Menu fechado

Lisbôa – Desafio 2

Você morreu há 14 horas e todos irão pensar que foi por causa da explosão, mas só você e seu algoz sabem que não. Agora te resta muito pouco tempo e a ida se mostra inevitável. Você falhou pela segunda vez em comunicar os búzios e sente um puxão. É agora.

Ao se ver amassada entre os escombros de um carro que havia explodido, você se lembra de que uma vez ouviu que a pior coisa é morrer sem saber. Mas você sabia e sabia que não fora a explosão, nem os escombros que amassavam o seu corpo inteiro. Eles teriam te machucado feio, mas você se lembra que sua morte havia sido traçada duas horas antes daquilo, quando estava jantando com seu amante. Ou melhor, a cópia de seu amante.

Você sabia que não era ele e soube desde o primeiro momento em que ele voltou da viagem à Suíça. Ele nunca te abordara de um jeito tão grosseiro e nunca saiu de um programa após ter simplesmente pago. Vocês já eram íntimos o suficiente para ele saber que não era assim que funcionava um programa entre vocês dois. Você foi fundo nesse labirinto e descobriu a verdade: o assassinato, o sósia, seus planos ocultos de poder. Seu erro foi achar apenas que ele não esperava que você o descobrisse. Ele sempre esteve um passo à frente de todos, caso contrário não teria feito tudo o que ele fez e sido bem sucedido. 

A recapitulação de tudo que aconteceu durou tempo o suficiente para que o corpo de bombeiros chegasse. Um homem ao ver o seu corpo, ainda que de longe, balançou a cabeça e fez o sinal da cruz. Você agradece e sente um puxão, mas não se move. Você olha para trás e sente um calor, então estremece e teme. Sua vista ficou ofuscada e confusa pelo barulho que se seguia; você tentou esconder-se, temendo pelo que seria de você dali pra frente. Entre os escombros, você tenta tocar o seu corpo e nada acontece. Assustada e estranhamente com frio, você se recolhe, tentando fugir daquele puxão, que se mostra cada vez mais presente — você sentiu a sua presença desde o primeiro momento, mas a concentração nas lembranças o manteve afastado. Naquele momento, você olhou ao redor e buscou socorro, mas nenhum olhar encontrava o seu. E nem poderia mesmo.

Então você escuta uma voz familiar. 

— Era garota de programa — disse um investigador para o outro —, devia estar indo atender alguém.

— Que azar, hein? — comentou o outro.

Azar? Se ainda tivesse bochechas você as teria sentido queimar. Mas não restam mais bochechas para serem queimadas e nem há paz de espírito. Não para você. 

— A bomba tem procedência, senhor — disse um narigudo próximo dos dois.

Um dos investigadores se virou para o outro:

— Sabe o que isso significa?

— Guerra de gangues — respondeu o outro.

Perplexa você percebeu que ele havia pensado em tudo. E o pior é que você foi o catalisador de algo que poderia levar aquela cidade ao fim, de novo. Sua perplexidade permanece até que ouve o suspiro do primeiro investigador.

— É uma pena — ele diz —, foi o melhor programa da minha vida.

Se tivesse ar nos pulmões você teria bufado. Mas a indignação não iria te levar a lugar nenhum, muito menos a um lugar que te trouxesse calor e luz. Apesar de ser noite, você já não enxerga mais as estrelas e sente que a escuridão se aproxima. Você flutuou, estremecendo sutilmente como um reflexo da ansiedade que te envolvia galopantemente, mas isso não bastou. Nem mesmo acima das nuvens era possível enxergar as estrelas, que tanto acalentaram as suas imagens da infância — uma infância que já não era mais vislumbrável, e quando você se deu conta disso, um baque opressivo te jogou lentamente para baixo, em direção ao asfalto. 

