Clarice é como o nome da mais bela flor que se despedaçou ao vento. Suas cores, sua formosura, seu perfume, enchem os sentidos de todos nós, mas, em sua diáspora não ficaram nem mesmo as lembranças da áurea dos dias.
No dia em que Clarice nasceu, o sol demorou para pousar, fazendo toda noite como o dia. Seus pais, então, lhe deram seu nome, porque disseram: “esta é a que brilha; até o sol se curvou perante ela”.
A recém-nascida era linda, um tanto descomunal. Seus olhos violetas, cabelos cheios ruivos como a terra, lábios contornados e vermelhos maçã.
Todos ficaram maravilhados naquele hospital quando viram Clarice, por sua beleza, sua desenvoltura e pelos fenômenos que acompanharam seu nascimento.
A irmã mais velha de Clarice, Alice, disse que naquela noite um anjo veio lhe anunciar o nascimento da caçula, mas os adultos tiveram isso por imaginação fértil de criança.
O tempo foi passando e Clarice foi se desenvolvendo como uma prodígio. Quando tinha cinco anos, parecia que tinha dez. Falava com uma oratória eloquente, seu pensamento era veloz como um leopardo, seus questionamentos eram de gente grande e, principalmente, tinha a capacidade de ler livros de adultos e compreende-los sem ninguém explicar.
Na escola, na vizinhança e até entre seus parentes, era alvo de inveja pelas meninas por sua beleza e habilidades, os meninos se sentiam ameaçados por ela, porque poderiam ser ultrapassados, e adultos se sentiam incomodados com a presença de uma garota tão promissora.
Ela cresceu em um bom lar. Era amada pela irmã mais velha, a tinha como melhor amiga depois de sua mãe. Seus pais, também, a amavam incondicionalmente, e a incentivavam a ser a melhor que pudesse ser sempre.
Mas, como tudo que começa, acaba, e como tudo tem um fim, os dias de paz e tranquilidade terminavam para aquela família.
O pai que antes era amoroso, começou a se tornar violento, não só para com sua esposa, mas, também, para com as suas filhas.
A mãe de Clarice foi ficando cada vez mais deprimida, e tentou de várias formas tirar a própria vida, sem obter sucesso.
E quando Clarice completou doze anos, seu pai, repentinamente, fugiu de casa, deixando sua mulher e filhas.
Com a partida do patriarca, pensaram que a paz iria reinar e as coisas voltarem ao lugar, mas a mãe tinha comportamentos estranhos para com suas filhas, se afundando cada vez mais em depressão.
Demorou um tempo para a mãe se estabilizar emocionalmente, após idas e idas ao psicólogo, e com tratamentos intensivos. Mas, com a medicação correta, ela recuperou sua sanidade. Aliás, assim pensava.
Antes de irem para o salão de festa da igreja local comemorarem o aniversário de quinze anos de Clarice, a campainha tocou.
“Deixa que eu atendo, Clarice, vai terminar de arrumar o cabelo, e ajusta a bainha deste vestido que dá pra ver daqui que está toda bagunçada. Não quero que, naquele salão, achem que você não tem mãe…”, falou Roberta, a mãe de Clarice, antes de atender a porta.
“Um telegrama para mim. Mas quem usa telegrama em pleno século XXI?”.
Roberta abriu a correspondência anônima e, ao ler, foi se sentando lentamente no sofá,
“O que foi, mãe?”, perguntou Alice de forma preocupada.
“Não foi nada, minha filha”.
“Tem certeza? Pela sua cara, não parece que não foi nada”.
“Tenho sim, querida, fique tranquila, é só uma piada de mau gosto”.
Terminaram de se arrumar e foram para o salão, celebrar o décimo quinto aniversário de Clarice.
No momento da valsa, Roberta e Alice dançaram com a bela menina que estava crescendo a cada dia, e era tão incrível presenciar o seu crescimento. Ela era o orgulho da família.
Quando foram embora, Roberta foi sozinha no carro com sua caçula, pois sua primogênita foi com seu namorado.
Era possível ver estampado no rosto de sua mãe que algo não estava certo, desde aquele momento em que recebeu uma correspondência.
Enquanto voltavam para casa, Roberta começou a agir de forma sem sentido, estranha, que começou a deixar sua filha assustada.
Mudava de rádio toda hora, dirigia sem paciência, e começou a delirar as seguintes palavras: “Se o seu pai não tivesse nos deixado, ele ainda estaria vivo. Não teria sido encontrado, sem respostas, morto, em um banco de praça”.
Clarice assustada, reagiu: “Como assim, o pai foi encontrado morto?”.
Mas, era como se Roberta não escutasse nada do que sua filha falava: “É tudo culpa minha… é tudo culpa minha… é tudo culpa minha…”.
“Não é culpa da senhora, mãe”.
Então, em um olhar de despedida, era como se Roberta dissesse à sua caçula as seguintes palavras: “Eu te amo, meu amor”, e, em seguida, jogou o carro contra a ribanceira, e despencou, rolando várias vezes quando colidiu com o chão.
Roberta foi encontrada sem vida. Clarice, por um milagre, ainda respirava, foi levada às pressas para o hospital. E o carro deu perda total.
