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Maldições que se Cruzam

– Vamos, Mateus! Tô indo pro carro.

– Péra… tô escovando os dentes. Ô, Lucas! Não esquece a lanterna.

Lucas, de costume, esquecia a lanterna.

– Tá no carro! – não, não estava.

Ele volta correndo, pega a lanterna e vai para o carro esperar. 

Aquele dia, Mateus era a animação em pessoa. A investigação tinha potencial para ser uma das melhores. E seria uma lástima se não fosse, pois o lugar estava a 350km deles, na cidade de Cuiabá, em Mato Grosso.

A animação era pelo seu corpo, que atingira o estágio que queria; como Lucas, ele poderia controlar sua transformação. Pela primeira vez, não precisaria assistir, poderia agir, poderia… matar.

Mateus se atentava a detalhes, o investigador da dupla, que não bastava para compensar sua instabilidade. Com essa habilidade, Lucas temia não conseguir manter as coisas sob controle.

– Que foi, Lucas? Tá pensando no quê? Que cara de preocupação.

– É que eu não sei por que você se anima com isso. Eu gosto que você tenha o dominus mutatio, mas estamos indo pra Cuiabá por causa de uma coisa acontecendo naquele lugar. Não tem porquê essa animação. É um problema, não é brincadeira – “Ter o controle da transformação mudava algumas coisas, não todas”, pensou.

– Cara, é que dessa vez eu posso ajudar. Se esse cara merece ser punido, eu posso punir. E nem vem falar de deixar pra polícia, porque você sabe que a “justiça” do Brasil é um lixo.

A irritação veio num instante. Com alguns segundos de silêncio, ele continuou:

– Não é isso? A gente faz isso porque não existe justiça nesse país. Ninguém vai ajudar essas pessoas que a gente ajuda. E os desgraçados que a gente deixou viver não merecem estar com vida e eles vão passar anos sendo sustentados na cadeia sem precisar trabalhar, com o dinheiro de impostos das vítimas.

Lucas continuou como estava, com uma das mãos ao volante e a outra no câmbio. A viagem seguiu em silêncio. 

A cada quilômetro, Lucas remoía algum caso que não saiu como esperado; um deles, o pedófilo que matava as vítimas. Eles não o mataram; deram uma surra de se considerar, amarraram as mãos e jogaram na frente da delegacia. Ficou na prisão alguns meses, fugiu e fez outras 15 vítimas; nenhuma delas tinha completado 10 anos de idade. Morreu num acidente de carro fugindo da polícia ao se chocar com uma carreta. Nem deve ter sofrido. Para os irmãos, restava na consciência as quinze crianças.

Em outra investigação, o suspeito parecia ter dificuldades de cognição e não havia provas que fossem sem contestação. Era um homem do tipo que deixa as emoções agirem, um violento por natureza que podia ser o culpado pelas mortes, mas podia não ser. Interrogado pelos irmãos, ficou com os nervos à flor da pele e avançou neles. Lucas achou que fosse uma reação do instinto de alguém com aquele perfil. Mas Mateus analisou por outro caminho: achou que a reação era de alguém “se entregando”; uma tentativa de silenciar os dois enquanto cometia um tipo de admissão de culpa. O homenzarrão tentou agredi-los com uma faca. A saída foi Lucas se transformar e segurá-lo, derrubando a arma. Mateus não perdeu tempo: pegou-a e a cravou nas costas do suspeito. O alívio veio nos outros dias: a investigação da polícia confirmou que aquele era o culpado pelas mortes. Para Lucas, foi um alívio com relação à justiça, mas não sobre a postura do irmão.

A viagem seguia em direção a Cuiabá.

Chegando na cidade, a investigação continuou por três dias. As informações sob confidência que Mateus conseguia do sistema da Polícia Federal ajudavam. Não demorou para concluírem que o agressor das prostitutas era o barrigudo, o dono da loja de autopeças da cidade.

O cara contratava prostitutas e, por vezes, as espancava. Uma delas havia morrido no hospital, o que levou as outras a prestarem queixa. Mas algumas que tinham prestado queixa retiraram. Isso atraiu a atenção dos irmãos, que tinham certeza de que aquele era o culpado. Não havia dificuldade em ter desprezo por aquele tipo. Matar esse desgraçado vai trazer satisfação pra mim e benefício à humanidade; de justiça de verdade que dure? O dilema não era “quem tem o direito de matar?” ou “quem escolhe quem deve ou não morrer?”, nem aquela besteira de “se o matarmos, seremos como ele”. Nada dessa bobagem de julgar com base em emoções. Quem poupa o lobo, sacrifica as ovelhas.

Na verdade, esse era o dilema.

Lobos agem como animais, sob tutela do ódio, do desejo de matar. 

