As pessoas gritam, chorando baixinho, que o caminho pelo qual passam é o mesmo dele. Compartilham, assim, as pedras que o edificam, as folhas das longas árvores que filtram a luz do sol e da lua, os musgos que revestem as rochas, o tapete de folhas que estrala sob seus passos, bem como as encruzilhadas que desviam as almas atormentadas. Os passos delas, por consequência, são apagados pelos de Inácio; duas sombras, assim, confundem-se sob a fraca luz da aurora ou do entardecer. Os rastros dos ventos são os únicos que testemunham a localização de Inácio ao lado de suas vítimas.
“Desista”, eles gritam com as mãos sobre a cabeça. As suas reações são inofensivas: gritam-se para tudo; correm-se para o nada.
A aparência de Inácio, por reiteradas vezes, é imaginada por aqueles que tiveram a sorte de não irem (ainda) ao seu encontro. Ninguém o viu: testemunhas que viram sua face não existem; vítimas, porém, há muitas. Estas, no cenário do crime, são sempre encontradas com a falsa roupagem de paz da morte, com a fisionomia da última reação ao vê-lo: boca aberta, sem a língua, com a face dominada por uma cratera no lugar dos olhos. Tudo isso representava o cartão de visitas de Inácio para aqueles viam os cadáveres estendidos ao chão.
Quem, assim, que se depara com os corpos das vítimas chora – por elas e por ele. Tudo é estranho e inexplicável como o autor do ato. Este, escondendo-se nas sombras, não as tortura, tampouco leva suas pertenças. Inácio parece levar suas vítimas à morte sem motivo, exceto o que é oriundo da mente do Delegado Alessandro: a indiferença; todo cenário do delito, no entender do policial, revela um desprezo; são, como ele pensa, as marcas do mal.
Alessandro, único delegado titular, comanda a grande e abandonada Delegacia da Cidade de Pedras Altas que, em razão de sua longa história, possui mais marcas do tempo em seu perímetro urbano do que habitantes. A estrutura da cidade reflete o passado: prédios com arquitetura antiga, ruas de pedras, com algumas ausentes e outras quebradas; casas em ruínas cujas as únicas formas de vida que abrigam são pombos, morcegos (se vasculhar mais, encontram-se animais peçonhentos também). Os habitantes cumprimentam-no, mas desaparecem entre as esquinas desertas e sombrias. O delegado, de relance, parece não reconhecer como real as ruas. Tudo, assim, é marcado pelo tempo, exceto a Delegacia, construída há 3 meses.
Em companhia da solidão, o policial comanda dois departamentos: homicídios e patrimônio. Troca-os por intermédio dos passos apenas: os cômodos dos departamentos são um do lado do outro, com um estreito corredor como divisa – que é pouco movimentado e bastante utilizado por Alessandro para limpar sua arma.
Sua arma de uso pessoal, uma Airgun Colt 1911, que o delegado limpa como se estivesse praticando um ritual: retira cada peça, das grandes às pequenas, esfregando-as individualmente e, ao mesmo tempo, recoloca-as em ordem de montagem; isso tudo acompanhado de uma melodia produzida por seu assovio de fundo – que soa duplo algumas vezes, sobretudo quando o agente o faz com os olhos voltados ao fim do corredor. Em sua mente atormentada, cria-se muitas coisas, algumas estranhas e familiares, mas se contenta com a possibilidade de ser um eco apenas (o que lhe traz paz).
Quando o soar do seu assovio se duplica, o que acontece com as notas baixas, o delegado – o que é estranho – não tem medo; sente-o posterior ao fenômeno somente. Ele, assim, olha vagamente para escuridão ao fim do corredor, chamando-a ou tocando (ao que parece) algo que está entre as sombras o vigiando. Ademais, como se parecesse ilusão de sua farta mente, o fundo escuro do corredor se expande, em formas de raízes, para as paredes deste, revestindo o ambiente. Nesses eventos, ele ficava sob domínio completo.
Naquele dia, quando as raízes das sombras dominaram todo o corredor e tocaram no Alessandro, envolvendo desde a cabeça até os pés, deixando-o suspenso em horizontal, o telefone tocou e o medo também. O agente caiu sobre o chão e, em ato contínuo, atendeu, com sensações sincréticas de pavor e confusão, o Carlos, em um vídeo chamada, que lhe alertava sobre o cadáver que encontrara. Ele, por incrível que pareça, não o deixou terminar a mensagem: suas conjecturas foram suficientes para entender o que estava acontecendo. Desligou, após, o telefone, colocando-o no bolso direito sob sua arma que ficava no coldre.
Alessandro, a partir de agora, sabia que a percepção da passagem da noite e do dia iria ser esquecida; sumiu-se, então, no corredor. Os passos fortes do início diminuíam-se à medida que entrava na escuridão, resmungando – como se quase gemesse – o nome “Inácio de Pretta”.
Carlos, do outra lado do perímetro urbano de Pedras Altas, mais especificamente na saída abandonada desta, desviando seu olhar sobre o corpo, observava o tempo. Notou, nesse instante, que o dia não se fora e a noite chegara. Havia, assim, uma nebulosidade quanto ao limiar do céu: era escuro para se chamar de dia e claro para noite. Ele, com sua parceira Janaina, olhava os pássaros ao lado dos morcegos, as moscas com os vagalumes. O crepúsculo da noite era tingido pelos raios de sol quase distante, colorindo o céu com um laranja sombrio. As folhas das árvores altas filtravam a luz dessa quase aurora, lançando-a em linhas longas no chão coberto por folhas secas, as quais estavam escondidas sob a neblina cinza e verde. Parou, no entanto, quando o toque do celular cessou o uivo. Sem dizer uma palavra, engasgando-se, no entanto, de consternação, atendeu Alessandro, que lhe avisou para pegar o enxofre e que o cheirasse constantemente, até a chegada dele. Ademais, alertara-o que sua vida dependia disso: era um totem, o qual lhe ajudaria discernir entre os mundos – o seu e de Inácio.
Quando Inácio aparece (ou o encontra), as sensações são cessadas, sobretudo o olfato, o qual é confundido pelo cheiro mais aprazível já sentido. Como bom predador, ele não as caça então; atraía-as ao ponto de não saber quem é quem – nem pelas sombras. Apenas o enxofre pode fazer tal distinção: cheirá-lo, bem como senti-lo, demonstra ausência do Inácio.
Ambos, assim, pegaram o enxofre. Molharam, em seguida, o algodão no frasco e o levaram ao nariz. Janaina, retaliando o cheiro, foi vomitar; regurgitou ao lado do cadáver, respigando em seus pés – calçados, naquele momento, com um coturno. Ela, então, chorou. Não pelo fatídico acidente; mas pelo que vira. Saíra, então, do lado do defunto de maneira abatida: trocando os passos e as palavras por choros. Carlos, sem entender, voltou os olhos ao corpo – que o prendia com sua morbidade e familiaridade. Avançou em sua direção, explorando-o: palpou-o por toda perna e parou nos bolsos, colocando as mãos.
Carlos, assim que analisou as pertenças que encontrara nos bolsos, desabou em choros intermediados por gritos, que abafava os de Janaina – que, de dentro do carro, via-o aos prantos sem entender. O Choro do homem explanava a alma atormentada deste.
Sombra, frio e medo guiavam Alessandro pela estrada estreita, que o levava – por intermédio de suas curvas e retas – ao fundo do nevoeiro. Dirigia, com tudo, para o nada. Seu veículo, um ford Mustang 5.4 shelby, cortava as curvas e voava sobre as retas a uma velocidade de 120 km por hora, com a concessão da estrada. Além dele, o único sinal de vida, no interior do veículo, era uma varejeira grande, que intercalava seus voos pendendo entre para-brisa e o encosto do banco do passageiro; esfregava, também, as patas traseiras a cada curva cortada.
Alessandro, assim, dirigia-se contínuo, olhando a escuridão perfurada pela luz e a varejeira; esta, porém, parou, causando-lhe estranheza. Tirou, em ato contínuo, o pé do acelerador. Percebeu que o carro acelerava sozinho – sua velocidade não reduziu. Pegou, desse modo, o enxofre que trazia no porta-malas; cheirou-o. Não buscou o aroma. Pela segunda vez, tentou, mas outra essência o tomou: cheiro de folhas secas com terra, acompanhados de um cheiro aprazível.
Gritou-se, consequentemente, para o nada, até ser arremessado do veículo, trespassando o para-brisa e os estilhaços (e estes os percorrendo por todo o corpo). Alessandro voou sobre a estrada; cedeu, após, ao chão. Tudo lhe era escuro. Escutava os gemidos apenas, que eram baixos a princípio, mas estavam aumentando. Quando chegaram às notas mais altas, reconheceu-os: era os choros de Carlos e Janaina.
A cabeça, Alessandro a enrijeceu: não havia direções para guiá-la. Sentia-se vazio, que concedia o espaço para a escuridão. O Silencio, de repente, acompanhou-a, apresentando-lhe Inácio de Pretta. Este, quase que sobrevoando, foi em direção ao Carlos, que deixou cair o distintivo de Alessandro e um SSD das mãos, escrito em sua capa: Projeto Pretta.
Dois corpos se faziam presente (ou três: não se sabia o que Inácio era) diante de Janaina; a mulher se afoitou e alcançou o SSD no chão, entre os dois mortos; seguiu-se ao carro após. Guiou-se pela estrada, tentando colocar o veículo na velocidade constante de 120 km por hora. Teria, desse modo, um estímulo no cérebro, capaz de sair do campo de Inácio. Isso não foi suficiente, no entanto. Direcionou o veículo para uma árvore, colidindo; ela, assim, trespassou o para-brisa e voou sobre o chão, ao lado da varejeira imóvel – que desaparecia a medida que Janaina se aproximava do chão. Quando chegou, ficou prostada com face sob o sol. Ao cegar-se, levantou, nua, arrastando os pés no capim, enquanto vinha um Soldado, correndo, para averiguar o número de baixas da missão.
No encontro, poucas palavras foram trocadas; sobre Alessandro e Carlos, ela, em resposta, acenou vagamente a cabeça para os dois lados. O Soldado entendeu e, depois, levou-a até enfermaria do acampamento, recolhendo o SSD. Entregou ao major. Este, então, foi para base computacional, queria entender de fato que o que estavam enfrentando.
No local desejado, expulsou os membros de patentes inferiores, ligou para o presidente, enquanto instalava no dispositivo no computador; a tensão que precedia a revelação dominava-os. Ela somente cessou quando o major começou a ditar o arquivo para o presidente:
Relatório
Assunto: Projeto Pretta
Origem: 1983
Classe: arma psicológica
Objetivo: Personificar, por meio de sensações intensas, alucinações que induzem ao suicídio.
Resumo: Os estudos anteriores demonstraram a possibilidade de atribuir personificação das alucinações extraídas das mentes dos pacientes. Esse processo, como bem demonstrado nos testes, mostrou-se bem-sucedido em qualificar os pensamentos absurdos em seres e objetos. O resultado alcançado pela equipe foi extrair e qualificar pensamentos de um assassino em série, chamado Inácio de Pretta, cuja morte cerebral foi confirmada após um acidente de carro, e realocá-los em uma figura disforme, que é gerada pela mente da vítima. Com os avanços dos estudos, os pensamentos de Inácio ganharam autonomia; adquiriam, por conseguinte, a capacidade de entrar na mente de suas vítimas e levá-las ao suicídio, sem intermediação. Transformou-se, como desejado, em uma eficiente arma psicológica de guerra. De acordo com os dados, 3 meses são suficientes para levar as vítimas à morte. Criaram-se, assim, uma gigantes rede neural, escondendo-a em Pedras Altas, em uma delegacia. O próximo passo, agora, é atribuir dinamismo ao Inácio, fazendo com que ele possa se utilizado em qualquer lugar, principalmente em campo de batalha. Utilizar-se-á, nas fazes iniciais, indivíduos com morte cerebral.
O major terminou de ditar, encerrou, em ato contínuo, a ligação; saiu, então, da estação e avisou a equipe da força especial: “Preparem-se, homens, a guerra, agora, é em outro campo de batalha”.
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Plot Execução Escrita Estilo Desafio
O plot é bom. Não dei 5 estrelas porque, como eu disse na live, não tenho certeza se faz sentido. A execução é média e foi afetada pela escrita e o estilo (estes dois, ruins, porque dificultaram demais a leitura. O desafio foi cumprido plenamente: a construção do cenário, da atmosfera e do personagem são excelentes.