbais estranhos (“A assombração do homem moderno sempre foi e sempre seria a ignorância.”). Tem conjugação na pessoa errada (“Nossa filhinha a quer de volta. Eu sonhei convosco.”). E tem até frase separando sujeito de predicado (“A voz, era a voz mais doce, macia e suave que já ouvira.”). A tentativa de uma fala antiga e rebuscada criou algumas maluquices também (“Fica-te então com a aliança”).
DESAFIO: 10 de 10 no cumprimento do desafio.