Os irmãos, sob transformação, agiam como… como lobos. Às vezes, tinha a impressão de estar agindo como um viciado, um alcoólatra, se entregando àquela sua outra natureza para esquecer os problemas, com a desculpa de não ser o responsável em todos os sentidos pelas coisas que fazia “não sendo ele”.

Seu irmão não pensava desse modo. Reconhecia o mal em si, mas não usava esse termo, pois separava o que eram motivações de dentro e o que eram atos postos em prática. Mateus não tinha experiência com as transformações tal como Lucas, mas acreditava que sua essência era aquilo, algo trancafiado em si. Esse era o receio de Lucas.

– Ele tá vindo, Mateus. Fica no carro, beleza? Eu dou conta. Ele vai se entregar.

Mateus não reagiu, mas não gostou da ideia.

– Oi, senhor! Meu nome é Lucas. Eu sou irmão da Mariana, mas acho que o senhor conhece ela como Nicole.

– Ah, conheço! E como conheço! Mas o que você quer?

– É que da última vez, parece que vocês tiveram alguns problemas.

O nojento sabia do que se tratava. Sem prever qual era a intenção do rapaz, mas preocupando-se, resolveu antecipar-se.

– Ora, moleque. Eu tô com uma arma. Sai da minha frente que eu tenho o que fazer – disse com a mão na cintura.

– Não, não. Espera.

Ele o empurrou e correu para dentro do portão.

Lucas não conseguiu segurá-lo. Mateus saltou, se transformando, em sua frente e desferiu um golpe na garganta, derrubando o homem. Lucas se transtornou.

– O que foi isso?

O sangue jorrava molhando o chão, enquanto os dois corriam para o carro. Chegando no hotel onde estavam instalados, seguiu-se uma discussão que parecia não terminar; tensão e inutilidade. Nenhum dos dois mudaria de ideia sobre a forma de agir. Passado o embate, às 4 da madruga, se preocuparam em sair da cidade; mas não sem Mateus checar as informações sob confidência com seu amigo federal para saber do próximo destino.

O mal-estar entre os dois se seguiria por um tempo, mas tudo mudou ao Mateus ler sobre a investigação em Rondônia; eles sabiam que precisavam um do outro para um caso com aquela dificuldade.

– Vinte e três crianças sumiram, todas meninas sem completar 12 anos. Tudo isso há 3 anos, e retomaram o caso porque acharam ossadas de algumas delas. E veja, os desaparecimentos seguiam uma agenda, com cada registro sendo feito em um dos meses do ano.

– Podia ser parte de algum ritual ou, não sei, experiências de algum louco. Mas por que esse número? E por que parou? 

– Cara, a gente tem que ir.

– Olha, se o cara parou por todo esse tempo, por que acha que a gente consegue encontrar? – perguntou Lucas.

– Não importa se ele parou de matar. As ossadas são das três primeiras. E se as outras vinte estiverem com vida? Talvez, servindo de escravas de sexo.

Mateus apelou, funcionou. Começaram a arrumar as coisas para partir.

– Não via a hora de sair desse lugar! Estou o tempo todo suando sem parar. Mas dizem que Rondônia não é brincadeira.

– Cara, nenhum lugar queima a pele como esse. No máximo, algum lugar pode empatar. Tipo o inferno!

As piadinhas melhoravam o clima, mas a sensação de perigo vinha ao olhar para o irmão.

A viagem seguiria por volta de 1500 quilômetros até Porto Velho, local dos primeiros registros. E eles não pretendiam parar para dormir.

Tentaram não tocar em assuntos que lembrassem o impasse sobre o modus operandi da dupla ou seus dilemas sobre justiça. Fizeram cinco paradas na estrada e, numa delas, em Ji-Paraná, Lucas dormiu esperando Mateus no carro e este teve de assumir o volante.

Comparado a Mateus, Lucas se enfurecia em demasia, mas a luta com todos aqueles instintos não os deixava sair. Seu irmão era de outro tipo, com outra filosofia. Não esbanjava fúria, levava as coisas na risada, mas expunha sua animalidade sem dificuldade, sem algo que o valesse. Não media as consequências. A única regra que seguia era de não se transformar na frente de ninguém que não estivesse sob a investigação da dupla. Não queriam pânico, nem perseguição.

Chegando em Porto Velho, avistaram uma pensão num lugar sem iluminação e sem movimento. Estava no jeito. Deram entrada e foram começar o trabalho.

Mateus adorava essa parte. Cruzar todos aqueles dados em sigilo era um tipo de jogo. Lucas detestava aquela paradeira toda; deduzia elementos com alguma precisão, mas não tinha paciência para procurar detalhes.

– Lucas, olha. Se você reparar, os desaparecimentos começaram neste ponto e foram para este. Seguiram um padrão de localidade – disse Mateus.

O dedo na tela do notebook apontava uma parte do mapa.