Nessa queda, você busca alcançar as memórias que ainda lhe restam e enxerga os pais se divorciando, seu irmão falecendo e seu pai indo junto com ele para a vala. Rostos amigos se dissolvem como névoa num movimento vagaroso, que te causa repulsa. No entanto, isso não é nada comparado com a iminente sensação de abandono e tristeza que invade o seu ser, invadindo-a como se as sombras do medo fechassem suas garras em torno de sua sutil e frágil presença, rachando-se aos poucos, pesando ainda mais, sinfonicamente isolada em direção ao asfalto.

Você rezou. 

Mas não conseguia lembrar-se das palavras que chamaram ao seu pai no escuro. As palavras que entoava todas as vezes que saia dos quartos de motel, quando voltava para casa já de dia ou quando saía do confessionário e as entoava como um mantra por horas a fio. Nem mesmo conseguiu lembrar-se das palavras que dizia para sua mãe, que tanto conforto te trouxeram quando mudou-se para essa cidade grande, que tanta respostas te deram quando esteve pronta para desistir de tudo; as mesmas palavras que te distanciaram de sua progenitora.

E ao lembrar dela, uma luz brilhou em sua frente, mas não era tangível. Você olhou para o horizonte e flutuou até ele, buscando o único refúgio que ainda teria antes de mergulhar nas trevas. A desolação era forte, mas não tão avassaladora quanto a sensação de ansiedade que vinha com a esperança de corrigir apenas uma coisa, de ver a sua mãe uma última vez. 

E enquanto caminhava em direção a esse farol tão familiar, seus raios de luz eram lembranças que invadiam a sua atenção e lhe davam conforto. Era sua mãe brincando contigo na sala de casa. Dando-lhe presentes no dia das crianças, celebrando o seu aniversário sorridente, ensinando-te a como usar um absorvente e como comportar-se com garotos. Nem tudo foi bom. Ela brigava constantemente com seu pai, inclusive o traia e quando você descobriu isso, apanhou. Quando ele faleceu, sua mãe não demonstrou remorso e você brigou com ela novamente. A pior briga ocorreu quando você converteu-se àquela religião de brancos, ela bradou, mas você não deu ouvidos. Fugiu de casa.

E ainda assim tudo isso era melhor do que o abandono desolador que sentia ao fugir para os braços dela. Você correu, deixando para trás seja-lá-oque-fosse que estivesse pronto para apanhar-te. Numa rua estreita, em uma casa pequena e velha com uma ofá desenhada sobre a porta de entrada, ela ainda vivia ou deveria viver, você pensou ansiosa. Não parou para pensar um segundo, o sol amanhecia, mas seus raios não a atingiam e eram tão diáfanos que você quase não os notou.

Adentrando a casa, sentiu o peso de sua alma condenando-te. Sua mãe já estava em pé, moendo o café para aquela manhã, sem notar a sua presença. Você a olhou. Já fazia 2 anos desde que a vira pela última vez e a ansiedade aos poucos descolou-se de seu ser. Novas rugas cresceram em sua mãe, os cabelos estavam descontroladamente brancos, os movimentos lentos, as mãos finas e enrugadas e… desde quando ela era tão pequena? Quanto mais se aproximava, mais distante ela parecia e você não sabia mais o que fazer. Novamente, o desespero batia à sua porta e você teria chorado se lágrimas ainda tivesse, mas não tinha e nem sabia a quem recorrer.

Tudo ao seu redor, as janelas, os armários, os eletrodomésticos e até a sua mãe pareciam transformar-se em poeira fina. Era como se o mundo se desfizesse diante de seus olhos, uma realidade que se desvanecia em partículas microscópicas, subatômicas, deixando para trás apenas um eco. O ar se tornou pesado com a sensação de efemeridade; o tempo parecia acelerar, enquanto a matéria se dissolvia, mas algo ainda brilhava na escuridão.

