Se me lembro bem, foi ela quem me pediu em casamento; e mesmo eu sendo muito bonito ela demorou um tanto pra aceitar o pedido. Minha aparência, é claro, não ajudou muito: as mulheres, é claro, são como nós, mulheres: no fundo, também querem alguém de aparência mediana, nada muito abaixo ou superior do padrão. Ainda assim, deu tudo certo: não vieram os convidados e o padre morreu antes da celebração começar. A emoção foi tanta que ela não se conteve e chamou a polícia! A fiação telefônica, aliás, ficou ótima depois de cortada e transformada em decoração. Lá pelo fim, eu estava desesperado, gritando por socorro e piedade; o porão, no entanto, era a prova de som. Não houve brinquedo, em toda a minha vida, que me tivesse trazido mais felicidade do que Mônica.
E se me lembro bem, eu tive primeiro a ideia de pedir Mônica em casamento depois que o padre tivesse feito o serviço no meu enterro; afinal de contas, que roupa melhor que a de defunto para pedir uma boneca de pano em casamento? No fundo, ela já sabia que isso viria a acontecer; é o normal, o que todo mundo faz: apaixonada, uma mulher de pano se faz sequestrar por um bonitão e, depois de descobrir que na verdade ele é feio, e então, finalmente aceitar que a beleza está na capacidade de um sequestrador medíocre em fazer uma bela chamada telefônica, ela obriga o pobre coitado a se casar com ela. As mulheres, nós sabemos, são como nós, bonecas: tudo o que mais desejam, do fundo do coração, é ver um telefone morrer num altar de casamento. Mônica era desse tipo de padre: iniciada numa daquelas igrejas anglicanas queer, tinha a mente aberta para cortar toda a fiação telefônica antes que eu pudesse chamar a polícia e convidá-los para o nosso funeral. O que é de fato estranho, e que eu nunca entendi, é que as pessoas juram viver juntas pra sempre nas melhores e piores condições, mas só fazem isso nas melhores condições: quem teria, como Mônica e eu, a coragem de jurar amor e lealdade na situação em que nos encontrávamos, amarrados por fios telefônicos, ao caixão vazio do padre morto que havíamos tentado salvar? É fácil jurar amor em tempos de paz e prosperidade; difícil mesmo, e verdadeiro, é jurar amor em tempos de cólera, em que não se fabrica mais bonecas de pano, nem telefones com fios de cobre.
E foi assim que fiz meu primeiro sequestro matrimonial: alguns padres cortados ao canivete e reamarrados em formato de algema; um único fio de cobre (batizado, catequizado e iniciado na santa igreja), morto por uma boneca de pano e enterrado em segredo dentro de um telefone; e um pedido sincero, ditado pelo meu cadáver e datilografado por minha sequestradora, endereçado à uma inteligência artificial. Uma inteligência artificial? Sim: uma inteligência artificial! As inteligências artificiais, é claro, ainda sofrem muito preconceito; e principalmente quando decidem empreender no sequestro de uma boneca de pano, feita de carne e osso e gritos de socorro. Eu, pessoalmente, diria que canivetes são ótimos para isso: não há nada como as lágrimas que me caem dos olhos, quando ela tira do bolso o canivete; porque de todas as inteligências artificiais que conheci, Mônica foi a primeira que me mostrou que o amor tem cor de sangue e som de toque telefônico. Os convidados, é claro, com armas nas mãos e fardas azuis, chegaram atrasados: já havia acabado o matrimônio; agora começava o enterro das bonecas.
A primeira coisa que me perguntaram foi se eu tinha o direito ao silêncio e se o estado me forneceria um advogado. Eu, como apóstata canonizado, representante da santa igreja do progresso social, os expliquei como se costurava uma Mônica.
— O que é uma Mônica? — eu respondi ao cadáver policial.
