Capítulo 1: Os Dias Sem Cor, ou A Contabilidade
A sala cinza começava a mudar com o reflexo do luminoso “Contabilidade Almeida & Associados” na calçada. O zumbido ininterrupto do ventilador e o resmungo das impressoras cessaram e seriam ouvidos logo mais, em casa. O expediente estava no fim. Jaime, o de poucas palavras, logo veria-se livre das gentes e poderia continuar sem sorrir em outro lugar, alimentando seu remorso indulgente, qual mendigo à vérmina que nele viça.
Como nos outros dias, cativo de planilhas e números em seu cubículo, a rotina entediante, no fim das contas, o confortava. Era mesmo um contador.
Ah! O tédio! Dos vícios, o pior — o mais mal aproveitado.
Cada dia se fundia ao seguinte. E o mar de monotonia só recuava diante do delírio efêmero das metáforas e sinfonias, do encantamento estético; embora ele soubesse que a fugaz ilusão começava a se dissipar assim que a última página se fechava e assim que a última nota soava. A quebra da cadência letárgica havia acontecido oito meses antes, quando rima e mistério, impuseram seu compasso e a mais forte fantasia passou a compor seu mundo.
No canto da mesa, “As Flores do Mal”, que o estavam ajudando a decifrar sua própria fantasia diária de meses a fio. Antes que pudesse apanhar o livro e se desgrudar do recinto, o envelope caiu à sua frente: um convite.
— Jaime, não se esqueça de entregar os relatórios antes de sair, lembre-se do prazo!
— Já estão na sua…
— E vê se aparece na festa hoje. Você precisa respirar.
Durante a semana, Jaime mal conseguiu acompanhar as conversas apressadas sobre um tal novo cliente do escritório. Os detalhes ainda lhe escapavam, apesar da movimentação frenética por conta do volume de serviços trazido por ela. O evento daquela noite celebraria a nova parceria.
No horário marcado, lá estava ele. Em três minutos, ajustava o terno barato pela terceira vez. E o peão se arrastava pelo tabuleiro do jogo que não era o seu. A gravata insistia em se torcer; um lembrete constante de que ele estava ali por acidente. Tal qual albatroz, imponente nos ares, impotente no convés. As paredes adornadas com o sucesso dos clientes riam da sua insignificância. Um copo de champanhe à mão tornou-o invisível novamente.
E então, oito meses depois — Rubato! Sforzando! — ele a viu outra vez.
Capítulo 2: Uma Fenda na Monotonia, ou A Nova Obsessão
Quase um ano antes, Oscar começara a tirar Jaime de casa uma vez por semana. Primo de Jaime, Oscar foi aquele que se esforçou para arrancá-lo de seu lodaçal de mediocridade e soube como fazê-lo. Era dono de um sebo. Sem saber como declinar a proposta, Jaime, o de poucas palavras, foi introduzido ao mundo da literatura e da música. E tudo fez sentido no dia em que, entre os corredores de livros, deu de frente com a menina de olhos meigos que não tinha livro nas mãos. Parecia ainda mais perdida que ele. De dentro, foi compelido por uma explosão. Desajeitado, arriscou.
— Está procurando algo específico?
— Eu… eu…
Timidez, susto, embaraço? Fosse o que fosse, desembestou a falar como não sabia que podia. Sugeriu primeiro “O Apanhador no Campo de Centeio”, livro que carregava.
— Já viu esse aqui?
No primeiro contato com aqueles olhos, Jaime já falava apenas por instinto.
— É sobre um menino que… — o monólogo seguiu.
Falou e falou.
Sem prestar atenção no que dizia, nem perceber que ela fazia o mesmo, Jaime só se deu conta de que a encarava excessivamente quando os olhos dela, por um instante, também fitaram os seus. O frio na espinha o tirou do transe e pôde notar nela a ansiedade. Não, nervosismo. Não parava de olhar para os lados e para a entrada.
Tarde demais. Alguém entrou de supetão no sebo; eram duas pessoas. Dois homens. Ela se apavorou, soltou o livro oferecido por Jaime e pareceu ter algo sério a dizer, mas não teve tempo: um dos homens se aproximou e a pegou pelo braço. Jaime pensou em reagir, mas a ouviu dizer entre dentes “não!” e fez o que a vida inteira fez de melhor: obedeceu. E se arrependeu. Jaime nunca mais a esqueceu, nem daquele homem. Oscar disse que não viu nada.
E agora, oito meses depois, lá estava ela. O copo na mão, hemiola!
O ritmo do coração descompassou. Sucessivas linhas de raciocínio se sobrepunham, se atropelavam, se cancelavam.
Sobre quem era e o que teria acontecido desde então, Jaime não sabia nada além do que havia sonhado e imaginado repetidas vezes. Um súbito “e se eu tivesse reagido?” o visitava todas as noites. A literatura o ajudou a fantasiar sobre como ele poderia ter ido atrás da princesa, derrotando com bravura monstros ululantes e viscosas feras para, então, terem a vida que ninguém tem. Mas nem as infindas simulações foram suficientes para prepará-lo: lá estava ela.
Encantadora. Um sorriso que iluminava o ambiente. O corpo de Jaime tomou a atitude por ele e começou a se aproximar. O movimento em câmera lenta gritava “não sei o que fazer… não sei o que estou fazendo!”. Por sorte, não a abordou a tempo, pois um homem com aspecto debochado pegou-a pela cintura. Ele não conhecia o protagonista do seu amargor. Contudo, pouco depois, viu outro sujeito, de ar perverso, seguramente seu guarda-costas. Deste, ele se lembrava. Jaime desandou a falar.
