Aquele no caixão foi o único que nunca partiu; não tentou fugir pra cidade grande, um cargo melhor, uma mulher alheia.
“Não foi ninguém”; pensamento unânime.
Viúva e filhos discordariam.
Pimentel, empresário, olhava o relógio pela terceira vez. Ajeitou a gravata e varreu a igrejinha com os olhos. Modesta como Isaac. Seguiu o caminho do pai. Eu segui o meu próprio.
Rafael, músico, batucava os dedos na coxa, inquieto. Não sabia lidar com despedidas — nunca se prendera a nada.
Noam, acadêmico, ajeitou os óculos num gesto automático, mas ver com clareza não o ajudaria. Uma vida inteira destrinchando conceitos e não tinha respostas sobre Isaac, sujeito sem grande instrução. Nunca perdeu um debate para o amigo, nem ganhou um tostão com isso.
Enquanto se ajustavam sem sucesso ao luto, Theo, o boêmio, abraçava sua postura descompromissada; o menos formal. “O menos afetado?”, perguntavam-se. O gole no café escondeu o bafo de cerveja, enquanto observava Simone, a viúva. Sua única mulher desde sempre. Como pode?
O pastor falou sobre a simplicidade de Isaac, seu humor variado e sua diaconia — Rafael não sabia o que era. Pimentel desviou o olhar, Noam anotou mentalmente os erros do discurso, Theo bocejou. A frase final ecoou na cabeça de todos:
“Viveu e morreu na mesma cidade, com o mesmo Deus.”
Pimentel sentiu um arrepio. Rafael não soube se era ou não profundo. Noam quis uma explicação melhor. Theo segurou um riso.
A saída da igreja foi silenciosa. Pimentel, o primeiro a passar pela porta, fingia verificar notificações no celular. Rafael acendeu um cigarro, ignorando o olhar reprovador de Noam. Theo estalou os dedos propondo com naturalidade:
— Vamos dar uma volta.
Pimentel olhou para o relógio, não admitiria não ter para onde ir. Rafael deu de ombros. Noam hesitou, mas concordou e disse:
— Eu sei onde ir.
No carro de Pimentel, saíram pela cidade, que os recebeu como se nunca tivessem partido.
O coração de Rafael acelerou.
— Seus pais ainda moram ali? — perguntou a Noam.
Não era da conta de ninguém.
Enquanto dirigia, Pimentel lembrava de quando corria naquelas ruas, sempre o líder, ditando as regras das brincadeiras. Isaac só participava, sem urgência, sem a ânsia de provar algo. E o que irritava o empresário, agora o intrigava.
Rafael lembrou de quando confessou a Isaac: “Quero fugir daqui e tocar em cada canto do mundo”. Isaac respondeu: “Seria bem legal ver você na TV. Você vai estar lá longe, mas ainda vai ser você, não vai?”. Na época, Rafael riu da frase, que achou boba. Agora, soava como “você pode fugir de tudo, menos de você”. Quantas vezes mudou de cidade, de banda, de amores? Ainda assim, era o mesmo menino sem rumo.
Theo nunca comentou sobre o dia em que contou vantagem a Isaac sobre suas ficantes e ouviu um “você não precisa disso, meu amigo”. Começava a se sentir mal por não ter reconsiderado. Você era uma voz, eles eram várias.
Noam racionalizava sobre a situação quando pediu que Pimentel parasse o carro na frente do cemitério. Theo lembrou primeiro: “Nuss! A tumba do Isaac!”
— Isso foi maldoso — disse Rafael.
— Não, cara! A tumba aberta que ele achou, lembra?
Noam tinha outra coisa em mente:
— Ele tinha razão.
— Razão do quê? — perguntou Pimentel.
Isaac tinha visto uma cova aberta e chamou todos para olhar. A lápide era de um tal “Johnny”, o que o fez soltar uma frase risonha, parte de uma música: “Que aproveita ter o mundo inteiro e perder sua alma?”.
Lembrada a frase, Rafael interrompeu o clima:
— Vocês lembram do que fizemos depois? Fomos jogar golzinho como se nada tivesse acontecido.
Um riso tímido tomou os rostos.
— A casa dele era logo ali.
O carro avançou duas quadras.
— Foi aqui mesmo — disse Theo.
— O jogo acabou cedo, mas por quê? — perguntou Rafael.
— Foi culpa do Isaac — respondeu Pimentel.
— Como consegue lembrar disso? — questionou Theo.
— O Isaac falou disso naquela festinha do terceirão, que ele foi porque já namorava a Simone.
— Ah, só eu não estava lá. Vocês conversaram muito naquele dia, né?
Cada um foi inundado de memórias.
— Mas o que houve no dia do golzinho?