*****
Após dias, semanas e meses de internação, e algumas intervenções cirúrgicas, Clarice voltou para casa. Sua irmã tirou a faixa que protegia seu rosto lentamente, e diante do espelho, somente o violeta de seus olhos é o que permaneceu, pois a beleza que antes possuía, desapareceu.
Um nó sem desembaraço tomou conta da garganta das duas irmãs,
Será que era um castigo? Ou será que era a vida cobrando a quem muito foi dado? Ou será que era apenas mais um percurso natural da vida acontecendo, em que coisas ruins acontecem a, também, pessoas boas? Não se sabia, apenas era muito pra uma menina de quinze anos estar passando.
Antes, a quem pessoas admiravam e invejavam, agora queriam distância. Parece que Clarice tinha contraído uma doença contagiosa, que não tinha cura, mas era apenas a sua aparência que não mais como antes. Seu rosto deformado.
Se sentia tão só no mundo, e o mundo pesava sobre seus ombros, como um fardo quase impossível de se carregar. Mas, mesmo assim, ainda era a mesma. Todas as circunstâncias tinham mudado ao seu redor, mas ela permaneceu a mesma, a sua essência ainda era a mesma. Ela era a Clarice de sempre.
Os dias foram passando e ela foi se adaptando a sua nova realidade. Era difícil fazer novas amizades. Pessoas lhe encaravam com cara de nojo e se sentia cada vez mais rejeitada.
Diariamente era o mesmo dilema, aceitar sua nova condição, a si mesma e enfrentar o mundo. Mas todos os dias era uma nova frustração. Assim era quase impossível continuar a viver.
Na madrugada em que voltava da comemoração dos seus vinte e dois anos, Clarice se viu em uma rua totalmente deserta, tomada por um breu. Ficou cheia de pavor, mas continuou seu caminho.
Ouviu um barulho vagaroso e automaticamente parou. Sentiu uma presença se aproximar, logo, em seguida, um vulto. Tentou retornar seu caminho, mas não deu certo, De repente, desmaiou.
Na manhã seguinte acordou em sua cama, sem saber o que aconteceu, só lembrava daquela rua deserta e pavorosa.
Mas o mais sinistro foi quando olhou no espelho. O seu rosto, agora, era o mesmo de quando tinha quinze anos, apenas com traços mais amadurecidos, mas sua beleza estava mais intacta do que nunca. Aquilo era impossível estar acontecendo. Quem a reconstruiu? Ou será que não passava de um sonho realista?
Portanto, algo aconteceu não só em seu exterior, mas em seu íntimo também. Não só mexeram em seu rosto, mas lhe deram um novo coração. Antes via o mundo como um belo jardim de flores a serem cultivadas, agora enxergava o mundo como um palco para o seu protagonismo, em que ela era o motivo de toda a existência.
Passou a viver uma nova era em sua vida. Ressurgiu das cinzas, do seu próprio pó, como uma Fênix. De humilhada a exaltada, de pobre a mais rica, de esnobada a mais desejada. Tinha uma convicção dentro de si: “Fui escolhida dentre os deuses, eles me formaram com as próprias mãos. Ninguém pode se comparar a mim”.
Por onde ela passava, em festas, reuniões, caminhadas na rua, se tornava o centro das atenções. Ela poderia estar parada, sentada, trajando a roupa mais simples, que mesmo assim ainda era o centro, se destacando mais do que qualquer um, sem esforços.
Só que a essência daquela doce e amável Clarice, não era mais a mesma.
*****
Chegou a tão aguardada noite dos seus vinte e sete anos. Decidiu dar a maior festa de sua vida.
Em uma noite pomposa e cheia de glamour, Clarice trajava um vestido longo de tom claro, bege, com os cabelos presos, maquiagem leve que permitia ressaltar sua beleza marcante.
Lentamente foi descendo as escadas como uma deusa desce do Panteão e vem nos abençoar com a sua presença.
Todos foram arrebatados em olhar quando Clarice apareceu. Seu perfume inédito tomou conta do alto salão e a sua glória resplandeceu em sua auréola.
Era impossível não olhar para ela, era como se tivesse um ímã atraindo todos a Clarice.
Depois de muita dança, bebidas, trocas de palavras, a anfitriã parou toda a movimentação e proclamou o seguinte discurso:
“Sejam bem-vindos, damas e cavalheiros. Sintam-se privilegiados por estarem aqui nesta noite, celebrando mais um ano de minha vida.. Cada um de vocês foi escolhido a dedo e abençoado. Os deuses e os anjos dizem: Amém!”.
Os que estavam presentes não entenderam muito aquelas palavras, pensaram que era apenas um ato poético. E se seguiu o baile.
Antes da meia-noite, algo estranho aconteceu, Clarice desapareceu.
Não a encontravam em lugar nenhum, quando de repente as luzes se apagaram, as portas imensas se abriram e o silêncio se fez.
Um homem e uma mulher desconhecidos se encontraram na entrada iluminada pela noite, se colocaram face a face diante um do outro e entraram no salão de mãos dadas. Eram os pais de Clarice.
Dançaram uma valsa dramática. No último beijo, Clarice cai da parte alta do salão, com o rosto deformado e sem seus olhos violetas.
Seus pais, frios como aquela noite ficou, saem calmamente pelas portas assim como entraram. Nunca mais foram vistos.
E a história de Clarice ficou conhecida como a valsa dramática, pois seu nome tinha o significado da mais bela tragédia.
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