Você olhou para a direita e achou, entre as quatro paredes recheadas de quadros de uma sala escura no meio da casa, o jogo de búzios de sua mãe. Era o único material com alguma definição naquela realidade obscura. As pequenas conchas e ossos brilhavam com definição, emitindo um som que te atingia nostalgicamente nos tímpanos, se eles ainda fossem uma realidade para você. Desesperada, você flutuou até eles e os tocou. Era possível sentir a sua presença ancestral e mística, criando uma conexão com o passado, como uma âncora em meio ao oceano nulo ao seu redor. Era uma linguagem que se revelava e você podia jurar que sempre falou essa língua, mas quando tentou dizer algo, nada aconteceu. Você abriu a boca, tentou emitir um som e nada aconteceu. Intuitivamente, você sabia que se falasse uma palavra, aqueles objetos iriam se mexer. Se sua mãe entenderia, só Deus poderia dizer, mas isso não iria te impedir de tentar. Então veio a segunda tentativa e você gritou, forte como um leão, tentando mover as sombras que te cercavam e engoliam e por um segundo elas pareceram parar de se mover, mas nada aconteceu.

E isso é agora. 

Seu peso é maior do que nunca. Seu tempo se esgota, não resta mais nada a fazer. Você fecha os olhos e instantaneamente vê tudo. Sua conexão com o passado é apenas com sua mãe, a língua que você fala agora não será entendida por ela, os búzios serão seus tradutores e um desconhecido é a chave para que sua mãe descubra o que aconteceu contigo. Você sabe que não poderá mais fugir das garras escuras que te cercam, mas pelo menos não levará a verdade para a cova. Você não vê, mas sabe, os búzios se mexem e a atenção de sua mãe volta-se para eles. Eles são frios e sem vida, mas quem pode solucionar todos os mistérios? As palavras soltam-se de seu corpo, assim como todo o medo e a desilusão. A sala é preenchida com uma energia palpável, seu relato é direto, mas não perfeitamente comunicável e sua mãe, confusa, procura entender. 

— Melissa! — ela chama o seu nome.

Você fala dor, pesar, arrependimento e tristeza. Você fala futuro, possível, caminho e firmeza. Você chora e diz amor, consciência, respeito e expiação. Sua mãe chora e se recolhe, enquanto você sente as garras escuras te cercarem por uma última vez antes de ir e tão rápido quanto uma partícula subatômica desaparece, tão lento quanto a degeneração do sol, entre nada e tudo, a suave voz de nossa mãe te encontra e diz:

— Você não está indo, você está voltando.

Você não tem permissão para enviar avaliações.

Avaliações

3 avaliações encontradas.

Plot Execução Escrita Estilo

Conto muito bom, a começar pelo plot. É um desafio difícil, mas conseguiu fazer de maneira bastante competente. Está bem executado e escrito.

O enredo engrandece o conto.

Plot Execução Escrita Estilo

Rapaz, não lembrava que este conto era tão bom.

Fiz algumas revisões de pontuação, mas foi pouca coisa.

PLOT: o plot é bom e é a coisa mais fraca aqui. O detalhe é esse semi-espiritismo aí no final kkkk
EXECUÇÃO: personagem muito bem construída, com várias camadas; ambientação e tom bem feitos; temas fortes e bem trabalhados, do jeito que precisam ser.
ESCRITA: revisei tão pouco que não compensa comentar; vocabulário bem escolhido.
ESTILO: o plot foi bem escolhido pra esse desafio, pq a sensação da leitura em segunda pessoa ajudou muito no tom; as figuras sintáticas mais ao final estão muito legais.

Plot Execução Escrita Estilo

Achei o plot bastante criativo, a forma com que você pega um trama tipico de investigação criminal e muda o ponto de vista.
Quanto a execução eu destaco dois pontos que mais gostei:
– A forma que tu trata a relação da protagonista com a mãe
– A introdução do conto, quando você descobre que a protagonista é a garota de programa e que ela é a vítima do caso.