Noam explicou:
— O Isaac chutou o asfalto e ficou sem a tampa do dedão…
— Quem nunca? — disse Theo.
— Sentou no meio-fio segurando o pé, de olho fechado, pra depois levantar correndo, quando viu a pocinha de sangue. Devia estar com a cabeça ainda naquela tumba aberta.
O riso irrompeu, com um amargor que fazia parecer injusto. Rafael comentou:
— Como estávamos na frente da casa dele e a bola também era dele, o clima ficou estranho depois que ele não quis mais jogar, aí nós fomos embora.
— Ele perdeu o interesse no futebol depois disso, né? — disse Theo.
— Alguma coisa ele perdeu naquele dia.
— Todos perdemos, pelo que sei. Ao menos, o interesse por futebol!
Noam fez todos rirem.
— Convenhamos, ele era muito… estagnado — disse Pimentel. — Se preocupava com cada bobagem.
— Ele era crente, né? — completou Noam. — Tinha o raciocínio muito simples. Não iria mesmo avançar muito.
Os comentários foram recebidos com olhares pensativos.
— Eu não tenho memória nenhuma dessa época.
— É que depois que ele foi pra outra escola — disse Pimentel — a gente só se via de vez em quando. Mas no dia da festa, ele parecia o mesmo cara de sempre: simples, pouco ambicioso.
— Ele nunca saiu dessa cidade, não viu nada que nós vivemos — disse Rafael.
— E era simples demais pra entender os dilemas existenciais que teríamos com a morte dele — disse Noam.
Theo deu um tapa no ombro de Noam:
— Era o único que se importava com vocês.
A frase soou estranha vinda dele, que continuou:
— Tenho a impressão de que a vida de vocês foi uma reação à dele.
Rafael desfez o clima:
— Melhor a gente voltar. A Simone queria falar com a gente.
Na frente da casa, viram uma casa na árvore, balanços de pneus e o cercadinho da varanda em dia com a pintura. Pimentel começou a pensar.
Simone os esperava — as crianças, com os avós na casa ao lado. Enquanto ela foi até o quarto, Rafael pegou o violão do canto da sala; tocou algo sem convicção. Os dedos só se animaram quando lembrou do rock besteirento que tocava para provocar Isaac — esboçou os primeiros acordes, ninguém reconheceu.
Fotos da família brincando estavam por toda parte. “Parecia muito em paz”, murmurou Noam. O espanto no rosto de Pimentel era difícil de não notar.
Simone voltou com um diário.
— Faz sentido isso ficar com vocês. É só sobre vocês.
Theo o abriu de imediato. Na última página, uma foto deles cinco, adolescentes, marcando uma crônica. O título “Os amigos se foram” deu um nó na garganta.
— Eu vou preparar um café. Isaac sempre dizia que vocês precisariam de um quando voltassem.
Quando voltassem? Theo respirou fundo e começou a leitura. A voz baixa e fraca deu o tom que o texto exigia.
Eles não estão mais aqui, mas é minha culpa; eu saí primeiro.
Só sei que, quando a gente é criança, tudo parece que vai continuar do mesmo jeito pra sempre. A gente não pensa no futuro, não se planeja, nem tem medo do que pode acontecer. A gente pensa que a rua vai sempre estar lá, que a molecada do golzinho vai sempre continuar se reunindo, de novo e de novo.
A voz de Theo embargou. Continuou só quando encontrou o que parecia importante:
Naquele dia, não sei se foram embora pelo sangue ou pelo meu mau humor. Mas nunca mais jogamos. Víamos a mancha todos os dias, a sensação não era boa. Nunca suspeitamos sobre ela não sumir. A mancha fez o lugar parecer perigoso? Só sei que algo afastou a turma, esvaziou a rua.
Depois de alguns anos, passando por lá, lembrei daquilo e parei pra olhar. Encontrei a mancha pela última vez. Descobri que era só a cera que a mãe usava. Uns segundos quietos e tudo se encaixaria, mas a gente era muito agitado.
Depois que eu mudei de casa, a gente se viu poucas vezes. E depois da última conversa, eu fiquei aqui e eles se foram.
Me lembro bem da última vez que a molecada veio aqui jogar golzinho. Eu não sabia que seria a última.
Está tudo bem. Só queria que eles voltassem.
Pimentel lembrou de suas próprias decisões afastando pessoas. Noam tentou lidar com a sabedoria do que ouviu. Quando Simone voltou, Rafael, isolado vendo as fotos na estante, pareceu limpar os olhos com a manga da camisa. Pimentel precisou desabotoar a gravata; o celular foi abandonado sobre a mesa, a tela para baixo.
