Tudo começou quando Nico passou por baixo da escada quando saía do apartamento de Larissa. Havia um homem consertando cabos, de energia ou de internet, esticados no poste, que ele havia apoiado a escada junto da entrada do prédio; ele só percebeu quando Larissa tomou cuidado para evitar passar por baixo dela.
— Você é uma boba! — disse o rapaz.
E passou o braço em torno dos ombros da namorada, beijando-a carinhosamente antes de apanhar o Uber para irem ao show.
Foi um show terrível. O primeiro verdadeiramente horrível desde que ele havia estourado seu primeiro hit no canal do “Rap Vivo” há mais de um ano. Suas rimas e seu flow haviam chamado a atenção não só da comunidade do rap, mas também de alguns produtores de música eletrônica e de funk, que resolveram investir no garoto e em menos de um ano ele podia gritar em CAPSLOCK nas redes sociais que a favela havia vencido. Suas músicas seguintes só fizeram aumentar sua fama, seus shows se tornaram emblemáticos e até conseguiu uma namoradinha patricinha de bunda grande que morava no Perdizes.
Mas aquele show, naquela sexta-feira 13 de setembro, foi seu primeiro tombo. O produtor avisou:
— É sexta-feira, 13, a bruxa tá solta!
Nico caçoou e foi pro palco com a mesma energia de sempre. E a mesma energia foi o que o derrubou. Disseram que ele estava querendo ofuscar o brilho do Zézim, o rapper que ia entrar logo depois. Disseram que ele tava forçando demais. Errou umas rimas, o flow estava péssimo, até mesmo seu DJ enroscou a batida umas duas vezes durante a apresentação. Enfim, deu azar.
Na semana seguinte, Nico desligou o celular, ia partir em viagem mesmo, fazer umas apresentações no nordeste, aproveitar que o verão já estava batendo à porta e tocar suas músicas mais frias, que combinavam com o inverno, lançadas na última mixtape. A primeira parada foi em Salvador, vôo difícil, com muitas turbulências e por conta de uma pane no sistema elétrico da casa de show, ele teve que ser adiado. Isso é mal para os negócios, ainda mais porque colocaram ele pra tocar num domingo, o pior dia.
Mas tudo bem, naquela semana mesmo eles tinham que partir pra Aracaju. Foi no Starbucks do aeroporto de Salvador que o segundo sinal veio. Três meninas pediram para tirar uma foto com seu ídolo e ao se levantar, já abrindo os braços para recebê-las, Nico trombou com um saleiro que estava em cima da mesa e ele tombou, rolou e caiu no chão, espatifando-se em centenas de pedaços pequenos, um deles inclusive entrou no calcanhar de uma das meninas, que sangrou de maneira incomum para um acidente tão simples.
Ao entrar no avião, Nico ainda pensava no acontecido.
— Que foi? Um gato mordeu sua língua? — perguntou seu empresário.
Nico disfarçou bem uma risada e manteve uma conversa agradável com sua equipe. Mas ao sair do aeroporto da capital sergipana e cruzar com um gato preto parado na frente do Uber que os iria levar até o hotel, tornou-se lacônico novamente. E pensativo.
Tinha algumas horas antes do show e decidiu ir numa benzedeira. Ela queimou sálvia, jogou sal em sua cabeça e fez a recomendação fundamental:
— Saia apenas por onde entrar. Preste atenção a isso na casa de show.
Nico gravou o local certinho, mas durante seu show ficou distraído. Um problema elétrico na iluminação fez ele ficar desfocado durante a música de abertura, uma fã subiu pelada no palco e tascou um beijo nele, o que iria cair mal nas redes sociais e isso o deixou preocupado. Para coroar, uma lâmpada caiu no final e o saldo foi negativo para ele.
Na van, enquanto voltava para o hotel, o empresário disse:
— Fica tranquilo… o público lá tava difícil mesmo. Nem pareciam olhar para o palco.
E dois dias depois, quando se apresentou num festival em Macéio, Nico teve a mesma impressão. Ninguém nem olhava para ele no palco. A repercussão de sua sequência de shows no Nordeste estava bem negativa, mas seu empresário tratou de colocar a culpa nos vôos, muito longos e exaustivos. Mas a partir dali eles iriam dirigir pelo Nordeste, conhecer as raízes da região e tudo ia melhorar.
