Menu fechado

Meu último adeus, querida Sakura

De Naoki Nakamura para Sakura Ana Fonseca

Junho de 1990, de Kyoto para São Paulo

Ola,

Esse é primera carta eu enviar para Brasil. Minha filha, Naomi, saiu Japao para morar marido com marido depois de vovo, minha esposa, Ayumi, se for. Voce ser neta minha deve. Desculpa vovo baka burro, aprender brasileiro portugues é dificil. Nao ter dinheiro para ir dois. Filha foi. Pai ficar ficou. Gosta sorvete? Eu gostar sorvete.

Adeus.

De Sakura Ana Fonseca para Naoki Nakamura

Setembro de 1990, de São Paulo para Kyoto

Oi,

Oi vovô, gosto muito sorvete! Mais eu tenho que falar: é muito difícil entender japonês também! Tem sorvete no japão? Aqui no brasil tem muito! Mamãe e papai vivem trabalhando, mas vejo desenho. Gosto de Dragon Ball! Na escola falam que é coisa de menino, mas tô nem aí! Meu sabor favorito é nescau. E o seu? Qual é o seu?

Tchau.

De Naoki Nakamura para Sakura Ana Fonseca

Outubro de 1990, Kyoto para São Paulo

Olá,

Japones é dificil mesmo, por isso eu aprender portugues, para falar você com você. Fui muito mercado procurar sorvete sabor nescau. Nao achei. Nescau deve ser fruta rara que só tem Brasil. Mas achei Dragon Ball. Vende em revista perto da escola. Goku tem rabo. Vovo achar engracado. Sabor favorito meu é morango. Vovo estudar mais para falar você com você.

Adeus.

De Sakura Ana Fonseca para Naoki Nakamura

Janeiro de 1991, São Paulo para Kyoto

Oi,

Parou de passar Dragon Ball na TV! Eu já vi tudo que tinha. Ah, vovô, nescau é chocolate, acho que prefiro toddy, é mais gostoso. Morango é muito bom também! Agora eu fico o dia todo em casa, pois mamãe e papai ficam trabalhando de dia e de noite. Ainda bem que jogo Mario. Você gosta de jogar? Eu gosto de Mario.

Tchau.

De Naoki Nakamura para Sakura Ana Fonseca

Fevereiro de 1991, Kyoto para São Paulo

Olá,

Vovo vovô achar engraçado ter confundido nescau. Procurei toddy o dia todo. Nao achei. Deve ser fruta rara também? Eu comprei muito Dragon Ball. Goku é muito engraçado, parece filme de cinema aqui perto de casa. Você gostar cinema? Eu gostar gosto. Procurei Mario e achei jogo de Nintendo. Muito famosa aqui. Comprei Mario e Dragon Quest. Gostei muito. Mas ter que trabalhar. Vou ficar tempo fora, quero estudar e conseguir dinheiro para viajar Brasil e ver neta.

De Sakura Ana Fonseca para Naoki Nakamura

Setembro de 1991, São Paulo para Kyoto

Olá,

Nossa vovô, você achou Dragon Quest? Será que é igual Dragon Ball? Eu já joguei tanto Mario que não aguento mais! Tem novos episódios de Dragon Ball! Agora o Goku é grande. Mas o Kuririn não cresceu! Tenho medo de não crescer. A gente teve que se mudar, aluguel muito caro. Tô ajudando mamãe a cozinhar pra vender, quase não brinco mas. Só estudo.

Tchau.

De Naoki Nakamura para Sakura Ana Fonseca

Outubro de 1991, Kyoto para São Paulo

Olá,

Sei que deve estar preocupada. Fui trabalhar em firma aqui perto e quebrei perna. A empresa pagou muito para eu não denunciar. Fiquei no hospital muito tempo, mas estou bem. Meu português melhorou? Espero ter melhorado. Com todo esse dinheiro, comprei muitos livros de português. Alguns é são difícil difíceis. 

Tem Machado de Assis, Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Eu gostei muito, mesmo que seja difícil. Tem um brasileiro aqui, ele me ajuda também. Roberto o nome dele. Sei que sua mãe e seu pai trabalharam para me levar para perto de vocês. Pedi que parassem. Você é mais importante. Vovô quer vê-la feliz. Comprei Dragon Quest I, II e III e enviei para você em caixa com surpresa. Espero que goste. É japonês, mas se tiver dúvida, vovô responde.

Eu descobri que falar “adeus” no dicionário significa que não vai ver pessoa de novo. Eu discordo do dicionário. Vou usar adeus assim como você usa “tchau”.

Adeus.

De Sakura Ana Fonseca para Naoki Nakamura

Novembro de 1991, São Paulo para Kyoto

OLÁ,

Vovô, obrigada, obrigada, obrigada! Dragon Quest é muito legal! Eu peço pra mamãe traduzir as palavras e fico jogando quando dá. Você me enviou uma revista também! Eu não entendo nada, mas já vi esse episódio antes. Vou tentar desenhar. Quero ser desenhista e fazer várias histórias quando crescer. Sobre “adeus”, é, eu acho dicionário muito chato, mas se você disse é por que tá certo!

Vou estudar bastante também, assim vou fazer bastante dinheiro vendendo histórias e comprar um avião só pra mim pra eu poder voar e ver você quando eu quiser. Vou ter que ajudar a mamãe bastante nesse fim de ano, então só vou poder escrever ano que vem. Mas bom fim de ano para você! TE AMO!

Tchau.

De Naoki Nakamura para Sakura Ana Fonseca

Julho de 1992, Kyoto para São Paulo

Olá,

Como está? Espero que bem e que esteja estudando. Passei o fim de ano todo arrumando as coisas em casa. Li muitos livros também. Procurei uma locadora perto de casa e estou alugando várias novelas brasileiras. Eles demoram muito para contar a história, não?

Que bom que gostou dos presentes. Estou trabalhando para visitá-los também. Sei que as coisas não estão fáceis. Mas mal posso esperar para visitá-la. A última vez que te vi você era uma coisinha rechonchuda que cabia nos meus braços!

Adeus.

De Sakura Ana Fonseca para Naoki Nakamura

Setembro de 1992, São Paulo para Kyoto

Olá,

Oi, vô! Nossa, seu português melhorou muito. Comecei a ler também. Peguei um livro da biblioteca da escola muito assustador. Nele, um cientista descobre uma estátua de um polvo estranho que vive lá embaixo no oceano, dormindo! É muito legal.

Descobri uma banquinha de jornal e agora sempre compro revistinhas. Estou lendo Homem-aranha. Mas eu tenho que ler escondida porque senão as meninas ficam rindo de mim. Na verdade, tudo que é de menino eu gosto. Odeio brincar de boneca, odeio ter que me vestir de saia e odeio quando me chamam de docinho! No meu aniversário pedi pra mamãe uma fantasia do Goku, mas ela não gostou. Tô nem aí!

Vovô, como era a vovó?

Tchau.

De Naoki Nakamura para Sakura Ana Fonseca

Outubro de 1992, Kyoto para São Paulo

Querida Sakura,

Começarei pelo começo. Eu acho que você e a vovó gostariam muito uma da outra. Sabe como a conheci? Numa briga! Sim, era um dojo de karatê. Ela era a única menina lutando. Pensei que poderia ganhá-la facilmente, mas tomei uma surra. Pedi para sair com ela pois estudávamos em colégios diferentes e, em poucos meses, começamos a namorar.

Sabe o que ela tinha em comum com você? Não parecia se importar com o que os outros pensavam. É claro que Naomi sentia vergonha das nossas brincadeiras, e acredito que ela não queira o mesmo para você. Ela é uma boa mãe, acredite. Mas se o vovô puder falar com você sobre uma coisa, essa coisa é a seguinte: se te faz feliz, faça.

Infelizmente as coisas não tem estado tão boas desde que me acidentei, e está cada vez mais difícil encontrar um bom emprego. Por favor, mande lembranças. Também te amo.

Adeus.

De Sakura Ana Fonseca para Naoki Nakamura

Fevereiro de 1993, São Paulo para Kyoto

Olá,

Oi, vô! Segui o seu conselho. Peguei a tesoura e cortei o meu cabelo sem a mamãe ver. Ela ficou furiosa e chorou, e meu pai não soube o que fazer. Pararam de comprar revistinhas para mim, a acredito que essa será minha última carta em um bom tempo, já que mamãe e papai não querem que a gente converse. Mas saiba que eu te amo.

Tchau.

De Sakura Ana Fonseca para Naoki Nakamura

Abril de 1998, São Paulo para Kyoto

Olá!

Meu Deus, como estou feliz de ter conseguido o seu endereço, vô. Lembra das nossas cartas? O resumo da história é: saí de casa, não falo mais com meus pais, pelo menos não por agora. Eles me expulsaram quando descobriram que eu gostava de outra menina. Estamos namorando há algum tempo, mas espero que você possa conhecê-la, no futuro. O nome dela é Júlia.

Estou fazendo de tudo para entrar na faculdade de Artes. Não tá fácil, mas acho que nossa vida nunca foi, então qual o problema, não? O que eu disse lá atrás ainda tá guardado, tá? Eu posso não comprar um avião, mas vou fazer questão de te trazer pra cá, pelo menos para uma visita, ou quem sabe eu não visite o senhor? Como sempre, meu mais sincero “eu te amo”.

Tchau!

De Naoki Nakamura para Sakura Ana Fonseca

Outubro de 1998, Kyoto para São Paulo

Querida Sakura,

É um prazer enorme ler uma carta sua. Confesso-te que fiquei surpreso com a notícia, mas desde que esteja feliz, é isso que importa. É uma pena que a relação entre vocês não esteja boa, mas espero que possa contar comigo. Eu ainda estou lendo Dragon Ball, e você? Ah, e finalmente achei o bendito do achocolatado, e gostei muito também.

Estou tentando fazer algumas receitas brasileiras também. Sabe aquele Roberto? Agora ele está empreendendo e abriu um restaurante carioca aqui. Está fazendo muito sucesso. Enfim, mande-me notícias.

Adeus.

De Sakura Ana Fonseca para Naoki Nakamura

Janeiro de 1999, São Paulo para Kyoto

Olá,

Nossa, vô, estou imensamente aliviada que a notícia não te magoara. Estou tão feliz agora. Consegui entrar na faculdade e mal posso esperar para começar minha carreira. É engraçado, mas eu vou te enviar um desenho que fiz de nós dois, baseado nas fotografias de família. Espero que goste e sinto muito não poder escrever mais.

Estou enviando em anexo algumas páginas de uma história que acho que pode dar certo. Um dos personagens eu fiz em homenagem a você e também tem uma mulher espadachim que é igualzinha a vovó. Por favor, mande notícias. Eu te amo, como sempre.

Tchau.

De Naoki Nakamura para Sakura Ana Fonseca

Julho de 1999, Kyoto para São Paulo

Querida Sakura,

Nem sei por onde eu começo. Estou na cama de um hospital agora. Passei mal durante algum tempo e até achei que fosse algum problema com as receitas brasileiras (sim, eu cozinho mal). Após alguns exames, o médico constatou que eu estava com câncer de estômago. A verdade é que não tenho muito tempo.

Aqui no hospital passa muito Dragon Ball. Mesmo que separados por longas distâncias, foi muito legal ter vivido esse tempinho com você. Não sei se conseguirei ir mais te visitar, mas esse desenho que você enviou de nós me encheu de alegria.

A sua história é muito legal também, e gostei muito das homenagens. Espero que possa ter sucesso e achar um lugar para você e sua namorada viverem. A sua mãe está vindo me visitar. Vou mostrar essa história para ela, ela nunca admitiu, mas sempre gostou de histórias assim.

Ah, poderia me fazer um favor? Esse meu personagem, poderia incluir alguma cena em que ele tenta achar uma fruta com o nome de Nescau? Seria engraçado. Enfim, soube que vão lançar mais um Dragon Quest, está empolgada? Eu estou. Parece que não param de lançar mais. Jogue por mim, pode ser?

Não sei o que sua mãe vai dizer, mas posso te afirmar: não desista. Se é isso mesmo que você quer fazer na vida, vá com tudo, todas as suas energias. Mas, acima de tudo, obrigado por me fazer aprender português e, convido-te a dar uma segunda chance ao japonês. Quem sabe os espíritos também possam ler cartas? Adoraria receber a sua, mas até lá, deixo aqui o meu mais sincero “eu te amo” e meu último…

Adeus. 

Você não tem permissão para enviar avaliações.

Avaliações

1 avaliações encontradas.

Plot Execução Escrita Estilo Desafio

Críticas Positivas
Aspectos Técnicos Elogiados:

A proposta de mostrar a evolução do narrador através de erros de português é arriscada, mas bem executada
O uso de rasuras e correções nas cartas cria verossimilhança
A progressão natural do vocabulário e da comunicação ao longo do tempo
A mistura natural entre assuntos triviais e sérios, característica de crianças
A coerência temporal — o salto de 5 anos entre 1993 e 1998 funciona bem na narrativa
O formato epistolar permite acompanhar a evolução dos personagens de forma orgânica

Elementos Narrativos Bem Construídos:

A tentativa de conexão afetiva entre avô e neta que não se conhecem pessoalmente
A permanência das trivialidades da vida (videogames, sorvetes, Dragon Ball) até momentos profundos
O humor involuntário do avô tentando entender produtos brasileiros (Nescau, Toddy)

Críticas Negativas
Problemas Estruturais:

Exposição excessiva logo na primeira carta
Algumas escolhas linguísticas questionáveis (exemplo do “vovô” riscado apenas para adicionar acento)
Inconsistências na verossimilhança — a menina consegue usar aspas corretamente mas erra em outras construções básicas

Questões Temáticas:

Clichê do conflito familiar: Repetição do tema “problemas entre pais e filhos” que apareceu em outros contos analisados
Crítica ao discurso ideológico: Os críticos, identificando-se como cristãos conservadores, veem a narrativa da jovem que se assume lésbica e rompe com os pais como “lacração” e politização desnecessária da vida privada
Artificialidade emocional: Questionam a profundidade do amor entre avô e neta baseado apenas em correspondências esparsas

Problemas de Execução:

Algumas piadas forçadas (como a repetição da confusão entre Nescau e Toddy)
Momentos em que a tentativa de ser tocante pode soar artificial
A escolha de Guimarães Rosa como leitura do avô japonês aprendendo português foi considerada inverossímil

Crítica Central
O texto cumpre o desafio proposto (mostrar a alteração do narrador através da própria narração), mas sofre de:

Excesso de clichês temáticos
Inserção de discurso político que os críticos consideram desnecessário
Artificialidade emocional em alguns momentos
Falta de sutileza em certas escolhas narrativas

Os críticos reconhecem qualidades técnicas e momentos emocionalmente eficazes, mas lamentam que questões ideológicas e escolhas clichês comprometam o potencial do texto.