Você mantém o sorriso forçado e olha novamente para o relógio, ainda faltam três horas de live. O vídeo que você assistia acabou, fale algo.
“Que isso, hein, chat? Não sei nem se a gente pode rir desse cara, será que ele sobreviveu?”, a partir desse estágio você já precisa usar uma entonação treinada, que esconde bem sua vontade de desligar a Twitch.
Ben10 de Realengo te enviou R$ 4,99
“Falae, Ezolas, você já avisou a galera que o Naruto pode ser um pouco duro às vezes, talvez você não saiba disso, mas o Naruto també– (…)” o bloco de texto copiado e colado dura quase um minuto para ser lido em voz alta pelo software.
Você se questiona se ainda há necessidade de fingir que se importa com essas relações parassociais. Você foi bem assessorado desde o início, e se você parasse hoje o seu capital investido em holdings nas Ilhas Cayman ainda geraria debêntures mensais cujo montante já posiciona você dentro dos 0.6% mais ricos no Brasil.
Você reprime a vontade de desligar a live e força uma expressão teatral de euforia. “Nossa, hein, Ben10, palavras mais verdadeiras nunca foram ditas.”, um só pensamento segura você em frente a esse público de acéfalos entediados, por quem você, aos poucos, aprendeu a sentir nojo. Em quarenta dias você irá pedir Beatriz em casamento, desligar o computador e nunca mais se expor a essa insalubridade.
Por enquanto, o potencial de lucro segura você na farsa. Cada segundo de live não gera apenas renda instantânea, como também fica gravado, o que posteriormente alimenta canais secundários e terciários, o que gera mais receita. “Muito obrigado pelo engajamento, família.”, você diz roboticamente assim que os números de visualização sobem para a próxima dezena de milhar. Você toma dois gramas inteiros de dipirona sem água e continua sorrindo entre os comentários insossos de adolescentes e desempregados.
Você se lembra do chefe do escritório de contabilidade que te assessora. Ele sempre dizia que as carreiras no mercado digital não são diferentes do mercado do esporte. O lucro é súbito e em escala milionária por menos de uma década. E aí você é exposto, cancelado, ou alguém com um bastão mais brilhante que o seu aparece e rouba a tropa de babuínos hipnotizados das suas mãos.
Você dá graças a deus quando a luz no apartamento cai. Até que a porta do seu escritório é aberta por Beatriz.
– Você tem uma hora, talvez menos. Tô tentando alugar um airbnb pros seus pais, eles não vão poder ficar em SP esse mês.
– Amor, o que houve?
– Vazou, Erick, vazou.
– O que?
– O lance da stream, já vazou há quase duas semanas, tem uma equipe–
Sob a luz indireta da luminária à bateria no seu cenário, você percebe que Beatriz carrega o anel de noivado em uma mão trêmula.
– Pô, não era pra você ter achado o anel. Pra que estragar a surpresa?
Beatriz não ergue a cabeça, ela continua digitando furiosamente no whatsapp. O som gerado quando ela puxou o ar rápido pelo nariz faz você se perguntar se ela andou chorando.
– Erick, eu preciso que você entenda isso rápido: vazou tudo!
– Não, não tem como.
Ela mantém seus olhos fixos ao celular e permanece em silêncio.
– Vazou como?
O celular dela toca, você vê a foto de usuário de sua mãe segurando seus sobrinhos no colo. Beatriz recusa a ligação.
– Bea, como esse tipo de informação teria vazado?
– Eu… eu vazei, tá bom? Eu vazei. Os caras do G1 já vieram até instalar câmeras.
Você sorri e volta a se sentar aliviado.
– Ah, amor, foi boa, foi boa; eu quase acreditei.
A expressão dela não muda.
– Você me deu todos os red flags possíveis, velho. Eu já tinha certeza da traição.
– Trai… Bea, vem cá, não chora. A gente vai resolver isso. Esse tipo de notícia já estaria nos jornais há dias. É só conversar com quem recebeu a informação.
Ela se senta, o celular esquecido no braço do sofá. Ela normaliza sua frequência de respiração e tenta falar, mas sua voz sai quebrada. Então vocês se sentam em silêncio por outro minuto. Você começa a mover seu pé direito para cima e para baixo sem perceber.