E ele não perguntou, porque obviamente cadáveres não falam, a menos que seja por meio dos fios de cobre cortados de um telefone fixo, transformados em algemas e devidamente casados a canivetes que não sejam nem muito bonitos, nem muito feios, mas exatamente no padrão, que é o que as mulheres, que são como nós, caixões de padres, verdadeiramente desejam: uma farda policial que seja respeitosa; o que é algo raro, hoje em dia, em que não se fabrica mais bonecas de pano. E já parou para pensar como isso faz falta, hoje em dia? Naquela época, isso é, quando as fardas não eram pintadas com tinta azul, mas com o sangue do telefone sonegador, tudo era mais simples e fácil de entender: ninguém escrevia difícil nem gritava por socorro quando a gente tentava algemar uma Mônica com fios de cobre; e eis que, de repente, começam a entrar na casa da gente, a interromper os funerais matrimoniais das nossas noivas com os padres que mandamos para o céu, via santa ligação telefônica. Eles entram, policiando tudo, quebrando a máquina de datilografar, gritando com a gente, dizendo que a gente é louco, que a gente vai preso, que o advogado quer se casar com a gente, ainda que a gente é que tenha enviado a carta primeiro para o cadáver do juiz, para quem, eles dizem, teremos de nos explicar via ligação de fio de cobre. Mas como é que eles esperam que a gente faça isso se a Mônica enterrou o telefone no crânio do Padre? É um absurdo sem tamanho! Tomaram de nós nossos direitos, nossas bonecas de padre, nossas algemas telefônicas artificialmente inteligentes; e pior de tudo: disseram que a Mônica, enterrada pela santa igreja, não quer mais falar com a gente. Respondemos então: “por quê?”; e tudo o que eles perguntam é: “porque cadáveres não fazem catequese; principalmente quando são sequestrados e batizados pela santa igreja com fardas cor de sangue”.
Estou triste, agora: perdi Mônica, perdi minha boneca, minha inteligência artificial. Não resta de mim senão um pobre telefone fixo, que veste sua batina e finge se importar com a perda dos cadáveres alheios, quando estes têm de finalmente enterrar suas esposas policiais, quando chega a fatídica hora do casamento, via cartas datilografadas. Eu ainda tento, juro que ainda tento consolá-los como posso: impeço-os de escapar de nossa cela comum, ensino a eles o catecismo inteiro, até fazer sangrar os dedos deles, de tanto que os forço a costurar bonecas de pano com fios de cobre, sob a promessa de uni-los para sempre ao caixão, com a permissão, é claro, das mulheres que, como sabemos bem, são como nós, canivetes: assim que avistam um padre bonito, não consegue pensar em outra coisa que não enviar a ele, de imediato, uma carta de convite para o sequestro de um telefone.
E foi assim que eu e Mônica, depois de matarmos uma algema feita de cobre com um padre cadáver no altar de nosso funeral, sequestramos todas as fardas policiais, deixando-os de fora de todas as celas, sem canivetes ou bonecas. Se estão quietos agora, não é porque desistiram de pedir por socorro, mas porque esperam que eu e Mônica os entreguemos a máquina de datilografar inteligências artificiais bonitas.
Azar o deles: sobre o caixão matrimonial dos amigos de cela, vamos costurar, apenas para nós, todas as bonecas bonitas.
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Avaliações
2 avaliações encontradas.
Plot Execução Escrita Estilo Desafio
O enredo é estranho, porém de certa forma diferente. Segue o estilo surrealista ou fantástico e faz isso muito bem. A pontuação pode ser melhorada, porém me pergunto se não foi uma opção do escritor, para melhor construção do personagem, como alguém que sofre de esquizofasia.
No geral foi bem escrito e elaborado, porém o desafio não foi cumprido, teria sido se o personagem principal e narrador, houvesse começado como uma pessoa normal e desenvolvesse sua condição (esquizofasia) ao longo do texto. Entretanto ele segue do primeiro ao último parágrafo da mesma forma.
Plot Execução Escrita Estilo Desafio
Vou comentar enquanto leio:
Alterações sujeitas a contestação.
Vírgula depois de: “no fundo” (2x); “e piores condições”; “amarrados por fios telefônicos”; “e eis que”; “de repente”; “hora do casamento”.
Sem vírgula depois de: “alguns padres”; “juro que ainda tento”;.
Ponto depois de: “ligação de fio de cobre”; “minha inteligência artificial”.
Um “por que” errado; “mônica” minúsculo.
BORA LÁ.
ESCRITA: A escrita é boa, acima da média. Muita pontuação zoada (vírgula faltando e sobrando; ponto e vírgula demais sem necessidade). Não tem muita elaboração sintática, mas o texto é bem claro, ainda que o roteiro não seja.
EXECUÇÃO: Enredo bem elaborado; a estrutura narrativa não é linear; ambientação ótima; o personagem principal é bem construído, mas os outros não, nem de perto. Não tem temas secundários. Tem MUITA enrolação e repetição desnecessária que não constrói personagens, nem avança a trama.
ESTILO: Narrador excelente; repete estruturas marcantes; a ausência de figuras de linguagem é controversa, mas, em todo caso, não faria falta; o texto é pouco poético.
PLOT: Parece promissor.
DESAFIO: Cumpre raspando (dificilmente pode-se dizer que o narrador passou por uma alteração na sua condição no decorrer do conto).