– Entendi. Na ordem que aconteceu, as crianças pararam de sumir em Porto Velho, começaram sumir em Humaitá e essas duas foram nesse lugar? – pôs o dedo na tela.

– Isso, em Lábrea. E veja os números. As primeiras dezessete crianças foram de Porto Velho, mas teve três em Humaitá. Teve uma nesse vilarejo e as últimas em Lábrea.

– O trajeto tá na cara, não acha?

– A polícia percebeu e é por isso que estão investigando na região de Lábrea, não em Porto Velho. Das cidades das crianças que desapareceram, a única de Rondônia era Porto Velho, as outras ficavam todas no Amazonas, mas Porto Velho fica no limite entre os dois estados e é o único centro de relevância.

A última informação fez a dupla se convencer de que o sequestrador era de fora. Seriam 400 quilômetros até a cidade de Lábrea. Nunca ouvi falar.

Quanto mais se aproximavam, a natureza dos dois parecia querer se saciar com o sangue do responsável por aquela maldade.

Ao chegarem, se depararam com uma cena: seis índios discutindo com moradores da cidade, ao lado da delegacia.

– Uma confusão, hein? Do que se trata? – perguntou Mateus a alguém. 

– Ah! Esse povo não tem noção! O cacique está todo aos nervos, ameaçando todo mundo. 

– Quem é o cacique? 

– É aquele. 

– Você tem ideia de qual é o motivo desse nervosismo?

– Não, acabei de chegar. Mas tinha gente dizendo que uma índia desapareceu da aldeia deles e o cacique achou que fosse culpa de alguém da cidade. Com essas questões dos índios a polícia não tem alternativas, é tudo na dificuldade e os índios não facilitam.

Não poderia ser coincidência. O sequestrador continuava pegando crianças, mas não havia registros da prefeitura, pois eram todas crianças de aldeias. 

– Dá pra chegar na aldeia deles? 

– Ah, não são dessas bandas, né? Olha, chegar na aldeia não é problema. O problema é entrar e não se machucar. Eles não gostam de gente de fora, não. 

– Conhece alguém que poderia nos levar?

– Eu posso, porque o caminho é pelo rio Purus. Amanhecendo, tô indo, mas é de barco.

– Outra pessoa saberia nos levar?

– Moço, todo mundo sabe como chegar na aldeia. Mas vem cá que eu te apresento pra mais gente. E me desculpe a intromissão, mas por que estão querendo se meter com essa gente?

– Somos pesquisadores – respondeu Lucas.

No bar, um homem que estava para descer o rio se ofereceu para levá-los à região aldeia. Seriam três horas de barco a Acimã, nome da aldeia do povo Apurinã.

– Três horas? Caramba!

– Pois é, moço! Talvez quatro. Em linha reta, deve dar uns 130 quilômetros, mas o rio vai fazendo zigue-zaque e a correnteza atrapalha; tem que ficar de olho.

Não tinha outro jeito. Aceitaram a carona de barco. No caminho, não pararam de fazer perguntas ao pescador, que não se irritou; o homem gostava de contar histórias. Tudo que perguntavam, respondia com vontade, se esforçando para lembrar de detalhes.

O tempo passou sem avisar. “O que vão fazer?”, pensava o pescador. Eles agradeceram e disseram que ficariam por ali mesmo, depois dariam um jeito de voltar. 

Nunca saíam para uma investigação sem comida e material para um acampamento na mata. Escolheram um lugar para poderem vigiar a aldeia de binóculos, armaram a tenda e descansaram. Não demorou: um índio percebeu e atravessou o rio indo a eles tirar satisfação. Teve dificuldade no diálogo, algumas alterações de humor, mas Lucas conseguiu fazer o índio cooperar. O índio entendeu que o motivo da presença dos dois era do interesse da aldeia. 

Lucas explicou o que bastava, não disse o que eles dois eram.

O cacique apareceu com outras pessoas. A conversa seguiu sem problemas. O cacique, alterado pelo sumiço da quarta criança da aldeia. As duas primeiras haviam sumido fazia algum tempo. Depois de um período sem ocorrências, esse era o segundo mês, em sequência, que alguém sumia. E essa não era toda a história.

Eles tinham notícias de que crianças haviam sumido de outras aldeias ao norte. E, somando todos casos que sabiam, o processo estava em vias de fechar todos os meses desde o registro que a polícia tinha.

Os índios explicaram tudo o que sabiam, lembrando das datas e indicando os lugares onde viram as meninas; contaram que uma outra dizia ter escapado do “monstro”. Eles a trouxeram para que explicasse aos irmãos tudo que lembrava. A menina falava no dialeto apurinã, os pais traduziam.