Novas lágrimas. Por um minuto inteiro, você só olha para o chão e tenta transparecer uma linguagem corporal não agressiva. Você impede sua perna de mexer. Cogita se ela realmente teria exposto você para a imprensa e se pergunta em que momento ela poderia ter pensado que alguém tão patologicamente antissocial como você teria tempo ou vontade de manter um affair.
– Eu até desconfiei que você já soubesse das câmeras quando não achei nada sobre sua amante… – Ela não olha nos seus olhos, apenas funga ao fim da frase e limpa o nariz com a manga do suéter. – Mas, aí, eu vi as reservas pro hotel, as tentativas de comunicação com serviço de buffet e o anel. Erick, você tava escondendo a proposta de noivado, eu fiquei paranoica e fudi com tudo. Ela afunda a cabeça em uma das mãos, com o cotovelo sobre o joelho.
– Onde estão essas câmeras? Você já as desligou?
Você se levanta, busca dois chás gelados na geladeira, copos, gelo e se senta no puff oposto ao sofá. Você pesquisa seu nome no Google. Mas não encontra nada atípico.
– Bea, por favor, para de chorar. Só me fala onde estão as câmeras.
Ela passa os dedos rapidamente entre os móveis, desgruda um dispositivo minúsculo de baixo do hack de TV da sala e aperta duas vezes no único botão. Ela começa a desligar mais câmeras, deixando cair a decoração das estantes enquanto procura.
– Eu sou uma burra, uma idiota, uma imbecil, eu não acredi…
As mãos dela tremem demais e ela precisa parar a busca por câmeras. Ela se senta rápido e coloca a cabeça entre os joelhos, como quem tenta não vomitar.
– Bea, você não vai resolver nada assim.
Você entrega uma lata de chá gelado nas mãos dela.
– Vazei o esquema de graça, Erick. De graça! Porra, você indo pra academiazinha, cueca nova. O que você queria que eu pensasse?
– Eu não sei, Bea. Em cobrar ao menos 25 mil por entregar esse tipo de escândalo com exclusividade para a Globo?
Ela não sorri. Você se frustra com o nível de estresse dela, porque a única pessoa que tem tudo para sair algemada nessa história é você.
– Eu não sei quando a matéria vai ao ar. Fica com o cartão de débito da minha irmã. Você vai precisar liquidar os investimentos que ainda conseguir. Mete tudo no nome dela. Parece que uma associação já entrou com processo em segredo de justiça contra você; o G1 queria filmar sua reação ao descobrir o processo.
– Tudo bem, Bea. Só, por favor, toma um banho. Te ver assim tá me deixando nervoso.
– Não, meu, a gente precisa sair daqui, avisar seus pais, mobilizar as contas. Imagina o inferno que os jornalistas vão fazer. Todo dia vai ter um novo engraçadão no Twitter expondo fotos nossas na fila do pão.
– Amor, por favor? Tenta tomar um banho, a gente vai achar um jeito.
Você acende uma vela aromática e finge não perceber que todo o corpo dela responde ao seu antigo tom de voz afetuoso.
Ela se levanta, pega uma toalha nova, rearma o disjuntor e vai até o banheiro.
Você espera o barulho do chuveiro, retira sua mala de viagens do armário aéreo, coloca nela três mudas de roupa e seus documentos de identidade.
Você abre a pasta sanfonada em que você guarda a segunda via dos comprovantes enviados à receita federal, recorta a cicatriz na divisa plástica que separa a sanfona e o fundo da pasta. Do espaço oco entre a parede da pasta e o início das sanfonas você retira os dois envelopes de cartas que havia escondido, um contém 25 notas de R$ 200,00 e o outro 10 notas de US $ 100,00.
Você se surpreende por não sentir vontade de dizer mais nada para a mulher que morou com você por quase nove anos.
Você deixa sua aliança prateada em cima da cama, pede um uber e sai.
Você imagina que se ela pensar em te seguir, ela passará no aeroporto de Guarulhos, que é o mais próximo. Então você vai para o de Viracopos. Você deixa quase quatro salários mínimos no processo, mas finalmente compra o primeiro voo até Costa Rica em cima da hora.
Apenas com a passagem em mãos é que você se senta na mesa de espera do aeroporto e relaxa o suficiente para se lembrar do seu carro.
Você precisa ligar quatro vezes até que seu irmão atenda.
– Quié?
