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Em Nome de Gath! – Como Forjar Um Monstro

Depois de tantas ameaças e insultos, era aquele o escolhido deles? Foram quantos segundos?

Ele estava diante de mim, mas eu mal podia olhá-lo. Era minúsculo. Senti o cheiro de sangue misturado à poeira. Ao chão, o líquido quente vertia pelo rosto e as forças fugiam junto com os companheiros no campo de batalha. Aquilo era tudo?

Foi tão rápido e… decepcionante.

*****

Naqbaal estava no canto escuro do quarto. De joelhos puxados para o peito, tapou os ouvidos, mas os berros do pai conseguiram penetrar. “Você me envergonha!”. Um estalo ressoou, seguido por um gemido da mãe. Naqbaal fechou os olhos, sua mente vagou. Ninguém contava, mas sentia que a culpa era sua; um fardo não tão invisível assim.

Pela manhã, o pai não estava em casa e a mãe não havia saído do quarto. Esfregou com carinho a pulseira que nunca saía do braço, tão delicada quanto a mãe, que a deu. Saiu para a rua e o coração voltou a palpitar ao ouvir risadas na praça. Olhando de longe um grupo de crianças jogando. Seus olhos brilharam por um instante e desejou se juntar a eles, mesmo com o histórico de experiências ruins. Os poucos passos naquela direção levantaram olhares e cessaram risadas. Voltou. A criança desengonçada precisava ser isolada. Crianças não sabem o que fazem; nem jovens, adultos e velhos — nem o pai.

Aos oito anos, Naqbaal via o desprezo aumentar, e sua doçura não era suficiente para remediar. Ansiava entender — quem sabe, pudesse mudar. Mas tudo o que conseguia era a certeza de ser um estranho. E foi outro momento de ira do pai que deu uma pista do problema.

Estava agachado atrás da porta entreaberta, tentando discernir o motivo da porção de ódio daquele dia. A voz do pai cortava o coração da mãe, encolhida na penumbra. O vulto do pai se movia, agressivo e imprevisível, a mãe permanecia calada. O rosto estava vermelho num misto de fúria, dor e vergonha. Naquele dia, houve mais do que simples gritaria: o pai pôs as cartas na mesa.

Naqbaal ouviu as frases que fizeram seu estômago revirar. O pai estava nervoso, apenas exagerando, ou tinha razão? Por que a mãe não dizia nada? As lágrimas caíam, mas nenhuma resposta saía de sua boca. O silêncio que se seguiu foi angustiante; Naqbaal vomitou no quarto. 

Quando imaginou que o pai tinha saído de casa, pensou em questionar a mãe. Antes de dar o primeiro passo para dentro da sala, ouviu um choro que não conhecia: o pai, ajoelhado de rosto no chão, gemia, enquanto as mãos arrancavam os próprios cabelos.

Naqbaal arrebentou a pulseira e se arrastou até o canto do quarto. As palavras martelaram na mente, uma verdade cruel demais que ele guardaria em segredo. E a gentileza do menino se secou. 

Todos os dias, a casa tinha o mesmo clima pesado; algumas vezes mais perigosa, outras vezes, melancólica. Mas houve um dia decisivo.

Era ainda madrugada quando os gritos da mãe o acordaram, seguidos pelo estrondo de um objeto quebrando contra a parede. Olhou pelo vão da porta, viu o pai cambaleando, com uma garrafa numa das mãos. Seu rosto exibia um nojo, dessa vez, sádico. A mãe, diante do homem descontrolado, o empurrou no rosto, fazendo-o cair. Ele se levantou com os punhos cerrados. Naqbaal fechou os olhos e ouviu as primeiras pancadas, para não mais fazer parte daquilo.

Depois de semanas pensando, a hora havia chegado. Pegou seu alforje e, antes que as lágrimas descessem, já havia pulado a janela. Deixou o lugar sem olhar para trás, indo em direção à estrada. As poucas pessoas acordadas não estavam em seu caminho. Só diminuiu a velocidade quando fez a primeira curva. E não pôde mais segurar o coração. Os olhos ardiam de sono e tristeza.

Continuou andando sem rumo, à beira da estrada, preocupado sobre a direção de seus passos. Mas estava livre, e isso era mais importante. Livre das ameaças, do perigo, da humilhação.

De súbito, risadas cortaram o silêncio; sua pele Naqbaal arrepiou. Levantou a vista e encontrou um grupo de homens surgindo de lugar nenhum. Mal podia ver seus rostos, mas o modo era bem conhecido por todos do vilarejo: salteadores.

O coração disparou. Tentou entrar por entre as árvores, mas um deles avançou e segurou seu braço, com um sorriso malicioso.

— O que temos aqui?

Naqbaal foi cercado. 

— Eu não tenho nada!

— Tem, sim.

Um deles apertou seu rosto enquanto outro o apalpava. Naqbaal era novo demais para entender. Quando tentou se livrar, levou uma joelhada no estômago e perdeu as forças. Os homens se empurravam, um encorajando o outro.

A segunda tentativa de escapar o poupou do que viria: um soco desajeitado na nuca o desmaiou e a última coisa que ouviu foi o riso asqueroso, misturado ao som de grosserias.

Meia hora depois, despertou enquanto uma senhora tratava da ferida em sua testa, em uma carroça coberta. De olhos assustados, se afastou.

— Quem é você?

— Está tudo bem. Meu nome é Adalia. Nós o encon…

— Cadê a minha roupa?

Viu-se sem sua túnica, coberto apenas com um lençol.

— Nós não encontramos. Você pode usar aquela.

Seus olhos acompanharam a direção do dedo: uma túnica simples, estendida sobre o feno.

A outra, rasgada e com manchas de sangue, fora descartada sem comentários.

Não podendo recusar a roupa, a água e a comida, aceitou seguir viagem com a caravana em direção a Gath, seis dias dali. Eles não precisaram de um longo diálogo para entender o que se seguiria. Naqbaal havia encontrado uma nova família.

A casa humilde não tinha gritos e Adalia dava tanta atenção quanto podia. Fora da casa, a velha história: as crianças também desviavam o olhar quando ele se aproximava; risadas desconfiadas sobre a carga que ninguém, fora Adalia e seu marido, queria carregar. Ninguém lhe dizia claramente qual era o problema, mas os gestos transmitiam a mensagem: não pertencia àquele lugar. Mas ele não era o mesmo; naquele lugar, não tentaria se integrar. Chamado apenas de “exilado”, aceitou sua condição, seu coração se enrijeceu e o isolamento lhe deu foco.

Crescendo como nenhum outro de sua idade, em poucos meses precisou de roupas maiores. Passaram-se semanas, meses, anos. O trabalho pesado como ferreiro, ajudando o padrasto, lhe concedeu músculos, alargou os ombros, firmou as longas pernas desengonçadas. Aceitava as funções mais difíceis, ia tão longe quanto qualquer adulto, e assim continha sua fúria. 

Ainda moleque, viu os boatos de saques e massacres aumentarem, e numa onda crescente de ataques às cidades vizinhas, os moradores de Gath precisaram se mover por uma formação militar às pressas. Um recenseamento foi feito e, na hora de discutir sobre quem lutaria, de uma coisa ninguém teve dúvidas: O exilado estaria entre eles.

Quando Adalia soube, tentou ao máximo dissuadir o marido, que não via motivos para deixá-lo à parte de tudo. Naqbaal já estava na praça observando a assembleia quando o anúncio do líder foi feito: todos com aptidão seriam necessários. E quando a mãe chegou para protestar, ele já tinha decidido. 

— Eu vou ficar atrás, mãe. Vai ficar tudo bem.

E os ataques contra eles começaram.

Na primeira batalha, o caos se desenrolou à sua frente. Os gritos dos soldados e o clangor das armas se misturavam onde quer que olhasse. Ainda assustado e imóvel, ouviu o alerta de um companheiro que gritou seu nome; a aproximação de um invasor despertou seus instintos e a espada foi tingida pela primeira vez.

Suas mãos tremiam descontroladas. Nunca sentira aquilo antes e não queria mais sentir, mas então veio mais um.

As espadas se chocaram no ar duas, três, quatro vezes; o som do metal irritou os ouvidos aguçados. Dando passos para trás, pensava eu recuar; fugiria sem vergonha alguma. Mas…

— Eu sei que tipo de demônio é você!