O show em Campina Grande foi melhor mesmo, mas tinham que dirigir até João Pessoa logo após o show, porque tinham que participar de um programa lá logo de manhã. O motorista estava com uma diarreia muito forte e o único que tinha carteira pra dirigir van lá era o próprio Nico, que antes de ser rapper era entregador do Mercado Livre.
Cansado, mas ciente de que precisava participar daquele programa matinal, um dos mais assistidos da região, e pegou no volante. Faltavam menos de 30km pra chegar em João Pessoa, o sol amanhecendo lindo, quando sentiu que bateu em algo e o motor engasgou. Nico parou no acostamento e desceu do carro para ver o que tinha acontecido e seu estômago revirou. Um anu-preto havia se chocado contra grade da frente da van e foi cortado em 6 fileiras que se misturaram com o motor, naquele momento todo tingido de vermelho e enfeitado de penas escuras.
— Puta que o pariu! — gritou o produtor — ainda bem que estamos do lado da cidade!
E já tirou dois celulares do bolso, cada um ligando para um número diferente, enquanto Nico observava que diversos anus-pretos estavam pousados nas cercas ao redor da pista, encarando-o de forma condenatória. Ali Nico se convenceu. Estava com azar.
Chegou atrasado no programa, sob os resmungos do produtos televisivo e enquanto explicava, gaguejando, seu processo criativo ele escorregou numa casca de banana, a qual ninguém havia notado que estava ali no chão. Nada aconteceu com ele, mas ao cair, Nico esbarrou num espelho que fazia parte do cenário e seu braço atravessou o objeto revelando para o rapper o número do estúdio onde estavam: um 13 pintado em tinta vermelha na parede.
O rapaz voltou para seu hotel desesperado. O que ele poderia fazer? Qual era o motivo de tamanho azar? Porque isso estava acontecendo com ele? E logo agora, no melhor momento de sua carreira, de sua vida?
Nico insistiu com seu produtor para cancelar a turnê. Não podia se apresentar com tanto azar. O que mais poderia acontecer?
— Calma lá, garoto! — dizia o produtor — Isso é coisa da sua cabeça. Você tá estressado demais. Vou te levar para um bom lugar hoje.
E por volta da meia-noite, foram os dois para a Priscylla’s Hall, direto para o último andar, onde estavam as melhores mulheres, os mais bravos amigos e as garrafas mais caras. Alugaram um camarote discreto e o clima ficou agradável muito rápido, tinham duas mulheres no colo de Nico e uma terceira já estava se ajoelhando na sua frente, mas um sinal tocou. Seu produtor bateu com raiva na porta e quando a menina que estava ajoelhada se levantou e abriu a porta, Nico se espantou com o olhar de seu produtor. Estava sem os característicos óculos escuros, exibindo seus pequenos olhos, mas que estavam abertos como nunca, enquanto suava por todos os poros da face, gritando:
— Corre, moleque! O prédio tá pegando fogo!
Apenas 13 pessoas foram mortas naquela noite, mas mais de mil saíram feridas. Era um motivo bom o suficiente para cancelar a turnê, ou melhor, fazer uma pausa, deixar para o verão mesmo. Naquele momento, tinham que honrar a alma daquelas que se foram e se solidarizar com os que ficaram, curar traumas, enfim… A nota caiu bem na mídia. Até mesmo as páginas de fofoca replicaram de forma positiva a atitude de Nico. Mas o menino estava mal. Quando voltou para São Paulo, pegou chuva e ficou doente mais de uma semana e quando deu por si, já era final de outubro. Larissa estava com saudade e insistiu para ele ir visitá-la. Nico compartilhou com ela seus pensamentos, seu azar, mas a menina não acreditava em nada e insistiu:
— Já parou de chover, vida. Vem que eu te faço um chá.
Nico estava preocupado com seu azar, mas aquela oferta anuviava seu pensamento e foi assim que ele decidiu sair de casa pela primeira vez em mais de uma semana. Dirigiu com cuidado, como nunca havia feito. Uma penca de playboys andavam pelas ruas mascarados e a toda esquina o coração de Nico parecia saltar do peito, com medo, ansioso, tenso. Mas não houve qualquer acidente até chegar a casa de Larissa. Tocou o interfone e reparou no nome: L. Sálvia. O porteiro o saudou com um largo sorriso e enquanto Nico esperava o elevador, chamou de longe:
— Vai ver a dona Sálvia? Entrega isso pra ela.