– Terminei com a Beatriz. Preciso que você pegue meu carro.
– Tem certeza? Ela pode abrir a boca.
– Cara, não tô com cabeça pra ter certeza de nada, só quebra esse galho lá.
Seu irmão fica três segundos em silêncio, como se decidisse entre pressionar você por mais informação ou oferecer suporte.
– Tudo bem, onde eu te pego?
– Não precisa me pegar, já tô mandando a chave por uber delivery. Ela chega aí em 8 minutos. Só acho melhor você passar lá no condomínio agora, ou ela pode esbarrar em você amanhã e começar o escândalo.
– É ruim, hein, Erick! É quase uma da manhã! Até de tarde você já tá chupando aquele xibiu batido dela e o único feito de palhaço nessa história sou eu.
– Rafa, é diferente. Ela vazou o esquema pro G1. Ainda falta uns 18 boleto pra quitar esse carro, faz essa mão aí.
– Haaa, eu sabia! Amor, acorda, a Beatriz denunciou o Erick.
Você ouve uma voz preocupada gritar: “Meu deus, Rafael, onde ele tá?”, que rapidamente é abafada pelo monólogo animado do seu irmão:
– Que é que eu tô falando pra você, maluco? Sai dessa. Sai. Dessa. E você continua mantendo relação com mulher que conheceu na porta do manicômio. Não tinha como dar certo por muito mais tempo.
Você fica em silêncio enquanto ele continua xingando Beatriz. Por fim, ele se toca e conclui:
– Manda o número da placa, tô descendo. Mas vou ter que deixar estacionado na rua.
Você desliga a ligação e avisa o porteiro do seu prédio que seu irmão pode entrar para buscar seu carro.
*****
Quatro horas e meia depois de quebrar seu chip de celular, você já está fazendo malabares para encaixar os joelhos dentro do seu assento. O copo vazio de café superfaturado que você desprezou no lixo da cadeira à sua frente pinga no seu joelho a viagem inteira. Mas nem a calça molhada no frio do avião destrói seu humor.
Seu irmão cuidará dos seus pais, seu dinheiro tem sido inteiramente investido em uma holding internacional, não há registro de bens no seu nome pelo Estado.
Qualquer mandato de expropriação cairá sobre a mulher que estava em união estável com você — sua delatora. “Boa sorte para ela”, você pensa com sarcasmo.
Após pousar na Costa Rica e cruzar uma nova fronteira de barco, você aluga um quarto de hotel, fecha um serviço de VPN e manda um e-mail para seu irmão:
Rafa, estou seguro em outro país. A maior parte do meu capital está fora do alcance da receita federal. Tenho cédulas de dinheiro em mãos, mas meus cartões de crédito e de débito já foram ativados e funcionam plenamente.
Você digita seu nome no Google uma última vez e finalmente encontra múltiplas reportagens.
NOIVA EXPÕE STREAMER DE JOGOS QUE SE PASSAVA POR CADEIRANTE
A arrecadação indevida é estimada em 2,3 milhões de dólares após deduções de impostos. Vídeos gravados pela noiva mostram o momento em que o streamer se levanta da cadeira de rodas ao fim de cada live. A associação brasileira de pessoas portadoras de deficiência protocola processo civil milionário. Quando procurados, os familiares diretos afirmam não haver nada a declarar. O paradeiro de Erick Tomazoni é desconhecido até o horário de divulgação desta notícia.
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Plot Execução Escrita Estilo
PLOT: Uma história muito boa, com um plot muito bom. Um jovem streamer que engana o público tanto na questão de ser cadeirante quanto na questão de se identificar com o público.
EXECUÇÃO: Os detalhes são ótimos. A questão do disjuntor desligando e ligando dá realismo à cena.
ESCRITA: Está apropriada, adequada. Inclusive com erros clássicos da fala.
ESTILO: A segunda pessoa é utilizada de forma arbitrária. E isso perde um pouco do encanto do narrador. Porém, ele se mantém fiel ao estilo até o final.
Plot Execução Escrita Estilo
PLOT: muito legal!
EXECUÇÃO: o enredo tem 2 assuntos que deixam a coisa misteriosa até depois do meio, o que achei bom demais; a trama avança bem; boa ambientação (tom, sensação); dois personagens bem feito.
ESCRITA: a pontuação estava um pouco zoada.
ESTILO: