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Lactobacilos radioativos amaldiçoaram meu milkshake!

O calor do Rio de Janeiro estava especialmente rachante naquela semana de dezembro.

Graças a Deus era sexta-feira.

E sexta-feira, sexta-feira era dia de milkshake.

Trabalhar em usinas termonucleares nunca foi o sonho de Ronaldo, mas a sorveteria que se encontrava a duas quadras do trabalho fazia o esforço valer a pena.

O ar-condicionado do carro era o mais próximo de “refrescante” do qual ele poderia se aproximar e, no entanto, mesmo que o suor de sua labuta drapejasse as vestimentas que devia trajar em seu ofício, empapando-as com nodosas camadas de caracas, o calor incessante tomava conta de seu âmago.

Podia sentir o coração bombardeando o sangue fervilhante através de cada veio do corpo. Pulsante. Comichões aqui e acolá atabalhoavam sua direção; embora a sorveteria fosse próxima, nem fodendo que ele iria a pé somente para comprar um milkshake.

Imaginou-se perdendo o controle da marcha, do volante, uma súbita vertigem proveniente da ausência de água, os eletrólitos que se recusava a ingerir somente para degustar o milkshake supremo de 800 mililitros.

Já conseguia sentir o sabor, a textura cremosa arrefecendo em seu palato, o açúcar explodindo na boca, a calda, ó, doce calda. Morango caramelizado enebriando suas dores.

Ronaldo salivava, mas o calor era tanto que sua saliva parecia um fio tênue de espuma em dunas cálidas, rubras, desaparecendo tão logo o ondular de suas águas encontrasse uma margem escaldante sobre a qual evaporar.

Sem saber ou se lembrar de como havia parado ali, o náufrago atracara em seu porto seguro após sua cruzada em mares de asfalto.

Sair do carro foi como receber um soco, o mormaço do centro da cidade abraçando-o como um demônio.

Encarou o céu por um momento: azul infinito, engolido por um astro que parecia cada dia mais próximo.

Sem aves, sem nuvens, somente o tremeluzir do calor no asfalto, da calçada mal pavimentada, tornando a visão da sorveteria turva.

Uma miragem.

Somente quando adentrou os portões do paraíso e fora recebido pela gostosa da sorveteira Ronaldo percebeu que sua boca estava ressequida de novo. Mas não era pelo calor. Pelo que seria, então? Antes que pudesse divagar, a atendente disse:

— Bem-vindo de volta ao Geladorável, senhor Ronaldo! Como foi o trabalho?

Ronaldo não conseguia prestar atenção em nada além daqueles olhos penetrantes dela: marrom chocolate. A pele cor de amêndoa, os cachos irritantemente cheirosos, luzindo contra as estantes infindas de sorvetes e confeitaria. Aquela jaquetinha justa e shortinho…

— Estressante, Nora, como sempre — ele disse, finalmente saindo do torpor repentino.

— Ah, mas sei o que vai te ajudar com isso.

Ela se virou, abaixando-se de costas para ele para pegar os ingredientes mais frescos. Depois, estendendo os braços em direção a estante acima de si, pegou o copo de plástico.

A cauda já estava próxima o suficiente.

Quando ela entornou os fios avermelhados pelo interior do recipiente, Ronaldo pregou os olhos no vazio, imaginando-o preenchido pelo creme. Mas então o fio escapulira por entre os dedos dela, e um súbito calafrio o possuíra quando vira a sorveteira chupando-os, limpando-os com a própria língua e…

— Vai ficar muito tempo com esse novo projeto? — ela perguntou. — Fiquei sabendo do acidente que vocês tiveram no mês passado, passou no jornal.

Ele se lembrava muito bem do “acidente”. Poderia ter sido uma tragédia, mas a equipe estava de prontidão.

— Estamos sim, o show tem que continuar — disse ele, um sorriso tristonho estampado em seu rosto.

