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Mala sem alça

— Puta que pariu, a mala!

Ricardo não era bom em muitas coisas na vida, e a memória era uma delas. Já estava na fila de embarque. Mais duas pessoas até sua vez chegar. Não poderia perder aquela vaga de emprego. Lutou tanto para conquistá-la. Se fosse demitido, estava tudo acabado. A pressão na família Diniz era grande.

Onde ela estava? Deslizou pelo saguão, ignorando a advertência dos seguranças. Quando a achou no terminal, voltou correndo, mas já era tarde demais. Os funcionários se desculparam e Ricardo sentou e chorou. Saiu do aeroporto pensando no que diria aos pais. Adentrou o primeiro táxi e pediu para o motorista seguir até o centro (a mala estava no banco de trás). O taxista, Guilherme, perguntou:

— Acabou de chegar à cidade?

Como que absorto em pensamentos, Ricardo voltou a si:

— Ah, não, não. Na verdade, perdi um voo muito importante. Era pro emprego da minha vida.

— Entendo.

Ricardo ficou um pouco irritado com aquela resposta, e não se segurou:

— Desculpe, mas o senhor entende mesmo? Entende o que é ter seus pais te azucrinando a vida toda e quando a hora chega, tudo é arruinado por conta de uma mala?

— Sim — riu ele —, essa levaleve era uma das queridinhas da empresa.

— Espera, tu era da empresa que fez essa mala?

— Isso mesmo, filho dos donos. Benedito de Souza. Faz tempo que eu não falo com eles, justamente por isso. O meu velho e minha mãe sempre me disseram que o cargo de presidente me aguardava.

— E por que saiu?

— Eu queria viajar… De mochila.

E os dois riram. Ricardo disse:

— Pode parar aqui, por favor?

Guilherme parou. Quando o passageiro saiu, o taxista disse:

— Não esquece sua mala.

Ricardo se debruçou sobre a janela:

— Pode ficar pra você. Aqui, fica com o troco. E obrigado, Guilherme.

— Pelo quê?

— Pelo relato. Acho que sei o que vou fazer daqui em diante.

— Ei, espera!

Mas Ricardo já corria para longe. Guilherme encarou a mala e a abriu. Alguns pertences simples: roupas, sabonete, escova de dentes, etc. Fechou-a e continuou as corridas até que, no intervalo de almoço, levou a mala para a pracinha da cidade. Tinha uma barraquinha lá também. Os pastéis estavam deliciosos.

6 meses sem se falarem. Será que ele ainda atenderia? Decidiu ligar. O telefone tocou, e tocou, e tocou. O dono da barraquinha perguntou de maneira humorada:

— Problema com mulheres?

— Ah — disse Guilherme —, é só o meu pai. Não se dá com mulheres?

— Pois é, minha esposa não quer me ver trabalhando até tarde. Mas quem vai pagar a escola da minha filha? A menina quer trabalhar me ajudando, mas nem pensar! Estudos em primeiro lugar.

— Educação é importante, mesmo.

De repente, o celular tocou e Guilherme atendeu:

— Alô, pai? Sim, sou eu. É, eu sei. Não, não me arrependo. O quê? Sair pra jantar com a mamãe? Claro. Você não tá chateado? Não, é porque eu achei…

O dono da barraquinha, Osvaldo, disse:

— Ei, patrão, a sua mala!

Ele olhou para trás e riu no celular:

— Pode ficar pra você! Sim, foi o que o senhor ouviu, pai. A levaleve. Não vai acreditar…

Guilherme saiu para reencontrar os pais, e Osvaldo não soube o que fazer com a mala. Decidiu abri-la, mas viu que não tinha nada demais nela. Além da cor. Amarelo era a cor favorita da Natália. Doía-lhe ficar longe delas, mas não tinha o que fazer.

Retirou a barraquinha quando a noite chegou e a transportou para uma feirinha próximo dali, onde ocorreria um show de interior. Atendeu inúmeros clientes, mas o que lhe chamou atenção foi uma adolescente não muito diferente de sua filha que veio comprar um caldo de cana:

— Boa noite, senhor. Um caldo de cana de 500ml, por favor.

— É pra já. E aí, curtindo a festa?

— Na verdade, não. Tava esperando o meu pai.

— E sua mãe?

— Ela morreu faz dois meses. Num acidente de carro.

— Sinto muito.

— Obrigada.

— Mas então ele não veio?

— Nunca vem. Só vive trabalhando. Às vezes eu sinto que é ele quem morreu naquele dia.

Aquela frase lhe soou como um estalo. Mas continuou:

— E ele trabalha com o quê?

— Marketing, faz propaganda pra artigos de viagem.

— Tipo malas?

— Tipo malas.