A fala em tom debochado mudou o jogo. Jamais pensou que o humor de alguém pudesse mudar tão rapidamente. A fúria foi tão devastadora, tão possuidora, que soltou a espada, agarrou a garganta do tolo à sua frente e a estraçalhou.

Sentia o sangue pulsar dentro de si — não, o poder. Não aceitaria mais aquilo de ninguém.

Alguns invasores ao seu redor se assustaram, se distraíram e foram mortos. Mas o combate continuava feroz, e ele, agora com duas espadas, pôs-se a correr por entre todos, surpreendendo, atacando, mutilando. Depois da primeira batalha, os sobreviventes se reagruparam, sabendo a quem deviam.

— Nós já sabíamos que você era raro, mas não tanto — disse o líder do pequeno exército. — Se estiver disposto, quero treiná-lo pessoalmente.

Nos dias seguintes, pôde entender melhor o manejo de algumas armas e ainda naquela semana pôs em prática. A partir de então, começou a usar apenas uma lança.

Na segunda batalha, o cenário foi mais brutal: três grupos do tamanho do primeiro foram enviados para dar cabo ao problema. Agora na linha de frente, Naqbaal aguardava as ordens para abrir a jaula. Os músculos tensionados chamavam a atenção dos companheiros, para quem, em segundos, ele daria um espetáculo.

No instante certo, avançou confiante, riscando o ar com a ponta da lança maior que a média. Um a um, os inimigos sucumbiam. Os mais próximos sentiam-se motivados, os mais distantes faziam ecoar os brados da vitória certa, que não tardou a se apresentar.

No outro dia, os líderes quiseram aproveitar a vantagem e decidiram que eles iriam até os inimigos. Depois dos preparativos e uma divisão do contingente, foram dois dias de viagem até o vilarejo. O ataque foi cuidadoso: só homens adultos foram mortos. O segundo ataque não foi tão honrado, mas trouxe fama.

De volta à vila, só se comentava sobre o desempenho de Naqbaal. Naquele dia, o líder fez questão de honrá-lo na frente de todos. E assim, aos poucos, o exilado foi sendo transformado no símbolo de esperança e força de Gath.

Nos meses que se seguiram, seu nome se tornou uma referência entre povos vizinhos; anos depois, alguns pensavam ser uma lenda criada para enaltecer o nome de Gath e facilitar acordos comerciais. 

Gadara, uma cidade mais distante, se recusou a negociar, humilhando o grupo enviado. A notícia mobilizou um grupo ofensivo que não levaria Naqbaal, ocupado com outra missão. Mas quando ele ouviu sobre o incidente, não teve dúvidas: iria junto. E o resultado não foi pacífico. Em nome de Gath, fumaça subiu das casas ardendo.

Quando Naqbaal ergueu sua lâmina pela última vez na noite, tinha os olhos frios para o homem à sua frente. A casa estava diferente, faltando coisas. Não se convencera dos argumentos. Irmãos? Mas como? Não importava. O idoso, fraco e sem espada em mãos, sentiu o ferro cortar-lhe o ventre de fora a fora, enquanto suas lágrimas escorriam.

Você parecia maior naquele tempo.

Dali, foi direto para sua missão anterior, na terra cujo rei, grande em estatura e aclamado pelo povo, nunca perdia. Era o único povo que faltava ser amansado. As vitórias recentes contra povos aliados de Gath precisavam parar.

Um contingente grande o aguardava, mas atravessou o grupo sem dizer nada — precisava esmagar, estraçalhar. Passando por eles e pondo-se de frente para o exército inimigo, encheu os pulmões e os humilhou. Seguindo tradições antigas, fez o desafio: exigia lutar com o melhor na frente de todos e o duelo decidiria a batalha.

Por horas, o aberrante guerreiro os insultou e à sua fé. Aguardava alguém que ao menos não congelasse diante de si. E quando o representante veio, bradou confiante diante da fera, que riu e debochou.

Segundos depois, os dois exércitos viram mais uma batalha ser decidida pelo símbolo do povo de Gath.

E ele, vendo sua vida se abrir como um livro, ao chão, só se lembrava daquele som agudo e repentino que cortou o ar e o atingiu na testa. Algo ainda estava lá, cravado, fazendo o sangue escorrer: a pequena pedra que abalou o corpo de frágil espírito. 

Com a queda do gigante, todos souberam quem era Iavé e seu escolhido.

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