Quando ela se aproximara da máquina, a alavanca sob seu punho prestes a estalar com a torrente gloriosa, Nora disse:

— Sabe, pra mim isso é falta de descanso! — O leite começou a jorrar na boca do copo. — Igual o meu pai. Trabalha e trabalha e trabalha e nunca arranja tempo para si cuidar, agora tá lá no hospital, e a mamãe tem que cuidar dele.

Num piscar de olhos, ele encarou o estabelecimento em seu redor: além de casais de namorados e rodinhas de estudantes que descansavam, Ronaldo não conseguia ver o dono, que sempre o recebia de braços abertos.

— É verdade — disse ele, encabulado. —, o que aconteceu com o senhor Omar?

— O doutor diz que é ansiedade aguda causada por estresse — Quando o milkshake foi depositado em suas mãos, ela já não tinha tanta sede. —, os exames estão bons mas ele tá sofrendo com episódios catatônicos. É nisso que dá ficar horas a fio estudando novos sabores…

— Como assim?

Enquanto ele bebericava o sorvete, ela atravessou o balcão e foi à cozinha. Quando voltou, trouxe um caixote de alumínio com vários copos de milkshake.

— Aqui! — Ela colocou o caixote sobre si, em cima do balcão, gesticulando. — Ele vive recebendo encomendas de diferentes sorveterias e estabelecimentos para experimentar novos sabores que podem bombar na nossa franquia. O problema é que ele cria relatórios com base em cada um dos sabores como se eles fossem, sei lá, científicos. Olha esse aqui, por exemplo…

Estendendo uma prancheta com fichas de cada um dos produtos, um em específico lhe chamara a atenção pelo título: AHB-Glace.

Para surpresa de Ronaldo, invés de encontrar naquela papelada infográficos relacionados a proporção de ingredientes e sabores, encontrou na verdade uma representação de cadeias químicas e equações laboriosas.

— Estranho… — murmurou, sem perceber que Nora havia ouvido.

— Pois é, foi o último que ele estudou, por sinal.

— Não, quer dizer, isso aqui é biologia química, e esses dados são bem complexos. Não pode ter sido ele, quer dizer, ele tem equipamento laboratorial a disposição?

— Quem, meu pai? O velho não sabe nem mexer no celular direito, pra ele tudo tinha que ser caneta e papel.

— Mas quem quer que fez isso tinha um conhecimento de protocolos científicos bem vasto.

— Acho que foi por isso que ele surtou!

— Ainda tem a amostra com você?

— Sim, sim, deixa eu procurar.

Ronaldo estava prestes a ir embora, temendo sua própria inconveniência (deixara um trocado para ela de gorjeta no balcão) quando Nora retornou, trazendo consigo um pacotinho térmico e cilíndrico contendo a amostra.

— Como você é um bom cliente e entende dessas coisas, aqui, pode levar… — disse ela, dispondo o objeto para mais perto dele. — Se você gostar desse pode levar os outros também. Alguns eu vou dar pra molecada.

— Olha, não precisa…

— Precisa sim, tá na hora dele aprender a descansar, nem que seja por mal. Além do mais  — Ela estendeu a prancheta junto do pacote, entregando-lhe. —, acho que tu entende melhor disso do que ninguém.

Terminando de saborear o restante do sorvete, Ronaldo retornou ao carro, o entardecer amainando o calor; tudo que o sol encostava parecia incandescido. Colocando o cilindro no porta-copos, engatou a primeira e partiu como um navegante compenetrado à procura de sua ilha.

Chegando em casa, o barulho do portão correndo pelos trilhos somente não lhe fora mais familiar do que os latidos de Foguinho, o vira-lata que encontrara esquelético e sedento havia uns meses.

Nem parecia o mesmo cachorro.

Cheiroso, barrigudinho e peludo, ele sempre ficava abanando a rabinho quando ele chegava em casa.

Até agora.

Fechado o portão e carro afora, enquanto se agachava para acariciar o animal, não deixou de perceber a inquietude com a qual o cachorro observava o banco do passageiro.