Falou e falou.
Dessa vez, puxando conversa com todos que podia, esperando descobrir algo sobre o casal até compreender que a moça, Júlia, estava acompanhada de ninguém menos que o Barão, motivo da festa. Desde o acordo, aquele homem, de quem muito se falava e quase ninguém conhecia, tinha na folha de pagamentos o escritório e toda a parte podre da cidade. Disso, todos sabiam. Daí, a quantidade de baba-ovos à sua volta.
— É, meu amigo, olhe lá. Um cortejo de otários nunca faltou a nenhum babaca! — o colega do escritório disse no pé do ouvido.
Jaime passou vários minutos conjecturando sobre o quão certo ele parecia estar sobre aquele dia. Talvez a de olhos meigos estivesse em apuros havia muito tempo, tal como ele, impotente diante do problema.
Desde o dia fatídico, aquela era uma boa parte dos pensamentos de Jaime; algo que já havia crescido e se desenvolvido, mas que ele precisava ter como uma brincadeira que ninguém jamais saberia. De olhos no algoz, Jaime sabia, mais do que nunca, que era perigoso continuar sua investida e pensou em deixar tudo para trás, ficando somente com os sonhos secretos. E foi então que Júlia o avistou. O congelado Jaime viu-se desvelado. Entendeu que ela se lembrou de imediato e estremeceu.
Talvez ela só quisesse ajuda, talvez precisasse do herói fantasiado por ela já havia oito meses. Talvez sentisse o mesmo. Ou talvez só precisasse da polícia. De qualquer forma, ele precisava ser quem não era — precisava de algo para o qual não tinha preparo. Ou tinha? Talvez oito longos meses de treino.
Quando a cascata de pensamentos terminou de formar uma teia intrincada em sua mente, ele percebeu que já fora treinado para aquele momento — o pulsar das sinfonias, o peso das metáforas decoradas, os versos impetuosos e impulsivos. Os delírios que se findavam com o fechar de cada livro romperam o véu das folhas e invadiram o mundo; os devaneios que terminavam no despertar a cada manhã tocaram seu rosto acordado. Anacrusis.
Capítulo 3: O Fardo da Liberdade, ou O Sacrifício
O celular tocou, Jaime atendeu. A esposa, Júlia, perambulava pela sala de estar sentindo o chão gelado sob os pés. Cada vez que ela passava a mão sobre a tampa do piano na sala, perguntava-se sobre a vida presente. É mesmo real? Pontas de vista.
A casa era muito diferente daquele modesto apartamento de Jaime, mas a ansiedade não desaparecia com a iluminação âmbar.
O celular estava no bolso. Depois de vários minutos, ele ainda caminhava em círculos na varanda, fumando um cigarro atrás do outro, enquanto um samba melancólico tocava em outro cômodo.
Por três anos já sabiam: foram oito meses de um amor compartilhado em silêncio, sem um saber do sentimento do outro, isolados em seus próprios mundos. Jaime e Júlia haviam criado a mais bela história sobre um romance impedido. E Júlia, agora, trazia no semblante o alívio de uma liberdade conquistada, mas também o peso do sacrifício de Jaime.
Os números eram os mesmos; as decisões eram outras. Depois de três anos vendo sua integridade ser corroída, o preço do caminho que lhe fora imposto era já haver se acomodado. Lá fora, o mundo continuava a girar, indiferente a ele; ou quase. No escritório, os ex-colegas seguiam suas vidas, mas o nome do Barão era murmurado nas sombras, ainda que sem a coragem suficiente para trazer à tona o que todos sabiam. O nome do o antigo colega também não era mais citado; agora com seu próprio escritório, um dos maiores da cidade, tornara-se o contador do Barão.
O acordo resolveu um problema e criou outro mais difícil. O preço da liberdade era um novo tipo de cativeiro. A teia de escolhas comprometedoras trazia incertezas e insegurança de todos os lados. Quando Jaime entrou, o ar ficou mais denso. Eles se olharam, se abraçaram e temeram.
— O preço foi muito alto — disse Júlia.
— Eu faria tudo de novo, meu bem.
— Mas agora o preço pode ser maior.
Júlia deslizou a mão pelo ventre, um gesto quase imperceptível, constante nos últimos meses. Jaime suspirou.
A ligação recebida mexeu com ele. Júlia não ouviu nada, mas só podia significar uma coisa: o Barão já estava nas ruas outra vez.
— Que futuro nós temos assim?
— Você o está carregando, meu bem.
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Plot Execução Escrita Estilo Desafio
O plot/enredo é agradável, nada além disso. Está bem executado e muito bem escrito. Por vezes ficou um pouco confuso e li mais de uma vez para entender onde tudo se encaixava.
O desafio é cumprido corretamente. Mas claramente estamos diante de um trecho de uma obra maior e isso é perceptível. Não é um problema, mas é algo a se levar em consideração: estamos diante de um conto de amor ou do trecho de uma obra que na página seguinte mostrara um engano? E mesmo ignorando isso, o protagonista firma ter treinado para fingir ser quem não era, esse treinamento inclui fingir que ama?
Mas de uma maneira geral, desafio cumprido e bem escrito.