A próxima hora foi difícil: o enterro; o tempo mais silencioso daquele grupo unido.
Minutos depois, estavam em uma lanchonete, numa mistura de ansiedade e arrependimento. Já começavam a se despedir.
O diário de Isaac estava ali; ninguém queria tocá-lo. Rafael foi quem pôs para fora, da forma mais bela que pôde, algo sobre a crônica: “O silêncio é onde tudo se encaixa, mas ninguém se atreve a parar”.
— Eu sei o que ele perdeu naquele dia — disse Theo. — Ele perdeu a gente. Mas ainda não sabia.
— Aqui não tem muitas luzes, parece tão sossegado — comentou Pimentel.
O comentário deslocado dizia muita coisa.
— O Isaac sempre parecia em paz, né? — disse Rafael. — Mesmo quando nós estávamos, sei lá, buscando alguma coisa.
— Ele aceitava a vida como ela era, com seus medos e mistérios — Noam repetia o discurso do pastor.
— Ele sabia… coisas — disse Rafael. — Tudo o que queríamos, que fizemos… no fim, ninguém mudou nada. Eu não mudei nada.
— Não sei. Até ontem, você não diria algo assim — disse Theo.
Rafael sorriu, cabisbaixo.
— Ele não parecia precisar de mudanças — disse Noam. — E pensando aqui, acho que só queria a gente juntos.
Theo pediu uma rodada; levantou o copo e apontou-o na direção do espaço vazio ao lado, como se Isaac estivesse ali. Mas quem fez o brinde foi Rafael:
— Ao único de nós que nunca precisou fugir.
Theo brindou, mas não bebeu.
— O que foi? — perguntou Rafael.
— Parei de beber.
— Faz tempo? Um milagre, não?
O garçom reconheceu Rafael e pediu que tocasse algo pelos velhos tempos. A ideia não pareceu ruim. O primeiro pedido foi de uma música dos tempos em que ainda acreditava. O pedido o abalou.
— Essa música? Ah, é coisa do passado.
A insistência de mais gente o fez aceitar. Enquanto cantava, a cabeça fervilhava pensando na letra. Ao final, a mulher insistente sorriu e disse:
— Foi a primeira vez que ouvi alguém tocar essa música como se fosse sua.
A frase o perturbou.
Só então reconheceu a moça: Anastácia, por quem fora apaixonado sem nunca dizer. A conversa foi brevemente interrompida pela despedida dos amigos, que programaram um reencontro.
Noam foi o primeiro a deixar o lugar. Passando pela igreja, ouviu uma melodia baixa; vozes se misturavam num hino antigo. Encostou-se no muro e ficou ouvindo. Lembrou de quando Isaac tentava convencê-lo a entrar, dizendo que não precisava fazer nada, só ouvir. Fechou os olhos um tempo, antes de pensar no que diria quando tocasse a campainha dos pais.
Pimentel precisava fazer uma ligação. Reunião importante amanhã. Entrou no carro, subiu os vidros. Os dedos não ligaram para o sócio. Quando a secretária atendeu, só disse para cancelar os compromissos. Tiraria férias. Depois, respirou fundo, engoliu o orgulho e ligou para a esposa.
Rafael e Anastácia conversaram sobre o passado, os caminhos trilhados e os erros que custaram demais. Ela perguntou se ele ficaria na cidade por um tempo. Pela primeira vez, ele não quis fugir.
Theo caminhou sozinho até um lugar nostálgico. Sentou-se na calçada e tirou uma garrafa do bolso. Olhou para o líquido com um sorriso triste. Olhando na mochila, Theo encontrou o envelope. Riu de si mesmo: “Eu quase li isso pra ele no enterro…”. Abriu a carta, leu algumas frases e, sem hesitar, a queimou ali mesmo. “Acho que ele já sabia.” Derramou o resto do líquido no chão e deixou a garrafa ali. Levantou-se e seguiu em frente, sem olhar para trás.
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Plot Execução Escrita Estilo Desafio
Gosto muito de histórias que tratam o luto e, aqui, acho que o Lucas faz um bom uso dos artifícios narrativos que uma história como essa proporciona. Algumas coisas, no entanto, foram de meu desagrado. Apesar de reconhecer o luto como um “remoer do passado”, eu me peguei confuso com o diálogo expositivo algumas vezes. Eu também que o narrador conta de maneira muito crua o sentimento dos personagens. Cumpre o objetivo, mas, sei lá, dá uma sensação estranha quando você solta uma frase muito sucinta para descrever sentimentos. De resto, gostei da maneira como a memória envolve a narrativa, e como os diferentes lugares se atrelas às lembranças para formar uma trama, ainda que ache que a transição entre “sentimento/objetividade” poderia ter sido mais suave.