Foi quando ele se lembrou do milkshake e abriu a porta do carro. À medida que ele se aproximava da porta de casa, revolvendo as chaves do molho, Foguinho começara a latir incessantemente.

— Calma, bichinho, já vou te dar comida — Ronaldo disse.

Será que havia se esquecido? Não, ele tinha certeza de que o canito estava com água e comida em dia. Devia ser pirraça. Foguinho somente latia quando havia outra pessoa perto de seu dono.

Como que em resposta, o vento pareceu sibilar em seu cangote quando ele girou a chave e torceu a maçaneta.

Foguinho rosnou para o nada quando Ronaldo sentiu uma brisa estranha vindo de encontro ao seu rosto; bizarramente, o vento parecia mais um sopro do que qualquer outra coisa, pois a mesma brisa que lhe beijara a nuca não balançara suas vestes.

Ignorando seus devaneios, o jovem trabalhador ligou as luzes de casa, a televisão e tirou a ração do armário, dispondo-a na vasilha ao chão. Com uma careta, ele disse:

— Viu só? Tá reclamando, agora come.

Ronaldo se virou para pôr as compras que fizera para a semana na geladeira e o milkshake no compartimento do congelador.

Foi então que ele se sobressaltou, intrigado, pois quando se virou em direção ao cachorrinho, percebeu que ele nem encostara na comida; apenas encarava o dono e a geladeira.

Choramingava para um, e rosnava para o outro.

Seus olhos estavam esbugalhados, como se lhe perguntassem: não consegue ver o que está ao seu lado!?

Não ironicamente, Ronaldo se virou em chiste, mas, obviamente, não havia nada ali além do fogão. Decidido a dormir cedo para aproveitar o fim de semana, Ronaldo foi tomar banho.

As gotículas geladas refrearam o seu rancor de verão. Ronaldo odiava o calor. Para ele o Rio de Janeiro poderia ser um antro nevoento, nebuloso e assolado por nevascas.

Enquanto se ensaboava, os latidos de Foguinho retornaram.

Num gritão impaciente, Ronaldo disse:

— Ô, FOGUINHO! PARA COM ESSA PIRRAÇA SENÃO VOU TE PRENDER, EM?

O cachorro finalmente havia parado, mas quando retornou à cozinha de banho tomado e roupa trocada, o cachorrinho ainda rosnava obstinadamente para o congelador.

Ele ainda não encostara na comida.

Hesitou por um momento em retirar a vasilha, até que desistiu e algo lhe chamou atenção da janela do quintal. Um barulho. O que poderia ser? Não sabia ao certo, mas o jardinzinho dos fundos da casa estava estranhamente silencioso no momento.

Quieto.

Escuro.

As sombras dos pingos d’ouro farfalhavam ao vento, e seus ramos pareciam brindar a noite com mudez célebre.

Ele estava de costas para a geladeira.

Foguinho começara a latir mas ele o ignorara, assim como ignorara o arrastar de dedos pálidos que abriam a porta do congelador de dentro para fora, como se cada unha endemoniada que se projetava fosse uma serpente com olhos invisíveis.

— Au, au, au, au!

Ronaldo foi para a varanda, pois podia jurar que havia visto alguma massa, alguma coisa, mexendo-se no pingo d’ouro.

Segurando o cabo de vassoura com ambas as mãos, cerrou os punhos em torno do bastão que de nada serviria se o que se encontrasse ali fosse uma pessoa.

Cada passo mordiscava a grama com batidas que somente não poderiam ser mais escandalosas do que as de seu coração. Para cada tum-tum, Ronaldo dava um passo, cambaleante, desequilibrado, mas um passo.

Na cozinha, Foguinho encarava, escabreado, mãos cadavéricas sustentadas por punhos odiosos e fracos como ele uma vez também foi, a abrir sua escotilha, a escotilha que faria Ronaldo ter certeza de que o inferno era gelado.

— Au, au, au, au!

Foi então que Foguinho transformou rosnar em choramingar, pois aquela estrutura cilíndrica, vítrea, emanava um cheiro conhecido para ele: o perfume da morte.

Do canudo inclinado como um chifre odioso despencou uma única gota viscosa ao chão, mas Foguinho somente conseguia prestar atenção naquela bocarra indizível: seus dentes eram como os de Ronaldo, mas ele não era como os outros ser humanos. Não, nem outros cachorros, ou gatos.

Aquilo era estranho.

Mau.

Quando estava prestes a latir novamente, aqueles olhos escuros com pontinhos que mais pareciam esferas de gelo, pareceram encará-lo. Mas não encaravam somente sua aparência, mas sua própria alma.

Levantando o indicador de encontro à boca, ele disse, e quando disse a sua voz era… Era como se um velho tentasse falar justamente com um cachorrinho, uma voz sibilante, venenosa:

— Calma, cachorrinho, não precisa ter medo. Eu não vim sugar seu leite.

Lá fora, Ronaldo desejou estar lá dentro.

Cada passada fazia o pingo d’ouro reagir. Se ele pulasse antes da hora, seria uma questão de vida ou morte. Foi quando viu a massa cinzenta, os olhinhos e os dentinhos que ele respirou aliviado. Disse:

— Ufa, é só um gambá. Sai daqui, bicho, xô, xô!

Cutucando o animalzinho com a vassoura, Ronaldo o viu correr mato adentro até o muro mais próximo, por onde a criatura sumira na casa de algum vizinho.

Foi enquanto ele se virava que o horror à espreita se colocava novamente no congelador, e no último momento em que terminava de se virar, Ronaldo pôde jurar que conseguiu ver a porta da geladeira fechando.

Quando voltou à cozinha, Foguinho veio se aninhar em seus calcanhares. Ao olhar para o amigo, Ronaldo percebeu a gota, dizendo:

— Ué, não lembro de ter deixado cair nada aqui.

Com um pano, ele limpou o chão e foi preparar o jantar. Macarrão, cebola e bife ao molho madeira, e uma cervejinha para acalmar os nervos. Preparar o jantar sempre lhe ajudou a relaxar, e a comida estava maravilhosa.

Viver sozinho tinha suas desvantagens, mas o silêncio de uma noite calma não tinha preço.

Para ficar perfeito, porém, faltava uma sobremesa.

Talvez o milkshake.

Quando abriu o congelador, Foguinho saiu correndo. Estendeu a mão em direção ao cilindro e abriu o pacotinho térmico.

Então aquele vento o embalou novamente, e uma súbita sensação de enfermidade o assolou quando ele encarou o milkshake. Ainda tinha o canudinho, vermelho, rubro, quase fluorescente, quase como se fosse uma artéria, uma coisa viva.

Pensou duas vezes.

Se quisesse manter uma vida saudável, não poderia tomar uma porcaria dessas a qualquer hora. Ainda mais um alimento tão processado como aquele, um sorvete que nem ao menos fora comercializado, embora possuísse um cheiro estranhamente enebriante.

Ronaldo desistiu e recolocou o objeto no congelador. Quando ia para o quarto escovar os dentes, ele teve a impressão de ter ouvido um lamento abafado, como se alguém estivesse desapontado.

Foguinho estava estranho, e se não melhorasse ao longo do final de semana, com certeza ele o levaria ao veterinário.

Enxaguou o rosto, gargarejou o creme dental e desligou a televisão. A casa dormia aberta; aquele bairro não era perigoso a este nível. A cama lhe abraçou com lençóis macios, e não demorou para que sonhos doces o abraçassem.

O que Ronaldo não percebia é que uma coisa se arrastava com patas tentaculosas em direção ao seu ninho, e sua língua se retorcia de fome, de sede, ante a visão do solitário homem que saciaria sua vontade.

Ronaldo sentiu o nariz fungando, irritando o seu sono. Ao estender a mão para a cabeceira à procura de um lenço, pôde jurar que o ambiente estava desnecessariamente frio. Deitado de lado, ele não percebia a criatura que contorcia sua língua odiosa, suas mãos arqueadas, prestes a fisgar sua garganta.

Enquanto as garras desciam, no entanto, o sujeito de súbito se levantara, indo à janela. Estava aberta, por isso o frio. Ronaldo a fechou ruidosamente e retornou à cama. Não havia nada em cima.

Agora, o demônio estava debaixo dela.

Voltou a dormir, mas seu sono era intermitente, o frio ainda não havia passado. Pelo contrário, ele sentia estranhos calafrios, como se gotas de um líquido enregelado caíssem em sua coluna, e uma brisa estranha vinha de encontro ao seu ouvido.

Sentia como se alguém estivesse respirando em seu cangote. Foi quando a percepção que atiça os instintos primitivos o instou a ouvir. Um murmúrio, vacilante, luxurioso, o roçar de dentes. Agoniado, Ronaldo se virou.

Teve que manter as forças para evitar um desmaio, um gelo o atravessou em ângulos vertiginosos.

A coisa mais horrenda que ele poderia ver sorria para ele, olhos azuis, um canudo pulsante, e percebeu que estava lambuzado de sorvete. Num salto, Ronaldo ficou contra a parede. Seus joelhos pareciam ausentes de ossos, seus músculos latejavam com câimbras. Tentou gritar, mas não tinha forças, não podia.

Foi quando aquela coisa disse, e sua voz era a do diabo:

— Olá, Ronaldo. Eu sei que você gosta de mim, mas veja, eu tenho sede. Todos nós, quando crianças, precisamos de leite para ficarmos fortes e saudáveis.

Ronaldo se arrastava em direção à porta. Que porra era aquela? O que ele havia feito para merecer aquele pesadelo? Somente podia ser um pesadelo. Mas por que ele não acordava? Como aquela coisa estava andando? O que eram aqueles tentáculos? Com olhos arregalados, ele receou em até mesmo respirar.

Mas a coisa não parecia se importar com ele:

— Eu também preciso, Ronaldo. Meu sorvete é saboroso, mas requer carinho, requer força. Para crescer, no entanto, eu também preciso de leite.

Sussurrando, quase como um engasgo, Ronaldo exortou:

— Mas que porra de demônio é você!?

O diabo hesitou, como se não tivesse entendido a pergunta:

— Eu sou o que eu sou. Mas para ser o que sou, preciso de leite. E meu leite, Ronaldo, é sangue.

Num salto, a coisa pulou na direção de Ronaldo e antes que ele pudesse se esquivar, sentiu o canudo perfurando seu ombro como uma agulha de haste olímpica.

Sentiu-se pálido, como se parte de sua força fosse drenada à medida que um fluxo aterrorizantemente rápido de sangue percorria o canudo. Com um chute desesperado, Ronaldo se soltou. A coisa urrou de prazer, um prazer diabólico:

— As fêmeas têm sangue aguado demais para mim… MAS ISSO!? Isso sim é leite de macho!

  E ele queria mais.

Mas Ronaldo não estava a morrer para aquele demônio. Correndo para a cozinha, ele conseguia ouvir o barulho das patinhas, quase como baratas, a carcomer o chão.

Escorregou várias vezes por um rastro melequento de sorvete no assoalho, brisas repentinas balançavam suas vestes, dedos cadavéricos a tentar agarrá-lo. Mas retomou o equilíbrio e se jogou ao chão da cozinha.

Num salto, pegou as chaves do carro e do portão.

Quando se virou, o diabo estava lá, maior do que nunca, quase tão alta quanto ele próprio. E o inimigo pulou, tão rapidamente que a única coisa que Ronaldo pôde fazer foi se abaixar.

A criatura voou em direção ao quintal, e o homem desesperado fugiu para o carro.

Lá fora, Foguinho dormia.

O barulho repentino o fez sair da sua casinha e encarar o copo caído ao chão. Paralisado, ele não soube o que fazer, e quando as luzes do carro se acenderam, suas patinhas se tremeram todas.

Ronaldo era seu amigo, ele não o abandonaria.

Certo?