Era um pacote de uma loja de produtos de beleza importados. Quando chegou ao terceiro andar, onde a namorava morava, Nico foi recebido com um longo beijo, mas Larissa estava curiosa para abrir sua encomenda. Nico deitou na beirada de sua cama, enquanto ela dizia que era um conjunto de sais de banho, coisa boa, ele ia gostar também e sugeriu:
— O que acha de eu encher a banheira?
Nico a encarou. Ela lançou uma piscadela e voltou para o banheiro, a fim de preparar tudo. Um sol escuro cruzou as nuvens do pensamento de Nico. Ele conectou pontos disfuncionais e disse, caminhando até o banheiro:
— Vida, lembra do que falei?
— Do azar?
— Isso.
— Deixa de besteira, Nico. Você só precisa relaxar um pouco, estava doente e tudo.
— Sabe, eu tô aqui pensando… o pai de santo que consultei me jogou sal, queimou uma sálvia…
— Nem sabia disso…
— Mas ele disse que a coisa mais importante era eu sair pela mesma porta que eu entrei. Eu entrei nessa onda de azar quando passei por aquela escada…
— Que escada?
— Na frente da sua casa.
Os dois se encaram no banheiro.
— Que papo estranho, Nico… — disse Larissa
— Dá uma olhada.
E entregou para ele o pote de sal de banho. Um monte de caracteres árabes. Vai saber o que diziam. Sem pensar duas vezes, Nico lançou o pote com violência por cima de seu ombro, quebrando o pote na parede atrás de si.
— Você tá louco? Tem ideia de quanto isso custou? — bradou Larissa.
Nico pegou seu braço, com força e trouxe ela para junto de si. Com a outra mão, agarrou o pescoço da namorada. Os olhos espantados dela entregavam que ela havia entendido a intenção dele. Desesperada, ela começou a se sacudir, tentando afastar o corpo do namorado, mas ele rapidamente usou as duas mãos para esmagar seu pescoço. De forma instintiva, Larissa enfiou dois dedos nos olhos de Nico e com a outra mão apertou seu saco. Por um instante, Nico a soltou e ela aproveitou para se desvencilhar e sair pela outra porta do banheiro. Nico tirou um isqueiro do bolso e apanhou um desodorante do banheiro.
— Nico, você tá louco? — gritou a menina, encarando-o do outro lado do corredor onde estava.
Mas não era necessário perguntar. O olhar vermelho sangue de Nico era a declaração que fez as pernas de Larissa tremerem. Ela tentou correr para a porta que dava para a cozinha, mas Nico chegou lá antes, acionando o desodorante na frente do isqueiro, criando um jato de fogo que quase tocou a menina, não fosse ela ter se jogado no chão. As chamas atingiram a porta de madeira, que pegou fogo. Assim como as roupas que estavam numa cômoda dentro daquele corredor minúsculo. Larissa esgueirou-se de volta para o banheiro e bateu a porta com força, sentindo que Nico colocava fogo também ali. Ela trancou a porta e correu pelo banheiro para escapar do namorado, mas ele arrombou a porta logo em seguida, deixando uma onda de chamas invadir o banheiro também. Larissa correu vertiginosamente para o seu quarto e Nico a seguia vigorosamente com seu lança-chamas improvisado na mão, atirando fogo em tudo, na cama, nas cortinas, nos móveis.
Ao persegui-la para outros cômodos, Nico continuou colocando fogo em tudo que via. Nos sofás, nos armários, nos tapetes e nas cortinas, já perdendo a noção do espaço onde estava e também onde estava Larissa, preocupando-se apenas em espalhar aquele caos. Quando já não tinha mais gás dentro do desodorante, ele apanhou uma almofada para espalhar as chamas e após isso um pedaço de uma estante de madeira, seguindo com sua loucura crepitante.
Entre chamas cada vez maiores, Larissa conseguiu se esgueirar para uma das sacadas, de onde ele pode se lançar em direção a piscina do prédio, suja com as folhas que caíram durante as chuvas daquela tarde e encolhida, na beirada da piscina, ela assistiu, apreensiva, as chamas subirem pelas paredes de seu apartamento, enquanto um zelador e uma faxineira que estavam por ali corriam para socorrê-la e apanhavam seus celulares para chamar os bombeiros.
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Tem um enredo interessante que vai em um crescente até o clímax final, porém o último parágrafo ficou um pouco confuso, corrigindo isso creio que a execução e o estilo podem receber uma nota mais alta.
Desafio devidamente cumprido.
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