Ela contou que estava andando com seus dois irmãos, brincando nos limites da aldeia, e viu uma coisa brilhar na floresta. Acabou se afastando dos irmãos para a mata, e surgiu um homenzarrão, com rosto de uma brancura e uma roupa que a fez rir; ele segurava aquela coisa que brilhava. Ela se assustou e começou gritar, mas o homem tampou sua boca com a mão e ela viu que não era um homem, mas um “monstro”. O rosto do homem mudou. Seus olhos ficaram como sangue, sua mandíbula e boca aumentaram. E havia aqueles dentes, como de animais, crescendo e crescendo. Com ela sob domínio, mas sem poder fazê-la parar de gritar, deu a ela duas escolhas: ela sacrificaria seus dois irmãos deixando que ele os levasse, poupando a vida dela e de todos na aldeia, ou iria no lugar deles. A menina escolheu se entregar. Ele a colocou nos ombros e saiu andando. Mas ela carregava consigo uma faquinha na cintura, que conseguiu alcançar e ferir o homem no olho. A menina fugiu atravessando o rio, correndo para a aldeia. 

Ouvindo o relato, os irmãos mal conseguiam respirar. Sabiam do que se tratava. A descrição batia com uma lenda contada a eles sobre uma raça, uma outra família, que em outros tempos rivalizou com seus antepassados. Mas as histórias diziam que a raça havia sido exterminada. Por isso, nunca levantou-se questionamento a respeito. Lucas e Mateus não criam naqueles contos. Pensavam nessas histórias como sendo uma forma de moldar o caráter das crianças, ao mostrar que eles não eram os únicos não-humanos, nem os seres mais fortes. Seria aquilo tudo verdade?

A menina os levou ao lugar que deixou o homem. Eles a dispensaram, saíram caminhando sem direção até que encontraram um odor, não de homem e que nunca haviam entrado em contato, chegando a uma espécie de escotilha que se escondia no chão. Abriram-na com cuidado e desceram a escada. O lugar cheirava morte. Encontraram uma menina sem consciência, com cordas nos membros, sobre uma mesa. Está viva.

À penumbra, se esconderam e esperaram por um tempo até que escutaram a escotilha abrir. Enquanto o sujeito descia, conseguiam vê-lo. Era como havia sido descrito.

A ansiedade atrapalhava que Mateus permanecesse às sombras. Com os nervos explodindo, saltou sobre ele e assistiu seu rosto se transformar. Travou-se a luta com ferocidade. Lucas avançou. Os três eram como demônios se dilacerando. Os irmãos tinham resistência no couro, mas a carne do homem compensava se regenerando com velocidade.

A luta se estendeu. Os irmãos levaram horas a fio para mutilar o oponente o suficiente para que ele não pudesse se recuperar. A menina acordou durante o embate e nunca mais se esquecerá do que viu, mas estava salva.

Eles largaram tudo como estava e trancaram a escotilha, escondendo-a como puderam, pensando em voltar um dia.

Não sabiam que não era dessa forma que se matava um vampiro.

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Avaliações

2 avaliações encontradas.

Plot Execução Escrita Estilo

Gostei do plot, diferente e apesar de se tratar do que se trata não parece irreal. Muito bem executado, com o leitor sendo capaz de acompanhar os personagens, seguindo até o clímax.

A escrita está muito boa, sem erros e com alta qualidade.

No estilo, coloquei nota baixa pois não me parece ter cumprido o desafio: “louco”, “viciado”, “alcoólatra” são adjetivos e estão sendo usados como adjetivos no texto. Dessa forma me parece que o desafio não foi cumprido e por isso coloquei uma nota baixa no estilo. A execução do enredo está bem feita, não há furos de roteiro, há um furo no desafio, por isso dei a nota no estilo, considerando o descumprimento do desafio.

Plot Execução Escrita Estilo

Um conto incrível e muito bem desenvolvido, considerando as limitações do desafio. Muitas sacadas geniais para transformar adjetivos em substantivos, e advérbios em locuções.

Adjetivos e advérbios encontrados: “lastimável”, “confidenciais” (duas ocorrências), “raras” e “desconfortáveis”.

Menções honrosas: “punido”, “sustentados”, “postos”, “preocupado”, “armado”, “transformado”, “instalados”, “feito”, “descarado”, “alterado”, “escondida”, “desacordada”, “amarrada”, “morta”, “escondidos” e “descrito”.

Verbos no particípio, sozinhos ou em locuções com os verbos “ser” e “estar”, são flexionados justamente porque são empregados como adjetivos. Com isso dito, deve ser muito difícil escrever um conto sem adjetivos, advérbios e ainda verbos no particípio.

Problemas com os “porques”: “É que eu não sei porque (por que) você se anima com isso. […] Não tem porque (porquê) essa animação.” “E me desculpe a intromissão, mas porque (por que) estão querendo se meter com essa gente?”