A coisa se levantou, escarnecendo, encarando a cachorrinho encurralado:

— Que foi, amiguinho? Seu dono não vai voltar… Não se pode chorar pelo leite derramado, mas espere, pois eu ainda posso fazer uso de você…

Foguinho se sentiu perdido. Lutara tanto para sobreviver, para ter o direito de viver como os outros cachorrinhos que invejara. Foi surrado por meio mundo até encontrar Ronaldo, para que ele somente o abandonasse agora.

Foi quando o grito de um gambá o fez se virar:

— Foguinho, por aqui!

Era o Gambá, seu velho amigo.

Ele espreitava por uma ripa quebrada que ligava o quintal daquela casa com a casa dos vizinhos. Em voo, Foguinho fez jus ao seu nome, pois sentia canudos como estacadas atravessando a parede do muro por onde corria, como lanças espetando e atravessando concreto. Quando chegou do outro lado, disse:

— Gambá, que bom que está aqui!

Gambá ergueu o focinho, e não demorou a continuar:

— Vamos, tem uma saída por aqui.

Todos os vizinhos estavam dormindo, e ele não sabia dizer se isso era bom ou ruim, mas que precisavam sair vivos dali, não precisava ser dito. Na metade do caminho se depararam com o portão gradeado da casa. Infelizmente, Foguinho havia ficado gordinho demais para passar.

— Fuja! — disse Foguinho.

— Não, eu não vou deixar um amigo. Vou distraí-lo, você dá a volta e sai pelo portão da sua casa. Tá aberto, olha! — Gambá era um amigo de verdade.

Quando a criatura virou o corredor, Gambá deu um chiste, instando-o a persegui-lo. A coisa disse:

— Ora, ora, mais um aperitivo!

Foguinho correu o mais rápido que pôde, e seu coração se partiu ao ouvir o gemido de dor de Gambá ao longe.

Ronaldo estava a duas quadras quando se lembrou de seu cachorro. Como todo bom dono, para ele Foguinho era uma das únicas coisas genuinamente boas em sua vida.

Não tinha celular, mas buzinou tanto no caminho de volta que rostos alheios surgiam nas casas.

Foguinho estava quase lá, somente mais um pouco e… Antes que alcançasse o portão, uma sombra se interpôs no caminho.

O diabo enregelado erguera suas mãos, mostrando as entranhas de Gambá a deslizar por seu corpo, a espinha dorsal transformando-se em granulados, banhando seus veios horripilantes.

Já não havia mais nada o que fazer. Fechou os olhos, aguardando sua morte, quando o riso da criatura foi interrompido por um clarão seguido de um baque.

Foguinho arregalou os olhos ao ver que a coisa se estatelara contra o muro de casa. Estilhaçada, horrenda. Outros vizinhos apareceram na rua, e Ronaldo saiu do carro, cambaleante devido a batida. Não precisava saber quando seu dono precisava de carinho, apenas sentia.

Ronaldo sentiu Foguinho pulando em direção aos seus braços, aninhando-se. Encarou a criatura a se contorcer ao chão, estendendo mãos odiosas que ainda tentavam lhe alcançar.

Um casal da vizinhança apareceu, perguntando o que tinha acontecido. Ao encarar o inquilino indesejado, porém, a mulher desmaiou de susto, e o homem não hesitara em abandoná-la ali mesmo. Outros bons samaritanos tentaram apaziguar a situação, mas visto que todos que encaravam aquilo enlouqueciam, resolveram aguardar a polícia.

Com Foguinho em seus braços, Ronaldo se sentou na calçada de casa. As estrelas finalmente emolduravam a noite clara. Ao longe, sirenes navegaram ao vento até encontrar o náufrago perdido que se recusava a falar com outros moradores.

Quando o sargento veio de encontro a si, a primeira coisa que disse foi:

— Senhor Ronaldo, certo? Os vizinhos dizem que você se recusa a falar sobre o invasor, se importa em dizer como ele era?

— Um milkshake — Ronaldo disse, ainda decidindo se gargalharia ou teria um acesso de choro.