Para distrair a coitadinha, de brincadeira e porque o movimento já estava fraco, Osvaldo puxou a levaleve de trás do balcão:

— Então ele vai gostar dessa daqui.

Ela arregalou os olhos e quase engasgou com o caldo:

— Ele tem uma igualzinha a essa! Ganhou de brinde numa das campanhas. É sua?

— Digamos que não, mas pode ficar pra você.

— Sério?

— É sério. Além do mais, já estou fechando.

— Mas a plaquinha aqui diz que vai até uma da manhã.

— Pois é, mas eu mudei de ideia. Qual o seu nome?

— Júlia.

— Eu sou Osvaldo. Quer saber o que é mais engraçado? Deixa eu te contar como essa mala veio parar aqui.

E contou toda a história enquanto fechava a barraquinha e a cobria com uma lona. Ao terminar, disse:

— Tenha uma boa noite, Júlia!

E saiu, deixando Júlia com sua nova mala amarela. A garota decidiu abrir e ver o que tinha dentro. Nada demais. De trás de si, ouviu a voz do seu pai:

— Ufa! Cheguei a tempo?

— O show acabou há 20 minutos.

— Merda. Desculpa, filha. De verdade.

— Não tem problema perder o show, pai. O problema é que às vezes parece que eu sou seu plano B.

Vinícius não soube o que dizer. Voltaram para o carro em silêncio. Quando estavam no estacionamento, no entanto, ele percebeu a mala:

— Rapaz, eu não vejo uma dessas faz tempo. Onde conseguiu?

— É uma longa história. Não quero incomodar o senhor.

Vinícius abriu a mala e xeretou.

— Será que eu fico bem nesse sapato? E essa calça… Calma aí, vigia o estacionamento…

Júlia não segurou a risada enquanto atuava como cúmplice dele:

— Pai, você é doido mesmo. Vai realmente fazer isso aqui?

Mas quando se virou, parecia outra pessoa.

— Voilà! — disse ele, girando como se estivesse num desfile de moda. — Como estou?

— Já dá pra ir a Paris.

— Vamos?

— É o quê?

— Pra Paris, vamos?

— Mas e o seu emprego?

Vinícius tirou o celular do bolso e ligou para alguém:

— Alô, senhor Benedito? Sim, sabe aquela campanha de marketing que eu estava falando com o senhor? Não vou poder fazer. Estou muito longe da minha filha ultimamente, vou tirar um tempo, e como sei que provavelmente serei demitido… O quê? Voltou a falar com o filho? Que bom! Vai me dar férias? Não, quer dizer, é claro que eu gostei, senhor! 15 dias? Ótimo, excelente. Sim, sim. Tchau, senhor Benedito. Obrigado.

Pai e filha se entreolharam. E riram. Antes que ele falasse alguma coisa, ela correu e o abraçou:

— Obrigada, pai.

— Já temos as malas ou quer comprar outras?

Júlia olhou ao redor, ao longe, uma cadela vira-lata se aninhava ao relento contra o frio, abrigando seus filhotes.

— Pode me dar a mala?

E em pouco tempo ela tinha atravessado o estacionamento e colocado a mala aberta sobre o relento de uma calçada. O pai a olhava de longe. Júlia disse:

— Aqui, mamãe, pra cuidar dos seus filhotes.

— Obrigado.

Ela tomou um susto, achando que a cachorrada a tinha respondido, mas, na verdade, havia um mendigo próximo dali coberto de tal maneira que parecia um com o chão.

— Desculpa incomodar.

Ele retirou a coberta, e ela viu sua perna enfaixada. Lembrou-se da mãe. O senhor de rua disse:

— Não tem problema. O nome dela é Amarelinha. A caminha vai combinar com ela.

— Que bonitinho.

— Quer um filhotinho pra você? Pode pegar.

Um dos filhotes veio cheirar sua mão, e ela o pegou no colo:

— Se eu pudesse, eu pegava todos.

— Eu sei — disse ele —, mas se puder doar um dinheirinho pra igrejinha do bairro, eles fazem doações todo mês.

Depois de pedir informações sobre a localização da igreja e voltar para o carro, viu a careta do pai. Antes que ele falasse alguma coisa, foi ela que disse:

— Não quero ir mais pra Paris.

— Deu pra ver. E esse cachorrinho aí, já tem nome?

— Já. Levaleve.

Ele riu:

— Não vão deixar a gente embarcar esse laveleve não, tá, mocinha?

— Por que não? Eles deixam você entrar!

— Eu? Tá me chamando de cachorro?

— Não, cachorro é fofinho. Você é mala sem alça!

— Justo. Quer dizer, quem não é, de vez em quando?

— Pois é. A diferença é que eu te amo.

— Também te amo, filha. Agora entra no carro, antes que você decida levar mais de um!

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