O policial fez uma careta:

— Senhor, isso não é uma brincadeira…

— Veja por si mesmo, sargento. Está na garagem.

Não demorou para que a ambulância viesse buscá-lo… O sargento, quer dizer. Mais policiais, agentes do governo, repórteres e bisbilhoteiros alheios vieram ter com ele, mas Ronaldo se recusou a responder todas as perguntas.

O governo trouxe uma maleta suficientemente boa como recompensa por sua discrição, mas a única coisa que Ronaldo tinha certeza na vida era a de que ele nunca mais tomaria um milkshake.

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Plot Execução Escrita Estilo

PLOT: Gosto muito dessa história, sem mais.

EXECUÇÃO: Gosto dessa estrutura em duas partes: primeiro a sorveteria, depois a casa; a ambientação é muito bem feita; o protagonista é bem construído, mas a moça da sorveteria não é; me parece boa a mudança de gênero no terceiro ato. Não gosto de algumas descrições.

ESCRITA: vocabulário um tanto forçado; gramática com alguns erros; sintaxe repetitiva. MUITOS erros de vírgula, crase, ponto e vírgula, ponto e tempos verbais.

ESTILO: figuras sintáticas exageradas e repetitivas; o narrador, às vezes, fica confuso; perdeu várias oportunidades de transcrever pensamentos e fazer discurso indireto livre.

OBSERVAÇÕES: VÍRGULA DEPOIS DE: “gostosa da sorveteira”, “estão bons”; “gostar desse”; “pois quando”; “Para ele”; “PIRRAÇA”; “começara a latir; “fosse drenada”; “Na metade do caminho”; “dono, para ele”;

SUGESTÕES: tirar o “para ela” depois de “decostas”; “com a” em “a alavanca sob”; parágrafo novo em “Quando o milkshake”; “o caixote sobre [o balcão]”; ponto depios de “Sim, sim”; não precisa de “Ronaldo disse” na fala com o cachorro”; “balançou” em “balançara”; a frase “Na cozinha, foguinho encarava…” não faz sentido; dois pontos depois de “somente sua aparência” e não repetir o “mas”; “se colocou” em “espreita se colocava”; tá repetitivo o “vermelho, rubro”; exagerou no “enregelado”; ponto e vírgula depois de “contra o muro de casa”; sem “e” em “apareceram na rua”;

crase em “direção a estante”; “para si cuidar”; início maiúsculo em “o que aconteceu”; minúsculo em “Ela colocou o”; crase em “a proporção”; crase em “a disposição”; minúscula em “Ela estendeu”; ponto depois de “tudo que o sol”; “começou” em “Foguinho começara”; sem vírgula em “choramingava para um”; “hein” em “te prender, em”; “seres humanos em “ser humanos”; minúsculo em “era… Era”; no passado: “não percebia é”; “se levantou” em “súbito se levantara”; dois pontos em “sorria para ele”; “alto” em “quase tão alta”; a frase “em voo” não faz sentido; “e” depois de “distraí-lo”; sem vírgula depois de “que pôde”; “ergueu” em “erguera”; crase em “devido a batida”; “encontrarem” em “até encontrar”; ponto em “sobre o invasor”; sem reticências em “viesse buscá-lo…”;
“se aproximou” no lugar de “se aproximara”.

Plot Execução Escrita Estilo

Trapaceando ou não, foi um deleite (tu-dum-tsss) ler o conto. Li todo imaginando que estava assistindo a um filme de terror trash dos anos 90 pra trás. Muito bom mesmo! A utilização de ações pra construir os personagens funciona muito bem, as falas são de fazer inveja a qualquer filmaço trash, a ambientação dá um ar exótico pra história, mas o contraste com o tema é muito chamativo. Sem falar na reviravolta narrativa do final, excelente mesmo! Mas o melhor é o enredo mesmo, que deixa espaço pra imaginar algo ainda maior, envolvendo a gostosa da sorveteria, os vizinhos, a usina nuclear e até mesmo os agentes governamentais.